Número 68

Ano 18 / janeiro - março 2025

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A posição estratégica incomum do Brasil entre EUA e China

Da minha perspectiva em Washington, DC, onde os corredores do poder fervilham com discussões sobre o retorno de Trump à Casa Branca, a posição estratégica do Brasil entre os Estados Unidos e a China assume uma importância sem precedentes. Como maior economia da América Latina, as decisões tomadas em Brasília terão repercussões muito além das fronteiras sul-americanas, potencialmente remodelando a ordem internacional nas próximas décadas. Este momento histórico apresenta tanto desafios quanto oportunidades únicas para o país exercer sua influência no cenário global.

A visão do Potomac oferece perspectivas sem precedentes sobre como o delicado equilíbrio do Brasil é percebido no coração da política americana. Em think tanks, escritórios governamentais e círculos diplomáticos, as discussões focam cada vez mais no potencial do país de estabilizar ou perturbar a emergente ordem mundial bipolar. A abordagem sofisticada do Brasil em gerenciar influências concorrentes enquanto persegue seus interesses nacionais oferece lições valiosas para outras nações presas entre as potências mundiais dominantes. Esta habilidade diplomática tem se mostrado particularmente relevante em um momento de crescente tensão geopolítica.

Os números contam parte da história: as exportações do Brasil para a China ultrapassaram US$ 104 bilhões em 2023, dominadas por soja, minério de ferro e produtos cárneos. No mesmo período, o comércio com os Estados Unidos alcançou US$ 29,9 bilhões em exportações manufaturadas, destacando a natureza complementar dessas relações. No entanto, esses números apenas sugerem a complexa teia de interesses econômicos, tecnológicos e estratégicos que unem essas três nações. O Brasil tem demonstrado notável habilidade em diversificar suas parcerias comerciais, reduzindo vulnerabilidades e maximizando oportunidades em ambos os mercados, mas ainda está longe de ser o ideal.

A transformação das cadeias globais de suprimentos apresenta uma oportunidade estratégica e o Brasil parece excepcionalmente bem-posicionado para aproveitá-la. À medida que empresas em todo o mundo buscam diversificar suas estratégias de manufatura e fornecimento, a base industrial sofisticada do país sul-americano, combinada com sua localização estratégica, torna-o um centro atraente para cadeias de valor globais reorganizadas. O país tem investido significativamente em infraestrutura e capacitação tecnológica, criando um ambiente propício para atrair investimentos internacionais e manter sua autonomia estratégica.

Tecnologia e biotecnologia abrem oportunidades

O setor de tecnologia ilustra particularmente a crescente oportunidade do Brasil em gerenciar a competição entre grandes potências. O sistema de pagamento digital Pix, que revolucionou as transações financeiras em todo o país, é um exemplo notável desta capacidade. Enquanto os Estados Unidos promovem soluções do setor privado e a China impulsiona seus sistemas de pagamento digital apoiados pelo Estado, o Brasil criou uma solução independente que serve aos interesses nacionais e permanece compatível com as redes financeiras americanas e chinesas. Este sucesso mostra como o país pode desenvolver soluções tecnológicas que atendam às necessidades específicas de sua população e têm interoperabilidade internacional.

A indústria de semicondutores fornece outro exemplo convincente do posicionamento estratégico do Brasil. Investimentos recentes no polo tecnológico de Campinas provam como o país pode se posicionar em cadeias de suprimentos globais cruciais sem tentar competir diretamente com Taiwan ou Coreia do Sul na fabricação avançada de chips. Em vez disso, o Brasil identificou nichos específicos em que pode agregar valor sem perder sua autonomia tecnológica. Esta abordagem seletiva e estratégica permite ao país desenvolver competências críticas sem se envolver em competições diretas com potências tecnológicas estabelecidas.

