30 janeiro 2025

O dilema do corte de gastos – fotografia atraente x filme preocupante 

A economia brasileira aparenta ir bem no curto prazo e ter problemas em uma perspectiva mais longa. Há um debate dentro do governo sobre a necessidade, vantagens e desvantagens de redução das despesas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante posse de Fernando Haddad como ministro da Fazenda (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Os indicadores de curto prazo da economia brasileira (2024) revelam que o desempenho do PIB, do desemprego e da pobreza extrema foram muito promissores, mas contrastam com a evolução de indicadores negativos de endividamento, de câmbio e de inflação. Ou seja, a fotografia é boa, mas o filme é ruim.

Essa avaliação tem por base os seguintes dados. Em 2024, os indicadores foram muito positivos: forte crescimento do PIB (3,8%); baixo desemprego (6,4%); reduzido nível de pobreza extrema (4,4%). No entanto, a trajetória nos últimos dois anos foi bastante negativa. 

A relação dívida pública bruta/PIB em janeiro de 2023 era 71,4%; em novembro de 2024, subiu para 78,65%, e para janeiro de 2026 está estimada em 86%. Enquanto isso, no mercado de câmbio houve forte desvalorização do real: taxa de câmbio de R$ 5,20 (janeiro de 2023) e de R$5,86 (30 de janeiro de 2025). Além disso, a taxa de inflação cresceu de 3,9% (janeiro de 2024), para 4,84% (dezembro de 2024), ou seja, acima do teto da meta. 

‘Para o governo, o mercado provoca ataque especulativo. Para o mercado, o governo alimenta endividamento explosivo e inflação fora de controle’

Isso leva a duas visões bipolares – o governo (com exceção do ministro da Fazenda Fernando Haddad) se fixa na fotografia, enquanto os agentes econômicos (mercado) olham o filme. Para o governo, o mercado provoca ataque especulativo. Para o mercado, o governo alimenta endividamento explosivo e inflação fora de controle. Quem está certo?

Essas duas visões bipolares acabaram levando o país nas últimas semanas a uma conjuntura de elevada desvalorização, expectativas tanto de forte  aumento da inflação, como de disparada da relação dívida/PIB. A explicação convencional para conjunturas de forte desequilíbrio macroeconômico é a divisão entre esquerda desenvolvimentista e direita fiscalista. 

‘A razão mais adequada para elucidar o forte desequilíbrio atual é a fratura existente, no interior do próprio governo, entre esquerda arcaica e esquerda moderna’

Essa explicação se revela hoje insuficiente. A razão mais adequada para elucidar o forte desequilíbrio atual é a fratura existente, no interior do próprio governo, entre esquerda arcaica e esquerda moderna – a primeira personalizada pelo ministro Rui Costa e pela presidente do PT Gleisi Hoffmann, a segunda, por Haddad. 

Esquerda e direita são expressões aqui usadas no sentido atribuído por Norberto Bobbio – a esquerda prioriza igualdade e a direita, eficiência. A esquerda busca igualdade de oportunidades. A direita acredita que a eficiência trará aumento de produção, emprego e também das oportunidades.  

Gasto público e crescimento – A experiência brasileira: Lula I e Dilma

A esquerda moderna tem avaliação realista da relação entre gasto público e crescimento econômico, baseada em dois pilares: a experiência de política econômica dos governos anteriores do PT; e a teoria econômica keynesiana, bem como a chamada síntese neoclássica. Esses fundamentos – empírico e teórico – trazem úteis lições para compreender a relação gasto/crescimento e os rumos do atual debate. 

Para a esquerda moderna, dois momentos da política econômica brasileira – o primeiro mandato de Lula e o governo Dilma – tiveram resultados díspares e quase opostos para a relação entre gasto público e crescimento econômico. 

