As FFAA, nos últimos anos e, especialmente, antes e durante os acontecimentos de 8 de janeiro, como Instituição, não tomaram partido, apesar de sucessivas iniciativas em contrário, e permaneceram silenciosas e respeitosas da Constituição e do Estado de Direito. O não envolvimento da Instituição, fator importante para reduzir as tensões, e a disposição de identificar e punir militares da ativa que individualmente se omitiram ou participaram dos atos de vandalismo em Brasília, abrem um espaço para que a confiança seja restabelecida e o tema da relação entre civis e militares possa ser tratado de maneira objetiva. Preservar a Instituição e reafirmar a autoridade presidencial como comandante supremo, com a superação da desconfiança recíproca entre a Presidência da República e as FFAA, explicitada publicamente, foi um trabalho discreto e bem-sucedido do ministro da Defesa, Jose Múcio. “Ser militar é ser profissional, respeitar a hierarquia e a disciplina. É ser coeso, íntegro, ter espírito de corpo e defender a pátria. É ser uma instituição de Estado, apolítica e apartidária. Não interessa quem está no comando, a gente vai cumprir a missão do mesmo jeito”, complementou o novo comandante do exército, General Tomas Paiva. Em outras palavras, o que estava sendo discutido, sem ser explicitado, era a preeminência do poder civil.
Nas últimas décadas houve um declínio do Poder Político das FFAA, porém, nos últimos anos, verificou-se uma crescente erosão do controle civil sobre os militares com a fragilização da democracia, agravada pela divisão do país em todos os temas econômicos, políticos e sociais, e pela parcial politização no meio militar. Seria importante discutir mecanismos e medidas práticas para reforçar a confiança recíproca das Instituições e superar as críticas estimuladas por grupos radicais minoritários dos dois lados, contrários à pacificação.
O efetivo controle civil sobre os militares é parte da Democracia, concedido pela vontade do povo expressa nas eleições e deve ser efetivamente exercido no contexto do marco constitucional e sob o império da lei. Vai além de submeter-se ao governante de turno, pois significa obediência à democracia e à Constituição.
A discussão sobre o controle civil no relacionamento com os militares tem sido evitada historicamente por receio da reação das FFAA, em função das sucessivas interferências militares no processo político interno no Brasil, desde a Proclamação da República. Mesmo na Constituinte de 1988, logo após o período de controle militar da cena política interna, o tratamento dado ao assunto, pela delicadeza da matéria, resultou numa fórmula política de compromisso, (anistia e redação do artigo 142), com consequências negativas que permanecem até hoje.
As eleições presidenciais americanas em 2024, no clima de divisão e radicalização do país, motivaram 8 secretários de Defesa e 5 chefes do Estado Maior das FFAA dos EUA a elaborar alguns princípios sobre a prática do controle civil sobre os militares, que se aplicam também ao Brasil, como mostrei em artigo de 27 de janeiro.
“O controle civil deve ser exercido pelo Executivo pela cadeia de comando, desde o presidente até o ministro civil da Defesa por meio de ordens operacionais. O controle civil deve ser exercido pelo Legislativo por meio de poderes estabelecidos na Constituição, a começar pelo poder de declarar guerra e oferecer apoio as FFAA. O Congresso determina e autoriza os recursos públicos, sem os quais a atividade militar é impossível. O Congresso tem atribuição legal de supervisionar e decidir sobre a política e a estratégia nacional de defesa e aprovar o orçamento do Ministério da Defesa. Em certos casos ou em controvérsias, o controle civil é exercido pelo poder Judiciário pela revisão de políticas, ordens executivas e ações envolvendo os militares” (como foi o caso da decisão do STF sobre o alcance do artigo 142 da Constituição Federal).
“As lideranças militares e civis devem manter os militares afastados da atividade político partidária. Durante as eleições presidenciais, os militares têm uma dupla obrigação. Primeiro, porque a Constituição prevê apenas um comandante em chefe por vez, os militares devem auxiliar o atual comandante em chefe no exercício do dever constitucional de preservar, proteger e defender a Constituição. Segundo, porque são os eleitores (não os militares) que decidem quem vai ser o comandante em chefe, eles devem se preparar para ajudar quem os eleitores escolherem, conclui o documento”.
Nesse contexto, o Congresso, para fortalecer o Estado Democrático de Direito, poderia, mais adiante, vir a discutir a revisão do artigo 142 da Constituição Federal para eliminar a referência à possibilidade de convocação das FFAA por qualquer um dos chefes de Poder para a garantia de lei e da Ordem (GLO), atribuição de outros órgãos de segurança, conforme previsto na Constituição e na legislação em vigor.
Chegou o momento de colocar a questão do relações entre os civis e militares no centro das preocupações do Legislativo nacional e definir uma agenda que atenda aos interesses de todos e desmonte armadilhas ideológicas que dificultem a pacificação e possam estimular a radicalização política.
Rubens Barbosa, diplomata, presidente do Centro de Estudos de Defesa e Segurança Nacional.
Uma resposta
O Brasil é uma democracia saudável. Em democracias o tensionamento é permanente, pois uma das suas premissas é o movimento pendular que permite a renovação de tempos em tempos, mas há limites ao movimento.
O final da Guerra-fria e a emergência das novas ameaças, especialmente o narcotráfico, no plano externo, associado à redemocratização, no plano interno, encartavam os bastidores para a formação da nova ordem constitucional.
Havia pressão externa pela emergência da militarização da segurança e o processo levou à policiação das FFAA, trazendo grande exposição das suas fileiras aos solavancos comezinhos do dia a dia. O ponto sensível da policiação reside na previsão de controle subsidiário da Segurança Pública em nome da Garantia de Lei e Ordem (GLO).
A despeito de não ter havido a militarização da segurança, os reflexos decorrentes da possiblidade de qualquer chefe de poder convocar as FFAA, para atuar no plano interno contribuíram para a construção de uma imagem intervencionista dos militares que desembocou no fatídico 8/1.
Foi na gestão Bolsonaro que, conhecendo a alta aprovação dos militares perante a opinião pública, por conta das qualidades do militar profissional destacadas no texto, que foram reconduzidos à política, para legitimar seu projeto.
A estratégia do governo reforçou no ideário de parte da sociedade que a saída às ameaças de um possível retorno ao calvário de outra megaoperação de combate à corrupção seria sacrificar as liberdades democráticas em nome de uma virtual segurança.
A despeito do cuidado do legislador constituinte à época, a abordagem do autor é certeira ao sinalizar que há lacunas acerca do papel das FFAA que precisam ser preenchidas.