Queda de Assad na Síria – Novo equilíbrio de poder no Oriente Médio.
A derrubada de meio século de ditadura no país é fonte de esperança e de temor. Assusta o possível regresso do jihadismo e de facções ligadas ao fundamentalismo islâmico, mas há otimismo no fato de que Rússia e Irã estão hoje ausentes, o que reforça eventual trajetória de moderação e paz
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A queda da dinastia Assad, no poder há mais de meio século na Síria, abalou os fundamentos do equilíbrio de poder no Oriente Médio ao evidenciar o declínio da influência da Rússia e do Irã e a ascensão de Israel e da Turquia. A derrocada de Bashar al-Assad representa o fim de uma das ditaduras mais sanguinárias deste século, abre espaço para importantes mudanças, mas não assegura um caminho de maior tolerância e estabilidade.
A Síria é historicamente um ator chave no jogo político do Oriente Médio: Após a Primeira Guerra Mundial, com o fim do Império Otomano, passou a ter grande influência na região; durante a Guerra Fria, aliou-se ao panarabismo do Egito de Nasser, tendo sido tradicional aliado da União Soviética; e após a queda do Muro de Berlim manteve vínculos privilegiados com a Rússia, tornou-se aliada do Irã e executora de sua política na região.
‘Durante a Primavera Árabe, o regime de Bashar al-Assad esteve a ponto de desmoronar, mas teve decisivo apoio político e militar da Rússia e do Irã. Essa sobrevida do passado explica a morte do presente’
Durante a Primavera Árabe (2010-2012), o regime de Bashar al-Assad esteve a ponto de desmoronar – como o Egito de Mubarak e a Líbia de Kadhafi –, mas teve decisivo apoio político e militar da Rússia e do Irã, o que impediu a vitória das facções rebeldes. Essa sobrevida do passado explica a morte do presente. A invasão da Ucrânia desmobilizou o apoio militar russo à Síria. Ao mesmo tempo, o Irã – fragilizado pelos ataques de mísseis israelenses em seu território e pelos danos militares e de liderança sofridos pelo Hezbollah – não estava em condições de socorrer a Síria.
A fragilização dessas alianças explica com objetividade sua queda, mas pouco esclarece sobre os rumos do país pós-Assad. Esses desdobramentos dependem, em grande medida, de três fatores – o mosaico étnico-religioso da Síria; a origem e a evolução recente do partido no comando do novo governo – o Hayat Tahrir al-Sham (HTS); e o envolvimento dos países que ganharam projeção regional com a queda de Assad – EUA, Turquia e Israel.
A sociedade síria é um mosaico de etnias e religiões – cristãos maronitas, cristãos ortodoxos, sunitas, xiitas, drusos, alauítas. Esse perfil de extrema diversidade explica em parte a difícil unidade nacional, acentuada pela liderança de meio século da dinastia Assad, vinculada à minoria alauíta (10% da população), e mais próxima dos xiitas do que da maioria sunita do país.
‘A tragédia vivida pela sociedade síria tem raros paralelos recentes: mais de 600 mil mortos; 13 milhões de deslocados; e 6,8 milhões na diáspora. Dos 15 milhões de habitantes na Síria de hoje, cerca de 90% vivem na miséria’
Desde a Primavera Árabe, a tragédia vivida pela sociedade síria tem raros paralelos recentes: mais de 600 mil mortos; 13 milhões de deslocados; e 6,8 milhões na diáspora. Dos 15 milhões de habitantes na Síria de hoje, cerca de 90% vivem na miséria.
Outra variável que dificulta o aparecimento do cenário de recuperação e moderação anunciado pelo HTS é a origem do movimento. Seu líder, Abu Mohammad Jolani, nasceu na Arábia Saudita, filho de exilados sírios, migrou para o Iraque em 2003, quando se juntou ao grupo terrorista al-Qaeda. Apesar desse histórico terrorista, o HTS evoluiu a partir de 2015, quando negou ter vínculos com a organização mãe – o Estado Islâmico. No ano seguinte, o líder rompeu publicamente com a al-Qaeda e outros grupos radicais islâmicos.
Desde então, o partido tem cultivado uma imagem de moderação, de tolerância e tem expulsado de seus quadros os membros pertencentes ao Estado Islâmico. Grupos e entidades sírias ligadas à defesa dos direitos humanos confirmam que, de modo geral, Jolani tem cumprido suas promessas de moderação, liberdade de culto e direitos para as mulheres.
‘Há muito ceticismo sobre uma política mais moderada a ser seguida por parte do HTS. O paralelo frequente é com os Talibãs do Afeganistão, que também anunciavam moderação, rapidamente abandonada ao assumirem o poder’
No plano internacional, o líder declarou que seus inimigos são o Irã e o Hezbollah, mas não os EUA e Israel. Apesar dessa evolução positiva, há muito ceticismo sobre uma política mais moderada a ser seguida por parte do HTS. O paralelo frequente é com os Talibãs do Afeganistão, que também anunciavam moderação, rapidamente abandonada ao assumirem o poder.