‘O primeiro governo Lula assumiu com forte crise de confiança quanto aos rumos da política fiscal, que começou a ser superada por meio de intensas negociações que produziram a chamada “transição civilizada”’

O primeiro governo Lula assumiu com forte crise de confiança quanto aos rumos da política fiscal. O dólar atingiu R$ 4, equivalente hoje à cotação recorde de R$8,50. Aquela desconfiança começou a ser superada por meio de intensas negociações que produziram entendimentos construtivos entre as equipes econômicas de FHC (Pedro Malan e Armínio Fraga) e de Lula (Antônio Palocci e Henrique Meireles). Foi a chamada “transição civilizada”, que produziu uma política fiscal restritiva, comprometida com a busca da estabilização. 

O resultado foi um superávit primário superior à meta, suficiente para ganhar a confiança de investidores, e para permitir ao país alcançar taxa média de crescimento econômico anual de 4% por um período de quatro anos. Assim, foi possível maximizar o crescimento, impulsionado também pelo boom das commodities. Essa política econômica deu continuidade ao Plano Real e foi mantida com êxito até a metade do segundo mandato de Lula, quando Palocci foi substituído por Mantega no Ministério da Fazenda. 

Em contraste com esse ciclo virtuoso de Lula, o governo Dilma seguiu trajetória de forte descontrole das contas públicas, cujas origens se situam na metade final do segundo mandato de Lula. 

Parte do déficit público durante o governo Dilma era justificável, pois se destinava a minimizar os efeitos recessivos da crise econômica internacional de 2008. Entretanto, essa política anticíclica, com forte expansão fiscal, foi mantida por tempo excessivo, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), de elevados subsídios aos chamados “campeões nacionais” e de ambiciosos planos de investimentos na área de energia (Petrobras). O resultado foi forte pressão sobre a taxa de inflação, artificialmente contida com controle de preço da gasolina. Essa trajetória resultou em elevado crescimento de 7,5% do PIB em 2010, mas, em contrapartida, o país sofreu vigorosa recessão em 2015 e 2016, com violenta queda total de 7% do PIB. 

Uma análise comparativa desses dois momentos da política econômica dos governos do PT revela um primeiro ciclo virtuoso, alicerçado na busca exitosa de superávit fiscal, que abriu caminho para um período de crescimento econômico sustentável, no primeiro mandato e na metade do segundo mandato de Lula. O reverso dessa trajetória ocorreu no governo Dilma, conforme acima descrito.

Gasto público e crescimento – Ensinamentos da teoria econômica

A literatura econômica tem abundantes estudos sobre a relação de causalidade entre gasto público e crescimento econômico e, assim, pode trazer esclarecimentos para o atual debate sobre corte de despesas públicas.

A teoria keynesiana é uma rica fonte de ensinamento sobre o papel do gasto público como instrumento de recuperação de uma economia em recessão, no curto prazo.  

‘O modelo criado por Keynes foi rejeitado pelos clássicos, pois na concorrência perfeita inexistia desemprego e recessão’

O modelo criado por Keynes – baseado em forte injeção de gasto público – foi rejeitado pelos clássicos, pois na concorrência perfeita inexistia desemprego e recessão. Os clássicos presumiam que as poupanças automaticamente se transformavam em investimento. Mas essa presunção caiu por terra nos anos 1930, com a “armadilha da liquidez”, segundo a qual, à medida que as poupanças crescem, o consumo cai, reduzindo a produção total, que por sua vez diminui a renda, da qual as poupanças são formadas. Ou seja, a saída da recessão exige um fator exógeno – o governo aumentando suas despesas. 

Esse ciclo virtuoso de retomada do crescimento anunciado por Keynes ocorria em economias em depressão ou com capacidade ociosa. Entretanto, em situações de pleno emprego, Keynes não recomendava política expansionista de gasto público. Ele demonstrava que, nesses casos, o aumento da demanda agregada (resultante da elevação do gasto público), não seria acompanhada de crescimento da oferta, uma vez que não havia capacidade ociosa dos fatores de produção. Assim, em pleno emprego, despesas governamentais elevadas resultam em crescimento da demanda agregada sem aumento da oferta, tendo como corolário  pressão sobre o nível geral dos preços, ou seja, aumento da taxa de inflação. 

