21 novembro 2024

Brics –  Risco ou oportunidade para o Brasil?

Na presidência da Cúpula do Brics em 2025, o Brasil estará em condições de reafirmar os dois paradigmas históricos de nossa política externa – autonomia e desenvolvimento. Assim, sem ambiguidades, nossa diplomacia poderá contribuir para que a agenda do Brics não seja ditada pela China e pelo viés antiocidental

Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Xi Jinping, durante visita do chinês ao Brasil (Foto: Flickr/Palácio do Planalto)

O Brics foi criado por representante do ícone do capitalismo financeiro – o banco Goldman Sachs – mas, cerca de duas décadas mais tarde, seria considerado, por ironia do destino, o embrião de um grande movimento antiocidental liderado pela China. 

Essa curiosa evolução corresponde ao perfil atual do Brics? Que fenômenos explicam a metamorfose – um agrupamento econômico de países emergentes transformado em entidade geopolítica de alcance mundial? A ascensão da China à condição de superpotência rival dos EUA e sua aliança com a Rússia, após a invasão da Ucrânia, desfiguraram o perfil original da entidade? O Brics é risco ou oportunidade para o Brasil? 

Na sua origem, em 2001, a sigla BRIC reunia apenas as quatro grandes economias emergentes – Brasil, Rússia, Índia e China. Apenas em 2006, na Assembleia Geral das Nações Unidas, por iniciativa da Rússia, os chanceleres desses quatro países formalizaram a criação do grupo. 

Em 2009 ocorreu a 1ª cúpula, na cidade russa de Yekaterinburg, e um ano depois a África do Sul passou a integrar o Brics. Na grave crise financeira internacional de 2008, o agrupamento teve importante papel, com a contribuição dos países emergentes para a recuperação da economia internacional. 

O Brics reúne hoje a segunda maior economia do mundo (China), dois países que estão entre as dez maiores economias ( Índia e Brasil) e a maior economia da África ( África do Sul). Com a recente expansão, que incorporou quatro novos membros – Egito, Irã, Emirados Árabes Unidos (UAE) e Etiópia – o Brics ganhou projeção econômica e peso político. 

Hoje representa 35,65% do PIB global ( superior aos 30,3% do G7) e 45% da população mundial ( em contraste com menos de 10% do G7). Além dessa expansão, mais de 30 países manifestaram intenção de integrar o grupo, na condição de membros associados, sem direito a voto. 

‘A trajetória da China vem moldando, em grande medida, a evolução do Brics’

A trajetória da China vem moldando, em grande medida, a evolução do Brics. Desde as reformas liberalizantes de Deng Xiaoping, iniciadas em 1978, até o mandato de Hu Jintao (2008-2010), a China priorizava  crescimento econômico com low profile geopolítico, o que deu ao país o perfil de gigante econômico e anão político. 

Nesse período, a expansão econômica da China alimentava a globalização, desenhava uma amistosa relação sino-norte-americana e produzia benefícios generalizados. A mudança desse padrão ocorreu com a posse de Xi Jinping, em 2012, que reforçou o autoritarismo doméstico e inaugurou crescente assertividade externa.

Essa inflexão na política externa chinesa, combinada com o nacionalismo de Trump – Make America Great Again (MAGA) – , distanciou as duas superpotências, o que foi potencializado pela invasão russa da Ucrânia. Esses movimentos tiveram grande repercussão sobre a trajetória do Brics. A invasão produziu forte reação ocidental, inesperada coesão da Otan, ao mesmo tempo em que China e Rússia selavam sólida aliança. 

‘As crescentes tensões Leste-Oeste e o extraordinário avanço econômico da China se traduziram em sua clara hegemonia no âmbito do Brics e na diretriz chinesa de transformar o agrupamento em instrumento antiocidental’

As crescentes tensões Leste-Oeste e o extraordinário avanço econômico da China se traduziram em sua clara hegemonia no âmbito do Brics e na diretriz chinesa de transformar o agrupamento em instrumento antiocidental, tendo a Rússia como leal parceira. Iniciativas chinesas de grande impacto consolidaram essa hegemonia – a Belt and Road Initiative, de 2013, a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), e medidas destinadas à internacionalização do yuan.

Ao mesmo tempo, se ampliavam exponencialmente os investimentos chineses em infraestrutura na Ásia, África e América Latina, o que criou vínculos econômicos e também políticos entre a China e o chamado Sul Global. Protagonista desse cenário, foi natural que a China passasse a instrumentalizar o Brics para seus propósitos geopolíticos, em aliança com a Rússia. Esse movimento se consolidou com a determinação chinesa de ampliar o Brics, apesar da firme oposição de Brasil e Índia, que ao final se curvaram diante do peso chinês. 

‘A ampliação configurou um novo perfil do Brics. Brasil e Índia foram forçados a aceitar a ampliação, mas não o viés antiocidental, o que provocou uma fissura geopolítica no interior do grupo’

A ampliação configurou um novo perfil do Brics. Todos os novos integrantes eram regimes autoritários, e a inclusão do Irã conformava um nítido viés antiocidental. Brasil e Índia foram forçados a aceitar a ampliação, mas não o viés antiocidental, o que provocou uma fissura geopolítica no interior do grupo.  

Antes de olhar essa fissura, é preciso lembrar que cerca de 30 países já manifestaram intenção de integrar o Brics, o que torna relevante  distinguir dois possíveis destinos para o grupo. 

O primeiro, mais visível com a inclusão dos quatro novos países membros e dos 13 associados, aproximaria o Brics de destino um tanto semelhante ao do G77 na ONU, que preservou a retórica, mas perdeu a substância e o peso político. 