Um fator de preocupação sobre o desdobramento dos acontecimentos na Síria está ligado ao envolvimento das potências regionais beneficiadas com a queda de Assad – Turquia e Israel. Como antes indicado, os responsáveis pela sobrevivência do antigo regime – Rússia e Irã – não vieram em apoio ao ditador. A prioridade óbvia para a Rússia é a integridade de sua importante base naval na Síria, que foi responsável em grande medida pelo apoio ao regime de Assad. O HTS tem dado indicações de que pretende preservar esse interesse russo.
Os EUA mantêm força militar que atua ao lado dos curdos para combater o Estado Islâmico e al-Qaeda. Em contraste com os EUA, que saudaram a mudança de regime – com a ressalva de que é preciso evitar a fragmentação do país e o avanço do terrorismo , a China tem-se mantido silente, como reflexo de seu baixo perfil político no Oriente Médio.
‘As reações de Israel e Turquia à mudança de regime foram intensas e produziram conflitos localizados em diversas regiões do país’
As reações de Israel e Turquia à mudança de regime foram intensas e produziram conflitos localizados em diversas regiões do país. No Norte houve choques entre as Forças Democráticas Sírias (ligadas aos curdos) e o Exército Nacional Sírio (apoiado pela Turquia).
Em menos de 48 horas após a queda de Assad, Israel lançou 350 ataques ao território sírio, com destruição de baterias antiaéreas, campos de aviação militar, bem como de instalações para fabricação de armas, aeronaves de combate e mísseis. Bombardeios da Força Aérea Israelense, segundo seu porta-voz, teriam destruído totalmente a frota naval do país e eliminado 80% da capacidade militar síria. Os EUA também atacaram alvos do Estado Islâmico no Leste da Síria, mas evitaram ações contra o Exército Nacional Sírio.
A Turquia, que abrigou mais de 3 milhões de refugiados, foi o vizinho que mais sofreu com os 13 anos de guerra civil na Síria. É o grande interessado na recuperação e na estabilidade do país, que poderiam reverter a diáspora síria e também conter o ímpeto para o autogoverno por parte da minoria curda. A Turquia vem ocupando há anos uma área na Síria, com o objetivo de impedir a colaboração entre os curdos sírios e os da Turquia, sempre suspeitos de buscar a secessão.
‘A mudança cria condições para as Forças de Defesa Israelenses (FDI) destruírem milícias sírias opositoras de Israel e, assim, expandir sua influência regional’
Por razões muito diferentes da Turquia, Israel é o outro grande beneficiário da mudança de regime na Síria, que neutralizou esse rival histórico, apoiado pelo grande inimigo – o Irã. A mudança cria condições para as Forças de Defesa Israelenses (FDI) destruírem milícias sírias opositoras de Israel e, assim, expandir sua influência regional, já muito ampliada com as recentes derrotas militares do Irã e com o enfraquecimento de seu mais importante proxy, o Hezbollah.
Os países árabes sunitas – notadamente Egito, Jordânia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos – certamente se beneficiam com a queda de um aliado do Irã. Entretanto, devem também temer a possibilidade de vir o HTS a encarnar e promover o radicalismo islâmico, com possível eco em suas sociedades – ameaça potencial a seus regimes moderados. .
Esses cenários favoráveis poderão ser revertidos, caso a mudança de regime produza a proliferação de conflitos, o enfraquecimento do HTS e a volta da guerra civil síria.
A fadiga de uma população devastada por 13 anos de guerra civil e desejosa de paz favorece o cenário positivo. Mas é igualmente previsível a ampliação de conflitos entre as diversas facções que se uniram para a derrota do antigo regime. Caso as respostas do HTS sejam excessivamente repressivas e excludentes em relação à maioria da população, o cenário positivo poderá se dissolver.
A derrubada de meio século de ditadura na Síria é fonte de esperança e de temor. O temor resulta do possível regresso do jihadismo e de facções ligadas ao fundamentalismo islâmico. A esperança reside no fato de que as duas forças responsáveis pela sobrevida do regime sanguinário de Assad – Rússia e Irã – estão hoje ausentes da Síria, o que reforça eventual trajetória de moderação e paz. Também atua no mesmo sentido o interesse da Turquia na reconstrução do país, e de Israel no combate às milícias vinculadas ao Estado Islâmico. O distanciamento da Rússia e do Irã, combinado com o baixo perfil da China na região, reforça o papel hegemônico dos EUA na atual encruzilhada histórica da Síria.
Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.
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