A independência do Brasil como narrativa identitária nacional
Ainda que seja difícil pensar em uma sociedade sem contradições identitárias, faz-se necessário revisitar e reavaliar mitos nacionais como o da Independência para desconstruir o racismo e a violência estrutural da sociedade brasileira, ampliar os espaços e o alcance da cidadania e, principalmente, combater os privilégios de classe consolidados por anos em nosso país
A celebração do bicentenário da Independência do Brasil entre 2022 e 2024 foi marcada por uma disputa de narrativas identitárias no Brasil. O país vivia um período conturbado que unia embates ideológicos, uma disputa narrativa em torno da epidemia de COVID-19, crises social, econômica e política, escândalos de corrupção dominando o cenário midiático e de redes sociais, além de denúncias de seletividade da justiça na condenação de parte da classe política.
Este artigo se propõe a refletir sobre o papel da Independência na construção narrativa da identidade nacional brasileira e como algumas visões seletivas da história ainda foram reforçadas e replicadas na celebração dos 200 anos desde o grito do Ipiranga(1).
De fato, olhando o passado a partir do presente, como proposto pela visão narrativa da realidade (2), vivemos um período de reinterpretação do período histórico de 1822. O fenômeno também pode ser observado na imprensa e em pesquisas recentes. Porém, como em todos os momentos de embate identitário, as novas propostas historiográficas estão em constante conflito com a visão clássica da Independência, construída e legitimada por muitos anos no imaginário coletivo brasileiro.
A consolidação da imagem da Independência como um ato heroico de D. Pedro I às margens do Ipiranga (3), totalmente pacífica e ordeira, foi construída minuciosamente pela elite brasileira ao longo do século XIX para ajudar na consolidação do mito nacional. A cena presente no quadro de Pedro Américo, reproduzida em quase todos os livros didáticos de história do Brasil, com D. Pedro I no centro, seguido por membros da elite, celebrado por sua guarda e o povo apenas como expectador, ainda é a ideia predominante do que foi a separação do Brasil de Portugal.
Na primeira metade do século XIX, o Estado-nação era o modelo identitário padrão. A Independência dos Estados Unidos da América e a Revolução Francesa haviam estabelecido um arsenal ideológico e um caminho jurídico para as organizações políticas que serviu de base para os diversos países que se formavam à época.
A ideia de que a organização política deveria ser coincidente com a comunidade cultural, levando para as fronteiras do Estado a ideia de vínculos comunitários, até então experimentadas em vínculos cotidianos e de proximidade, foi imposta por um projeto de poder, mas criou uma ideia de comunidade nacional que rapidamente se consolidou como a única possível.
O sentimento que se cria é de pertencimento a uma comunidade ancestral, adormecida por anos e despertada das trevas da Idade Média pela criação do Estado Nacional. No lugar de burgueses, proletários e padres, cria-se o francês, o italiano, o alemão, ligados, sobretudo, ao território.
Apesar de, à primeira vista, até parecer uma comunidade democrática, em que os diferentes tipos sociais se unem sob a aura da nacionalidade, essa uniformização cultural pressupõe a imposição de uma determinada narrativa – geralmente ligada à cultura erudita – sobre uma infinidade de outras pequenas narrativas de culturas populares preexistentes, utilizando-se da educação oficial e servindo-se da instrumentalização do Estado para garantir sua prevalência.
A nação é, portanto, uma entidade ilusória, que só existe enquanto narrativa, criando e recriando personagens, estabelecendo e esquecendo as memórias que lhe forem convenientes, desenhando símbolos, bandeiras, mapas e o que for necessário para, nos termos de Moscovici (4), ancorar e objetivar uma nova situação de poder (5). Como escreve Anthony Smith (6), “as nações definem, em primeiro lugar, um espaço social definido, dentro do qual os seus membros devem viver e trabalhar, e demarcam um território histórico, que fixa a comunidade no tempo e no espaço”.
Podemos dizer, portanto, como afirma Lilia Moritz Schwarcz (7) na apresentação do clássico de Benedict Anderson, Comunidades imaginadas, que “mais do que inventadas, nações são ‘imaginadas’, no sentido que fazem sentido para a ‘alma’ e constituem objetos de desejos e projeções”.
Esse conjunto de representações – que Moscovici (8) chama de representações sociais – forma uma rede simbólica que se sobrepõe ao real, isola campos de sentido e cria significados. O que chamamos de real, assim, só é percebido por meio de símbolos e, já distorcido, passa a determinar o que percebemos como realidade. As representações sociais são, para Moscovici, a formação mental de uma ideia a partir de um processo narrativo que é, também, comunicacional e discursivo. Esse processo se concretiza em outra ideia, a de signo, ainda que em um sistema semiológico segundo – a como propõe a teoria de Roland Barthes (9) sobre o mito – para depois conectar as representações sociais de Moscovici com a ideia de realidade narrativa de Paul Ricoeur (10).
O mecanismo da formação do mito, proposto por Barthes, nos permite compreender o percurso narrativo de formação do mito nacional: um conjunto de representações sociais ligadas a determinada comunidade imaginada, traduzidas em signo no sistema semiológico segundo de Barthes como comunidade nacional.
O mito, segundo a teoria proposta por Barthes, é um sistema particular, que se constroi a partir de uma cadeia de sentidos – semiológica – que já existe antes dele, por isso um sistema semiológico segundo.
A ideia de mito do autor francês, baseada na estrutura da linguagem e em sua percepção, parece-nos bastante adequada para apresentar um conceito que é apenas uma narrativa, sem um lastro em experiências. Não perceber a ideia de comunidade nacional como um mito é o primeiro passo para sua naturalização como único destino possível da humanidade no início da Idade Contemporânea. Como mito, no entanto, ele consegue se atualizar no tempo, mudando suas bases de legitimidade e permanecendo como metanarrativa dominante ao longo dos anos.