O segundo destino seria o reverso do Movimento Não Alinhado (MNA) dos anos 1950, que resistiu a integrar a esfera de influência das duas superpotências. O novo Brics substancialmente ampliado seria uma espécie de “Movimento Alinhado Antiocidental”, sob a égide da China, em forte aliança com Rússia e Irã, com apoio de membros do Sul Global. 

‘Nenhum dos dois possíveis destinos do grupo interessa ao Brasil ou à Índia. Nem a irrelevância nem o embrião de movimento antiocidental’

Nenhum desses dois destinos interessa ao Brasil ou à Índia. Nem o primeiro, de irrelevância, nem o segundo, embrião de movimento antiocidental. Vale lembrar que Índia e Brasil são os dois países mais influentes no mundo em desenvolvimento, com sólida tradição de autonomia em relação às superpotências. 

Para a Índia, quinta economia do mundo, não interessa um Brics sob a hegemonia da China, vizinha rival em termos de influência regional, e com quem tem problemas fronteiriços históricos, apenas parcialmente amainados com o recente acordo sobre patrulhamento de fronteira. Para o Brasil, identificado com os valores históricos do Ocidente, tampouco interessa um Brics dominado pela China, apesar de sua decisiva importância econômica. Em 2003, nossas exportações para a China eram de US$ 6,6 bilhões, enquanto que em 2023 atingiram US$104 bilhões; no início de 2024, a China foi responsável por 29,1% do total de nossas exportações, por 43% de nosso superávit comercial global e já figura como o oitavo maior investidor, com grande potencial de expansão.

O Brics é importante para nossa política externa por diversos motivos: espaço de articulação política e diplomática; interesse brasileiro na conformação de nova governança global; e importante plataforma de cooperação. 

‘Índia e Brasil têm interesses convergentes na relação com o Brics, o que se reflete tanto nesses objetivos como na rejeição do viés antiocidental, acentuado após a invasão da Ucrânia e o ingresso do Irã’

Nesse sentido, Índia e Brasil têm interesses convergentes na relação com o Brics, o que se reflete tanto nesses objetivos como na rejeição do viés antiocidental, acentuado após a invasão da Ucrânia e o ingresso do Irã. A guerra contaminou o Brics porque um importante membro fundador passou a ser visto como antiocidental e ao mesmo tempo fiel aliado da China. 

Enquanto a Índia tem reafirmado perfil opositor ao viés antiocidental, o Brasil parece ter-se dele distanciado, sobretudo em consequência de manifestações do presidente Lula sobre questões internacionais: as críticas ao Ocidente como responsável por alimentar a guerra na Ucrânia; o projeto sino-brasileiro para o fim da guerra, com óbvio viés pró Rússia; o insistente apoio à internacionalização do yuan, em substituição ao dólar; a defesa do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), como substituto das instituições de Bretton Woods. Tais declarações refletem maior condescendência de nossa diplomacia em relação ao viés antiocidental do Brics. 

A recente cúpula em Kazan refletiu o dilema atual do Brics: entidade destinada a promover reformas econômicas e políticas na governança global, em benefício do conjunto da comunidade internacional; ou movimento antiocidental, sob a égide da China, com amplo apoio do Sul Global. Esse último perfil contrasta com o prevalecente no período pré-guerra na Ucrânia, pautado por maior pragmatismo, quando a Rússia não usava o Brics como um refúgio para escapar do isolamento, das sanções internacionais e destinado a antagonizar o Ocidente.

O Brics tem grande atrativo para numerosos países, sobretudo do Sul Global, pelo potencial de contribuir para reformas na governança global. Mas uma agenda do agrupamento ditada pela China deverá elevar o nível de tensão entre as superpotências, com crescentes represálias de EUA e União Europeia contra China e Rússia. Esse cenário em nada favorece a comunidade internacional. 

‘O Brics tem relevância para o Brasil não só no plano global, mas agora também na esfera regional, como ficou claro em nossa recente oposição ao ingresso da Venezuela’

O Brics tem relevância para o Brasil não só no plano global, mas agora também na esfera regional, como ficou claro em nossa recente oposição ao ingresso da Venezuela, o que provocou uma escalada de acusações descabidas e infundadas do governo Maduro contra o Brasil. 

A complacência dos governos Lula e Dilma, ao longo de quase um quinto de século, em relação aos ataques contra instituições e às reiteradas violações de direitos humanos praticadas por Chávez e Maduro contribuiu para o desgaste da política externa brasileira na região. 

Como ressaltado por diversos analistas, Lula construiu sua própria armadilha na Venezuela. O lamentável desfecho foi defender o indefensável e se omitir na firme condenação – apoiada pelos regimes democráticos da região – da comprovada fraude eleitoral de 2024. Nada justifica a destemperada reação de Maduro, mas o lamentável episódio deve servir para uma necessária e inescapável autocrítica de nossa diplomacia. 

Na presidência da Cúpula do Brics em 2025, o Brasil estará em condições de reafirmar os dois paradigmas históricos de nossa política externa – autonomia e desenvolvimento. Assim, sem ambiguidades, nossa diplomacia poderá contribuir para que a agenda do Brics não seja ditada pela China. 

Esse é um objetivo difícil de alcançar. Mas ao persegui-lo, o Brasil se identificará com as legítimas aspirações de reforma da ordem internacional que inspiram não só parte do Ocidente, mas países do Sul Global e, em especial, Brasil e Índia. Só assim o Brics será uma oportunidade, e não um risco, para nosso país. 

Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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