O programa espacial brasileiro é um perfeito representante dessa abordagem de liderança regional. O Centro de Lançamento de Alcântara, com sua vantajosa localização equatorial, transformou-se em muito mais do que apenas um ativo nacional. Por meio de uma diplomacia cuidadosa e visão estratégica de longo prazo, o Brasil o transformou em um centro espacial regional com rigorosa soberania tecnológica — demonstrando como o país pode desenvolver capacidades avançadas enquanto promove cooperação regional e mantém parcerias internacionais estratégicas.

A bioeconomia representa outra fronteira onde a posição do Brasil entre os Estados Unidos e a China cria oportunidades únicas para o desenvolvimento regional. A vasta biodiversidade da Amazônia, combinada com as capacidades avançadas de pesquisa do Brasil, posiciona o país para liderar o setor de biotecnologia da América do Sul. O potencial para desenvolvimento de novos medicamentos, materiais e soluções sustentáveis nos coloca em uma posição privilegiada para influenciar o futuro da biotecnologia global.

A transição energética apresenta talvez a oportunidade mais convincente para o Brasil exercer liderança regional e equilibrar interesses das grandes potências. A expertise do país em energia renovável, particularmente em produção hidrelétrica e de biocombustíveis, fornece uma base sólida para liderar a transformação energética da América do Sul. O Brasil tem apresentado capacidade única de combinar segurança energética com sustentabilidade ambiental, estabelecendo um modelo que outros países em desenvolvimento podem seguir.

Programa espacial entre sistemas americano e chinês

O desenvolvimento da soberania tecnológica emerge como um componente crítico do posicionamento estratégico do Brasil. A abordagem equilibrada do país oferece lições valiosas para outras nações que buscam autonomia em um mundo interconectado. O desenvolvimento do programa espacial brasileiro exemplifica isso: em vez de escolher entre sistemas americanos ou chineses, o país cultivou parcerias estratégicas com ambos e desenvolveu capacidades próprias, garantindo independência em setores críticos.

A segurança cibernética tornou-se outro campo no qual o Brasil apresenta crescimento, apesar de precisar de novos e constantes investimentos. O país desenvolveu uma abordagem híbrida que incorpora algumas das melhores práticas internacionais — com controle soberano sobre sistemas críticos. O Centro Nacional de Segurança Cibernética do Brasil estabeleceu-se como modelo para países em desenvolvimento protegerem seus ativos digitais com cooperação internacional produtiva.

O futuro da posição estratégica do Brasil dependerá, em grande parte, de sua capacidade de manter esse delicado equilíbrio e avançar seus próprios interesses. Várias novas tendências provavelmente moldarão esse futuro. Primeiro, a competição tecnológica entre os Estados Unidos e a China se intensificará, em especial em campos emergentes como computação quântica, biotecnologia e materiais avançados. A experiência do Brasil em autonomia tecnológica, engajando-se com ambas as potências, fornece um modelo valioso para gerenciar essa competição crescente.

A integração regional merece particular atenção no planejamento estratégico do Brasil. Ao promover a integração sul-americana com flexibilidade estratégica, o Brasil pode aumentar o poder de barganha coletivo, sem sacrificar a autonomia nacional. O desenvolvimento bem-sucedido de sistemas regionais de pagamento, redes de energia e infraestrutura de transporte demonstra como a integração pode fortalecer, em vez de restringir, as opções estratégicas. Esta abordagem de “regionalismo estratégico” permite que o Brasil exerça liderança e preserve sua independência. Para isso, precisa acalmar a ânsia ideológica no relacionamento com vizinhos e adotar um pragmatismo ativo.

Oportunidade única ao receber a COP30

A liderança ambiental representa outro pilar fundamental para o futuro posicionamento estratégico do Brasil. Como anfitrião da COP30, o país tem uma oportunidade única de mostrar como a proteção ambiental pode se alinhar com o desenvolvimento econômico de maneira que sirvam aos interesses nacionais e regionais. A experiência brasileira em combinar conservação ambiental com desenvolvimento agrícola oferece lições valiosas para outras nações em desenvolvimento. A França, em particular, estará de olho em falhas na conservação ambiental e em razões para justificar sua posição contrária ao agro brasileiro.

