02 outubro 2024

Inteligência artificial e desvarios políticos

Aqueles que acompanham de perto os debates sobre inteligência artificial (IA) e política externa geralmente ficam perplexos ao observar os erros não forçados que retiraram a racionalidade do diálogo e da cooperação entre os governos do Brasil e da Argentina.

Os ministros das Relações Exteriores de Brasil e Argentina, Mauro Vieira e Diana Mondino, durante reunião em Brasília (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

Aqueles que acompanham de perto os debates sobre inteligência artificial (IA) e política externa geralmente ficam perplexos ao observar os erros não forçados que retiraram a racionalidade do diálogo e da cooperação entre os governos do Brasil e da Argentina.  

Mas há indícios de que esse não foi o único, nem o maior dos problemas registrados no país vizinho.  

Alguns fatos parecem indicar que Lula congelou seus projetos originais de integração com a América do Sul, uma mudança que coincide com o fracasso de sua arriscada e inviável mediação na política interna da Venezuela e com o surgimento de uma nova visão geoestratégica.  

‘O chefe do Planalto parece disposto a virar a página e dar prioridade aos vínculos de seu país com a Ásia, especialmente com a China’

Nos próximos 27 meses de mandato presidencial, o chefe do Planalto parece disposto a virar a página e dar prioridade aos vínculos de seu país com a Ásia, especialmente com a China de Xi Jinping.  

Essa ideia faz sentido com a presença do Brasil nos grupos Brics e Sul Global, onde os líderes de Pequim têm uma grande influência devido à condição de potência comercial, econômica, tecnológica e geoestratégica da China; e de Moscou, tanto por sua riqueza energética quanto por sua tecnologia militar.  

A verdade é que essa não foi a primeira vez que o presidente Lula deu carta branca ao embaixador Celso Amorim para se envolver em uma tentativa de salvar um processo que cheirava a fracasso e falta de futuro.  

Anteriormente, Amorim fez um longo e complexo esforço individual para tirar a Rodada Doha da OMC do fundo do poço, sem levar em consideração a reticência sistêmica instalada em Washington, nem a condição de “país obstáculo” historicamente assumida pelo governo da Índia.  

‘Desde a era Bill Clinton, sabia-se que os dois partidos majoritários dos Estados Unidos acreditavam que a liberalização do comércio era uma estratégia que afastava eleitores’

Desde a era Bill Clinton, sabia-se que os dois partidos majoritários dos Estados Unidos acreditavam que a liberalização do comércio era uma estratégia que afastava eleitores, como ficou evidente na desorganizada Conferência Ministerial da OMC em Seattle.  

Quem recentemente explicou com grande maestria várias dessas novidades foi a jornalista Janaina Figueiredo. Em 25 de agosto, seu relato foi publicado no jornal O Globo.  

Não por acaso, o Brasil está hoje repleto de seminários, diálogos e cursos sobre os vínculos com Pequim, incluindo a possibilidade de um Acordo Bilateral de Livre Comércio com o Mercosul. O que chama atenção é que, quando essas propostas são discutidas, ninguém pergunta calmamente, e em voz alta, se as nações do Cone Sul, membros do Tratado de Assunção, têm capacidade e coragem suficientes para competir com a China.  

Se, por outro lado, a ambição dos novos projetos for mais limitada, e a cooperação com Pequim se restringir apenas a captar grandes projetos de investimento ou outras iniciativas não cobertas pelos amplos braços da OMC e do Mercosul, o tema sai do radar coletivo, cabendo aos atores diretos avaliar os custos, os objetivos obscuros e os reais benefícios de cada iniciativa.  

‘A experiência nos mostra que, nas negociações com a China, quase nunca é possível prever como serão as verdadeiras regras do jogo’

A experiência nos mostra que, nas negociações com a China, quase nunca é possível prever como serão as verdadeiras regras do jogo, os termos de referência ou o tipo de concessões e obrigações que geralmente aparecem de forma sequencial na mesa de negociações.  

Só agora o governo do Brasil está considerando aderir à Iniciativa Cinturão e Rota (conhecida como Belt and Road Initiative ou BRI), que surgiu quando o atual presidente Xi Jinping assumiu o poder. Muitos setores de opinião no país vizinho ainda resistem a validar essa decisão.  

Ao mesmo tempo, outros analistas ainda se perguntam se a BRI, que já conta com a adesão de 140 países, incluindo a Argentina, tem genuínos objetivos estratégicos ou se é apenas uma abordagem de cooptação.  

Aqueles que puderam estudar Pequim com sorte variada nos últimos 30 anos geralmente acreditam que pode ser ambas as coisas ou nenhuma, já que antecipar os movimentos cíclicos do Partido Comunista Chinês é uma tarefa que beira a utopia.  

Além disso, o leitor não deve esquecer que adotar esse tipo de virada, quando está quase na metade do terceiro mandato de Lula, sugere que a nova abordagem nasceu de uma reação lógica que deu vida a um tardio Plano B.  

O segundo fato notável é um problema doméstico de cultura internacional que costumava (e ainda costuma) tirar o sono da classe política do nosso país.  

‘O presidente Javier Milei retrocedeu pelo menos 60 anos ao ressuscitar a falsa polêmica entre campo e indústria’

O presidente Javier Milei retrocedeu pelo menos 60 anos ao ressuscitar a falsa polêmica entre campo e indústria, seguindo um roteiro superado por regras econômicas que não estão alinhadas com os labirintos e políticas globais que poucos conhecem ou dominam seriamente.  