Nos anos 1990, os novos keynesianos, representados por Joseph Stiglitz, passaram a justificar intervenção limitada do governo, como forma de solucionar o persistente alto desemprego, posterior à era do ultraliberalismo de Reagan/Thatcher. Ao mesmo tempo, incorporaram elementos da Síntese Neoclássica, que explica o prolongado desemprego a partir do comportamento dos indivíduos e que incorpora elementos da teoria das “expectativas racionais”. 

No começo dos anos 2000, Keynes foi revisitado com maior frequência, quando questões ligadas ao déficit e ao gasto público ganharam visibilidade, em consequência da recessão pós-crise internacional de 2008/2009.  

‘A economia brasileira hoje está em pleno emprego, com baixa capacidade ociosa, acompanhado por uma trajetória fortemente ascendente da dívida pública’

A economia brasileira hoje está em pleno emprego, com baixa capacidade ociosa, acompanhado por uma trajetória fortemente ascendente da dívida pública. A combinação dessas duas variáveis – pleno emprego e dívida ascendente – recomenda redução do gasto público. 

Como previa o modelo keynesiano e também a síntese neoclássica, nessas situações, as políticas expansionistas devem ser evitadas, pois  resultam em pressão inflacionária e elevação da taxa básica de juros pelo Banco Central, para reduzir o excesso de demanda agregada. Se o governo insiste em não reduzir seus gastos e manter a política expansionista, o resultado inevitável, segundo Keynes e os neoclássicos, é o aumento da taxa de inflação. 

A trajetória antes descrita corresponde à situação atual da economia brasileira. Essa conclusão deriva tanto de avaliação teórica – Keynes e neoclássicos – como empírica – o contraste entre a política econômica de Lula I e de Dilma.  

Essa constatação nos leva à pergunta inevitável. Por que o atual governo resiste tanto em aprovar uma política de redução do gasto público, diante de tantas evidências?  Quais são os argumentos contrários ao corte de despesas do governo na atual conjuntura da economia brasileira? 

Gasto público e crescimento – Os adversários do corte de gastos.

Um primeiro argumento contrário ao corte de gastos tem suas origens na rejeição à austeridade fiscal dos primeiros governos militares. Após o golpe de 64, foi criado o PAEG – Programa de Ação Econômica do Governo, responsável por política fiscal restritiva, reformas econômicas importantes (criação do Banco Central) e forte queda da inflação. Apesar do êxito inicial na estabilização, a política – mais tarde conhecida pela expressão “crescer o bolo para depois dividir” –  nunca mereceu apoio popular e o último governo militar reeditou o descontrole inflacionário que, duas décadas antes,  foi uma das justificativas para o golpe. Cortar despesas é dividir o bolo, mas para os ricos. 

‘O padrão que teve como referência o Consenso de Washington ficou conhecido como expressão do neoliberalismo, muito criticado por prescrever políticas amplamente impopulares. Quem defende corte de despesas é considerado neoliberal’

Um segundo argumento resulta da associação indevida entre corte de despesas do governo e neoliberalismo.  A crise da dívida externa, sobretudo nos anos 1980, exigiu programas de estabilização em diversos países, com ajuda do Fundo Monetário Internacional (FMI). Alguns desses programas, embora necessários, impunham condicionalidades excessivas, que se revelaram nefastas para os países em desenvolvimento. Esse padrão, que teve como referência o Consenso de Washington, ficou conhecido como expressão do neoliberalismo, muito criticado por prescrever políticas amplamente impopulares. Quem defende corte de despesas é considerado neoliberal. 

Um terceiro argumento contra o corte de gastos tem inspiração ética. Esses críticos sustentam que o corte de gastos do governo deveria começar pela eliminação dos supersalários do Judiciário e do Legislativo, bem como pela reforma no sistema de previdência dos militares. Essas medidas são de difícil viabilidade, pela força política dos Poderes Legislativo e Judiciário, bem como dos militares. Diante desse quadro, muitos argumentam que, como não é possível cortar despesas que afetam os poderosos, o governo resolve fazer cortes que prejudicam os pobres. 