A autonomia estratégica brasileira transcende o modelo tradicional de equilíbrio entre potências. O país desenvolveu uma arquitetura diplomática própria que combina instrumentos de poder regional com capacidades tecnológicas emergentes, permitindo-lhe exercer influência sem alinhamentos automáticos. Esta abordagem híbrida — que integra projetos como o Pix, o programa espacial de Alcântara e iniciativas de biotecnologia — estabelece um novo paradigma de inserção internacional para potências médias. O Brasil demonstra que a verdadeira independência estratégica não reside apenas na equidistância entre grandes poderes, mas na capacidade de criar e implementar soluções que atendam primariamente aos interesses nacionais.

Para aqueles que observam de Washington, a evolução do Brasil como ator global representa um dos desenvolvimentos mais interessantes nas relações internacionais contemporâneas. A habilidade do país em manter relações produtivas tanto com os Estados Unidos quanto com a China, enquanto avança seus próprios interesses, desafia a sabedoria convencional sobre as limitações enfrentadas por potências médias em uma era de competição entre grandes potências. As lições da experiência brasileira oferecem insights valiosos para outras nações que enfrentam desafios semelhantes, provando que é possível ter independência estratégica e se beneficiar da cooperação internacional.

Infelizmente, quando saímos do âmbito diplomático, o Brasil opera com uma compreensão bastante superficial dos mecanismos decisórios tanto de Washington quanto de Pequim. No caso americano, persiste uma visão simplista que superestima o papel do presidente e subestima a complexa interação entre Congresso, agências regulatórias e governos estaduais — atores fundamentais para questões críticas como barreiras comerciais e regulamentações técnicas.

Em relação à China, o déficit de entendimento é ainda mais alarmante: ao mesmo tempo que nossa dependência comercial se aprofunda, com o país asiático respondendo por mais de um terço das exportações brasileiras, temos um conhecimento rudimentar sobre o funcionamento do Partido Comunista chinês, as dinâmicas entre governo central e províncias, e os objetivos estratégicos de longo prazo da política industrial chinesa. Esta assimetria informacional se agrava pela dicotomia entre a expertise institucional do Itamaraty — que acumulou décadas de análise sofisticada sobre ambas as potências — e a absorção seletiva e muitas vezes distorcida desse conhecimento pela classe política, que tende a privilegiar narrativas simplificadas que se alinhem com suas preferências ideológicas ou eleitorais.

É preocupante que, mesmo após duas décadas de intenso comércio com a China, o Brasil ainda careça de centros de pesquisa robustos dedicados ao estudo sistemático da política, da economia e da sociedade chinesas — uma lacuna que outros países emergentes, como Singapura e Coreia do Sul, preencheram há muito tempo. O resultado é uma política externa que, apesar da competência técnica de sua burocracia especializada, frequentemente oscila entre extremos interpretativos que não refletem a complexidade dos interesses e motivações de nossos principais parceiros estratégicos.

A sofisticação da arquitetura diplomática brasileira contrasta com a persistente provincianização do debate político doméstico sobre relações internacionais. Enquanto o Itamaraty desenvolve instrumentos complexos de autonomia estratégica, uma parcela significativa da classe política insiste em reduzir a política externa a um palco para performances ideológicas e rivalidades partidárias. Esta dissonância entre capacidade institucional e imaturidade política compromete a consistência das iniciativas brasileiras, seja na mediação de conflitos regionais, nas negociações comerciais multilaterais ou no posicionamento frente às tensões sino-americanas. O Brasil só realizará plenamente seu potencial como ator global quando sua classe política compreender que diplomacia transcende ciclos eleitorais e que a credibilidade internacional, uma vez perdida por gestos impensados, leva décadas para ser reconstruída.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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