A compreensão do grupo de elementos de construção do mito nacional ajuda no entendimento de como o conjunto de representações sociais é enraizado em nosso imaginário para formar a narrativa nacional. Por meio do monopólio da violência que possui em seu território, o Estado-nação desloca significados e separa os sentidos que lhes são mais convenientes, impõe regras e formas de comportamento que possibilitem a reprodução de seu modelo no tempo, cria e recria a narrativa mitológica da nação para acelerar a reprodução do mito nacional.
Somos um país formado na contradição entre sua realidade escravocrata e a pretensão liberal que predominava no debate à época da Independência, vivendo a ilusão de dois nacionalismos paralelos: um cívico e branco; outro étnico e criado à medida para excluir o negro da formação nacional pretendida. Sem enfrentar sua contradição fundamental, atualizamos o mito nacional para acomodar a população preta, agora liberta, em um quadro que ainda se quer burguês e liberal, mas que manteve o racismo, a exclusão e os privilégios de classe praticamente intocados.
O resultado é a perpetuação, ainda que atualizada em diversos momentos, de um Brasil desigual e de cidadania precária, um país elitista e com um sistema político e social estabelecido para proteger os privilégios a todo custo.
Apresenta-se sempre um discurso modernizador, mas sem nunca deixar de ser conservador. Ainda que seja difícil pensar em uma sociedade sem contradições identitárias, faz-se necessário revisitar e reavaliar mitos nacionais como o da Independência para desconstruir o racismo e a violência estrutural da sociedade brasileira, ampliar os espaços e o alcance da cidadania e, principalmente, combater os privilégios de classe consolidados por anos em nosso país.
Apesar dos debates que seguem em aberto sobre o Brasil, acreditamos que tentar entender os mitos nacionais que moldaram nossa narrativa, observando como o arco dramático da rede alegórica da identidade nacional se materializa e se reproduz ao longo de nossa história, pode ser um caminho para a transformação social.
Toda narrativa de país e seu percurso de legitimação são construídos a partir de inúmeras visões de mundo e pontos de vista, mas também são constantemente manipulados pelo jogo de poder para poder moldar sua burocracia e seus laços de pertencimento à sua maneira.
Compreender os mecanismos simbólicos, históricos e políticos que dão base para esta narrativa identitária nacional, a partir de uma visão comunicacional, é, talvez, uma das contribuições possíveis deste texto para a democracia brasileira.
Notas
(1) O Grito do Ipiranga foi um evento histórico ocorrido em 7 de setembro de 1822, quando D. Pedro I proclamou a independência do Brasil às margens do rio Ipiranga, em São Paulo, rompendo os laços coloniais com Portugal.
(2) Ricoeur, Paul. “Narrative Time”. Critical Inquiry, Chicago, 1980, v. 7, n. 1, p. 169-190.
(3) Mais do que um lugar geográfico, o Ipiranga – como riacho e como Museu – é um lugar de memória, como concebido por Pierro Nora, em seu ensaio “Entre memória e história – A problemática dos lugares” (Revista Projeto História, n. 10, dez/1993, p. 7-26. São Paulo: PUC-SP). O Ipiranga como lugar de memória é um lugar tangível acessado fisicamente por milhões de brasileiros. É também um lugar funcional, desde a data da independência, que trabalha no processo de construção da memória brasileira. E, por fim, é um lugar simbólico, para o qual convergem características da memória, história e identidade do Brasil.
(4) Moscovici, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2010.
(5) Moscovici define a ancoragem como um processo “que transforma algo estranho e perturbador, que nos intriga, em nosso sistema particular de categorias e o compara com um paradigma de uma categoria que nós pensamos ser apropriada” (p. 61). Encontrando a categoria que aceite aquele estranho, automaticamente associamos todo um arcabouço memorial a ela, naturalizando o que antes era perturbador. Já a objetivação tem como função unir a ideia de não-familiaridade com a realidade, tornar algo abstrato em algo quase concreto, transformar o que está apenas na mente em algo que exista no mundo material. Por isso que Moscovici também dá à objetivação o nome de materialização, já que objetivar é reproduzir um conceito em uma imagem.
(6) Smith, A. Ethno-symbolism and nationalism: a cultural approach. London and New York: Routledge, 2009, p. 30.
(7) Schwarcz, Lilia M. Apresentação. In: ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 10.
(8) Moscovici, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2010.
(9) Barthes, R. Mitologias. Rio de Janeiro: Difel, 2010.
(10) Para o autor francês, a própria percepção do tempo só pode ser apreendida por meio de estruturas narrativas, sendo ela cronológica ou não. Ricoeur traça uma linha argumentativa bastante interessante para demonstrar como nossa intepretação da realidade é sempre narrativa. Ele começa mostrando a relação entre narratividade e temporalidade, o papel das estruturas narrativas em nossa percepção do tempo e como elas estão articuladas. Em seguida, passa a uma análise do papel do enredo, como a organização dos fatos narrados dão ao leitor uma percepção de uma linha temporal dentro da história.
Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e professor visitante na LSPR Jakarta. Tem mais de 15 anos de experiência em relações institucionais e comunicação corporativa, atuando em organizações nacionais e internacionais. Liderou as relações institucionais para a América Latina no King's College London e da ABERJE, Associação Brasileira de Comunicação Corporativa. É diretor de Comunicação e Relações Institucionais no Museu Paulista da USP, que reúne o Museu do Ipiranga e o Museu Republicano de Itu.
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