Não seria demais que a profissão econômica investigasse e compreendesse o vínculo incestuoso promovido pelas potências do Atlântico Norte ao legalizar de fato, mas não de direito, o atual casamento entre protecionismo regulatório e economia social de mercado.  

As regras da OMC proíbem restrições não-tarifárias, salvo as relacionadas à segurança ou às exceções permitidas pelo Artigo XX do Gatt. Mas hoje o desavergonhado emaranhado protecionista é a pedra angular da política comercial do capitalismo tradicional e, por extensão, de muitas economias que supostamente aderem à economia social de mercado.  

‘Não há partidário maduro da liberalização econômica que acredite que Donald Trump, ou os líderes da União Europeia, são aderentes às regras básicas dessa economia’

Sem dúvida, não há partidário maduro da liberalização econômica que acredite que Donald Trump, ou os líderes da União Europeia, são aderentes às regras básicas dessa economia.  

Dizer que o setor manufatureiro argentino roubou parte da prosperidade do campo, em um momento em que grande parte da humanidade está revivendo a aplicação de fortes medidas voltadas à reindustrialização da economia, demonstra uma notável falta de informação sobre os mecanismos de assistência à atividade produtiva e ao comércio exterior global.  

Esquecer, na nossa realidade específica, que a sobrevalorização tanto da taxa de câmbio nominal quanto da efetiva é um subsídio aos importadores e uma paralela expropriação da indústria nacional e dos exportadores, em um país quebrado pela óbvia escassez de dólares não reembolsáveis, é um grave déficit de cultura profissional.  

Eu não rejeito a noção de que o produtor rural foi e é injustamente maltratado. Apenas me oponho à ideia de que o carrasco foi e é a indústria, pois o problema está na ineficácia terminal da classe política e no visível desconhecimento das práticas de mercado inaceitáveis do universo protecionista.  

‘As regras econômicas hoje não são inspiradas ou definidas apenas pelas forças autônomas do mercado descritas pela escola austríaca, mas também por fatores não comerciais que influenciam ou limitam essas forças’

Com muitos anos de atraso, o Financial Times finalmente reconheceu, no início deste mês, que as regras econômicas hoje não são inspiradas ou definidas apenas pelas forças autônomas do mercado descritas pela escola austríaca, mas também por fatores não comerciais que influenciam ou limitam essas forças, como questões de segurança, defesa, saúde, competitividade estrutural e tecnológica (incluindo a inteligência artificial e as novas regras sobre o comércio de tecnologias de uso dual), migrações, narcoterrorismo, mudanças climáticas, economia digital, exigências geoestratégicas, variedades de protecionismo regulatório e o redesenho das cadeias de valor, para mencionar uma lista ilustrativa.  

Esses são, também, os insumos que hoje definem a complexa relocalização geoestratégica das chamadas cadeias de valor, um assunto ignorado pela obsoleta literatura econômica de referência.  

Nos últimos dias, também se publicou bastante material sobre a IA. Nos textos legais embrionários de grande escala já adotados ou elaborados, ainda não se discute com a devida energia e detalhe como lidar com o risco de criar enormes exércitos de desempregados por meio do uso de novas tecnologias.  

Todos sabem que esses desafios trazem consigo efeitos indesejados, através do “desemprego friccional”, um tema bem conhecido e estudado (em teoria) pela profissão econômica. De forma alguma a magnitude do problema indica apenas a existência de um “dano colateral” tolerável.  

Na OMC o conhecimento está sujeito a regras contratuais de compra e venda (ver Acordo Trips da Rodada Uruguai), cuja existência gera importantes direitos e obrigações econômicas em matéria de propriedade intelectual’

Recentemente, após finalizar uma primeira versão desta coluna, o grupo de especialistas, a “título pessoal”, convocado pelas Nações Unidas, divulgou um relatório feito às pressas, onde não se discute seriamente a nova tecnologia, pois parece esquecer que na OMC o conhecimento está sujeito a regras contratuais de compra e venda (ver Acordo Trips da Rodada Uruguai), cuja existência gera importantes direitos e obrigações econômicas em matéria de propriedade intelectual.  

Além disso, o relatório parece não ter considerado adequadamente que a transferência de conhecimento que permite criar ou reforçar lideranças bélicas e estratégicas artificiais implica administrar com seriedade uma ferramenta de crucial valor político. No mundo de “América Primeiro” e da autonomia estratégica europeia, esses não são dados ornamentais.  

É sobre isso que trata parte da enorme controvérsia que hoje define as relações entre China e Estados Unidos.  

O relatório dos especialistas é intitulado Governando a Inteligência Artificial para a humanidade (Governing Artificial Intelligence for Humanity).  

Em junho de 2024, a União Europeia adotou a primeira legislação regional obrigatória sobre IA, que inclui uma definição dessa tecnologia, o imperativo de vincular suas regras aos níveis de risco (risk approach), a necessidade de harmonizar as disciplinas sobre o tema a nível internacional, mais definições sobre transparência, regras aplicáveis à segurança, saúde e atividade militar, e um ícone que sugere incluir o inventário das atividades que serão automaticamente inelegíveis para o uso da referida tecnologia.

Jorge Riaboi diplomata e jornalista. Seus textos são publicados originalmente no jornal argentino Clarín

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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