04 dezembro 2024

A queda de Roma, o Ocidente e as chances de um novo equilíbrio global 

Volta de Trump ao poder voltou a alimentar comparações entre o futuro dos EUA e a decadência do Império Romano, o que leva a dois caminhos para contornar o impasse econômico e político gerado pelo esgotamento do liberalismo excludente: respostas globais e reações isolacionistas. Somente uma governança global que expresse a multipolaridade dos poderes de facto é capaz de mobilizar meios financeiros para conter os movimentos entrópicos em curso

Foto oficial da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza durante a Cúpula do G20, no Rio. As agendas lideradas pelo Brasil na presidência do G20 apontam para uma possibilidade de engajamento coletivo construtivo (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

No livro Why empires fall: Rome, America and the future of the West, de 2023, o historiador Peter Heather e o economista John Rapley traçam novo paralelo entre a queda do Império Romano, no século V, e as transformações que ocorrem na economia e na política internacional nos dias de hoje.

Depois da eleição de Donald Trump, ressurgiram as interpretações que situam a decadência de Roma em fatores principalmente internos. No épico do século XVIII, Decline and Fall, E. Gibbon inova com uma crítica radical ao papel do cristianismo no enfraquecimento do mundo romano, já de certa forma “barbarizado”. Em Tout Empire Périra, nos anos 1980, Jean-Baptiste Duroselle qualifica o autoritarismo e o poder ilimitado da classe dominante como causas últimas da débâcle.

‘Heather desenvolveu a tese de que foi a periferia que se tornou gradualmente mais rica e capaz no campo militar, em parte devido ao próprio processo de romanização a que esteve sujeita durante séculos’

Em contraste com essas visões, Heather desenvolveu, ao longo de sua carreira no King’s College de Londres, a tese de que foi a periferia que se tornou gradualmente mais rica e capaz no campo militar, em parte devido ao próprio processo de romanização a que esteve sujeita durante séculos. Na obra Império e Bárbaros, Heather atribuiu aos fluxos migratórios e à interação econômica a transformação de dois mundos muito diferentes – o sofisticado império romano e os pequenos grupos de agricultores dominados, falantes de línguas germânicas – em sociedades e Estados notavelmente similares. 

Com base em pesquisas arqueológicas recentes, o historiador inglês explicou o fim da ordem mundial da antiguidade pelo aumento da população e da diversificação da atividade econômica nas fronteiras do império, com a formação de novas confederações dos povos “bárbaros”, que antes viviam isolados. 

‘Um processo de “globalização” dinamizou as forças latentes da mudança e veio a consolidar a predominância centro-europeia nos séculos seguintes’

Um processo de “globalização”, que guardaria semelhanças com as tendências contemporâneas, dinamizou as forças latentes da mudança e veio a consolidar a predominância centro-europeia nos séculos seguintes. 

Fatores geográficos, como a existência de rios navegáveis e a carência de recursos naturais obrigaram a Europa a desenvolver tecnologias de navegação, primeiro do Mediterrâneo, para importação de bens elaborados da Ásia, e depois do Atlântico, na expansão ao Novo Mundo e à África. Na política, inúmeras guerras intra-europeias favoreceram a superioridade militar, ainda que ao preço de uma colossal destruição de riqueza,  de que foi exemplo a rivalidade entre França e Inglaterra à época de Henrique VIII. 

A ascensão da Europa contou ainda com a falta de concorrência de outro império próximo, depois de Roma, uma vez que a geografia e outros fatores isolavam entre si as grandes civilizações constituídas por China, Índia e o império Otomano.

Em trajetória paralela, o economista John Rapley relacionou os impactos da globalização sobre a estabilidade política, transpondo para o campo da economia política internacional o nexo entre desigualdade de renda e instabilidade social observado comumente no plano interno. No livro Globalização e Desigualdade: A Espiral Descendente do Neoliberalismo, de 2004, analisou o impacto dos padrões de distribuição de renda sobre a estabilidade política em escala mundial. As políticas neoliberais dos anos 90 proporcionaram um maior rendimento agregado do sistema, mas distorceram sua distribuição, aumentando a volatilidade política, que contraditoriamente, acaba por minar a própria viabilidade do “regime” liberal. 

‘As privações relativas (se não absolutas) sentidas por cidadãos empobrecidos em países prósperos provoca, hoje, o mesmo tipo de desilusão e busca por soluções radicais observados no período que antecedeu a Revolução Francesa’

Segundo Rapley, as privações relativas (se não absolutas) sentidas por cidadãos empobrecidos em países prósperos provoca, hoje, o mesmo tipo de desilusão e busca por soluções radicais observados em O Antigo Regime e a Revolução Francesa. No período que antecedeu a revolução, o descontentamento foi mais acentuado nas regiões da França que haviam gozado de maior prosperidade econômica, de acordo com Alexis de Tocqueville. 

Inspirados nesses achados individuais, os dois autores procuram, neste trabalho conjunto, identificar convergências e distinções entre o declínio do império romano e do que denominam de “império do Ocidente”, em torno da hipótese principal de que o declínio dos impérios é sempre relativo, e não absoluto.

