Um ano após o ataque de apoiadores trumpistas ao Congresso dos EUA, contestando o resultado da eleição que, estimulado pelo então presidente, julgavam fraudada, um general norte-americano publicou artigo no Washington Post manifestando a preocupação sobre o dia seguinte das eleições presidenciais em 2024 e a ameaça de divisão entre os militares, o que poderia colocar em risco a democracia no país. Não afastando a possibilidade de contestação dos resultados da eleição e de um golpe de estado, o militar aponta para o risco de confrontação no interior das FFAA e a eventual quebra da hierarquia para respaldar essa diferente visão Todos os militares juram respeitar a Constituição, mas em uma eleição contestada, com lealdades divididas, alguns poderão seguir as ordens do comandante em chefe e outros o comando trumpista. Como exemplo, menciona a recusa da Guarda Nacional em acatar pedido do presidente Biden para que todos os seus membros se vacinassem. Com o país muito dividido, as FFAA e o Congresso deveriam tomar medidas para prevenir qualquer tentativa de insurreição e adotar providências cautelares, observa.
O alerta do militar norte-americano sobre a ameaça à quebra dos valores democráticos nos EUA, a partir de uma ação política das FFAA, não poderia ser mais atual para o cenário político brasileiro. A descrição feita pelo militar norte-americano muito se assemelha a uma série de atitudes que colocam as forças armadas brasileiras no centro do debate político nacional.
A gradual profissionalização das FFAA nos últimos 35 anos está sendo testada nos dias que correm. No atual governo, surgiu uma situação diferente dos governos anteriores desde 1985. Desde o período de governos militares, nos últimos trinta anos, podem ter surgido tensões esporádicas, mas atualmente elas se acentuaram a partir da participação de grande número de militares da ativa e da reserva em cargos públicos no governo federal. A crescente exposição dos militares no governo, com acusações de corrupção, de ameaça à democracia e de contestação das urnas eletrônicas e das ações do TSE estão causando um forte desgaste à imagem pública das FFAA. Os acontecimentos do 7 de setembro, com o silêncio eloquente dos comandantes militares, contudo, reafirmaram o papel profissional e constitucional das FFAA. A politização das Polícias Militares estaduais preocupa, em especial, se apoiarem pessoas armadas, não militares, passíveis de reforçar um movimento de apoio ao presidente, porque poderão chocar-se com as FFAA.
Nas últimas semanas, afirmações de que as FFAA não assistirão passivamente ao pleito, de que as FFAA deverão fazer apuração paralela da votação, por questionar o sistema de urnas eletrônicas e a lisura das apurações (auditoria privada), o pedido do Ministro da Defesa para a divulgação das sugestões de aprimoramento da eleição apresentadas pelos militares, sobre a função das FFAA (“o permanente estado de prontidão das FFAA para o cumprimento de suas missões constitucionais”) parecem reforçar a ideia de que as FFAA poderiam desempenhar um papel de poder moderador, a luz do artigo 142 da Constituição, quando na realidade não há uma nova missão para as FFAA, além daquela definida pela Carta Magna, como decidido pelo STF.
Apesar da dubiedade de afirmações sobre a preservação da democracia, sobre eleições conturbadas, sobre ato de força que ponha em risco as instituições (“só Deus me tira de lá”), parcialidade do TSE, não há sinais de que as FFAA, como instituição, poderão se engajar em uma aventura que ameace as eleições e a democracia. A discrição da maioria das lideranças militares, em especial do Alto Comando, parece indicar que os militares deverão se manter dentro de seu papel de instituição de Estado, profissional, sem interferência política em apoio de partidos ou grupos políticos ou em decisões tomadas pelas instâncias civis competentes.
Assim, não me parece haver ameaça à realização das eleições, nem ações violentas antes de 2 de outubro, mas o roteiro que está sendo traçado indica que, dependendo do resultado da eleição, é real o risco de, no dia 2, haver mobilização de grupos radicais, armados, para tentar atacar o STF/STE, não o Congresso, como no caso dos EUA. De qualquer forma, a sociedade civil, o Congresso e as próprias FFAA devem estar atentos e mobilizados para evitar qualquer tentativa de ameaça à democracia.
As eleições brasileiras estão despertando crescente atenção no exterior também pela presença dominante de dois políticos que, por razões diferentes, despertam fortes reações e apreensão sobre as perspectivas políticas e econômicas do país. A preocupação com a preservação da democracia e a condenação do autoritarismo está muito presente hoje em um cenário de grande instabilidade global e de crescente confronto entre os dois regimes de governo, representados pelos EUA e China/Rússia.
Não tenho dúvida de que, se houver qualquer quebra das regras democráticas com o apoio das FFAA, a reação vinda de fora será imediata e o Brasil poderá ser alvo de sanções econômicas e comerciais que, além de aumentar o isolamento internacional do país, afetarão ainda mais o crescimento e os setores mais dinâmicos da economia nacional.
Rubens Barbosa, presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (CEDESEN)