‘De 399 a 1999, a expansão de ambos os impérios em direção a vizinhos antes subdesenvolvidos, combinada com a concentração de riquezas nas mãos de poucos, plantou as sementes de destruição da hegemonia’

Cientes dos riscos do anacronismo, argumentam que, de 399 a 1999, em ciclos de vida imperiais paralelos e subjacentes, a expansão de ambos os impérios em direção a vizinhos antes subdesenvolvidos (que hoje podem estar a milhares de quilômetros de distância), combinada com a concentração de riquezas nas mãos de poucos, plantou as sementes de destruição da hegemonia. 

A dominação ocidental – europeia, por três séculos, e dos Estados Unidos, no século XX – sofre uma guinada dramática a partir do início do novo milênio. A estagnação econômica e a divisão política interna decorrem da discrepância entre as expectativas criadas pela mundialização cultural e as oportunidades efetivamente possíveis na globalização econômica. Mudanças tecnológicas aceleram a atomização da sociedade e precipitam o colapso do contrato social vigente, em que a elite prestava serviços de segurança e estabilidade, em troca da subordinação popular. 

A exemplo do que ocorreu com Roma, o “Ocidente” entrou em declínio relativo acelerado nos últimos 20, 30 anos, considerada a rápida ascensão da periferia que antes havia colonizado, sancionada pelo próprio outsourcing da produtividade industrial. 

‘Quando um regime cai, segue-se um período de intensa fermentação política, até que um novo pacto consiga conquistar o consentimento das comunidades políticas em que opera’

Naturalmente, a queda de um império não é imediata, mas um processo, que contempla alternativas de adaptação. Quando um regime cai, segue-se um período de intensa fermentação política, até que um novo pacto consiga conquistar o consentimento das comunidades políticas em que opera. 

Mesmo os desafios econômicos estruturais, que se tornaram cada vez mais frequentes desde a crise asiática de 1997, são suscetíveis de gestão e resolução temporária, como têm tentado fazer as principais potências econômicas ocidentais. Desde 2008, entretanto, a agudização da crise parece indicar que a superioridade do hegemon já não pode ser restabelecida. 

“Pelo menos dois tipos de estratégia estão em disputa para contornar o atual impasse econômico e político gerado pelo esgotamento do liberalismo excludente: respostas globais e reações isolacionistas’

De minha parte, observo que pelo menos dois tipos de estratégia estão em disputa para contornar o atual impasse econômico e político gerado pelo esgotamento do liberalismo excludente: respostas globais e reações isolacionistas. 

O brilhante Gibbon ensinou que os interesses decadentes podem conviver com potências ascendentes ou degenerar em massacres sangrentos e inúteis. O arranjo de transição alcançado depois da invasão de Roma, em 476 d.C., pelo rei Odoacro, permitiu a sobrevivência do império em Constantinopla por quase mil anos. Em contraponto, a recusa do imperador Honorius em atender às demandas dos povos vizinhos por terra e suprimentos resultaria, décadas antes, nos saques brutais de Roma pelo rei visigodo Alarico. 

‘As agendas lideradas pelo Brasil na presidência do G20 apontam para uma possibilidade de engajamento coletivo construtivo’

Ciente dos limites das comparações históricas, considero que as agendas lideradas pelo Brasil na presidência do G20 apontam para uma possibilidade de engajamento coletivo construtivo. Somente uma governança global que expresse a multipolaridade dos poderes de facto é capaz de mobilizar meios financeiros suficientes para realizar ações de combate à fome e promoção da saúde e resiliência climática para todos, de modo a conter os movimentos entrópicos em curso.

As respostas institucionais emanadas do centro do sistema, entretanto, têm sido insuficientes e projetam ainda maior instabilidade global. O futuro dirá se a opção por uma radicalidade nacional desesperada, que aposta no conflito direto com os novos “bárbaros”, dará razão, afinal, à tese clássica de que a morte de todo império é no fundo um suicídio. 

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À espera dos bárbaros*

O que esperamos na ágora reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?

Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.

Que leis hão de fazer os senadores? 

Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo

e de coroa solene se assentou

em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.

O nosso imperador conta saudar

o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe

um pergaminho no qual estão escritos

muitos nomes e títulos. 

Por que hoje os dois cônsules e os pretores

usam togas de púrpura, bordadas,

e pulseiras com grandes ametistas

e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?

Por que hoje empunham bastões tão preciosos

de ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,

tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores

derramar o seu verbo como sempre? 

É que os bárbaros chegam hoje

e aborrecem arengas, eloquências.

Por que subitamente esta inquietude?

(Que seriedade nas fisionomias!)

Por que tão rápido as ruas se esvaziam

e todos voltam para casa preocupados?

Porque é já noite, os bárbaros não vêm

e gente recém-chegada das fronteiras

diz que não há mais bárbaros. 

Sem bárbaros o que será de nós?

Ah! eles eram uma solução.     

*Poema de Konstantin Kaváfis, tradução de José Paulo Paes

Cláudia de Borba Maciel é diplomata e embaixadora do Brasil na Guiné Bissau. Mestre em relações internacionais pela UNB, atuou nas embaixadas do Brasil em Buenos Aires, Caracas, Quito e Paris, no Consulado em Munique e na Missão junto à ONU, em Genebra.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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