‘O histórico da política brasileira deixa claro que o rigor fiscal nunca foi bom eleitor’

Um quarto argumento é de índole político-eleitoral. O histórico da política brasileira deixa claro que o rigor fiscal nunca foi bom eleitor.  Do regime militar, passando pelo impopular governo Temer, o fiscalismo nunca gerou votos. Ao contrário, JK – o ícone do gasto desenvolvimentista, e a política expansionista de Lula II foram grandes campeões de popularidade.  

Naturalmente preocupado com as eleições de 2026, o governo atual deveria se opor ao rigor fiscal. Assim, continua válido o slogan de Dilma “Gasto é Vida”. A contradição dessa lógica eleitoral reside, entre outros elementos, no seu timing. O adiamento do corte de gastos dois anos antes da data das eleições vai gerar taxa de inflação elevada e relação dívida pública /PIB fora de controle no ano eleitoral de 2025, ou seja, um cenário nada auspicioso para o governo incumbente.  

Cortar por quê? Por que cortar?

A questão do corte das despesas governamentais envolve uma vertente técnica – a relação entre gasto público e crescimento econômico – e uma dimensão política – os segmentos da sociedade penalizados ou beneficiados com o corte de gastos. 

Historicamente o debate em torno desse tema divide a sociedade entre desenvolvimentistas – uma esquerda defensora do aumento da presença do Estado na esfera econômica, e fiscalistas – uma direita que prioriza os agentes econômicos privados como o grande motor do crescimento.

‘O debate desse tema no Brasil de hoje apresenta uma singularidade – a divisão de opiniões ocorre no interior do próprio governo’

O debate desse tema no Brasil de hoje apresenta uma singularidade – a divisão de opiniões ocorre no interior do próprio governo. Além desse aspecto, no plano ideológico, a controvérsia não se dá entre esquerda e direita, mas fica limitada a duas facções da própria esquerda – a arcaica e a moderna. E esse divisionismo ocorre dentro do aparelho do Estado, o que produziu duas consequências sobre o processo decisório – paralisia e ambiguidade. A primeira foi responsável pela longa demora do governo para apresentar o programa do corte de gastos. A segunda explica a inconsistência de um programa destinado a reduzir despesas, mas que, contraditoriamente, amplia gastos (isenção do imposto de renda até a faixa de rendimentos de R$ 5 mil).

Os opositores do corte de gastos, na defesa de suas convicções, utilizam, como argumento, experiências econômicas sem levar em conta o contexto em que ocorreram. Por exemplo, o PAEG fez relevantes reformas estruturais na economia, mas, nos governos militares seguintes, teve como corolário políticas de concentração de renda draconianas para a massa de assalariados.

No plano externo, os exageros do liberalismo econômico, em uma era pós queda do Muro de Berlim – com o desmembramento da União Soviética e os EUA sem rival no mundo – terminaram por produzir uma globalização que foi “longe demais”, na feliz expressão de Dani Rodrik.  É condenável esse ultraliberalismo, mas isso não deve significar jogar por terra a teoria econômica e olhar o desenvolvimento como  produto do bom Estado voluntarista em luta contra o maldito mercado.

‘A explicação fundamental para a oposição ao corte de gastos reside no jogo de interesses refletido na elaboração do orçamento’

A explicação fundamental para a oposição ao corte de gastos reside no jogo de interesses refletido na elaboração do orçamento. Nesse sentido, o debate não envolve apenas divergências de política econômica, mas sim luta por interesses estabelecidos. A preservação desses, ou seja, a oposição ao corte de gastos, significa influência eleitoral, que se traduz em poder político. Assim, os quatro argumentos acima apresentados pela corrente opositora do corte de gastos são, em enorme medida, racionalizações destinadas a encobrir o verdadeiro jogo de interesses. A ruptura desse ciclo vicioso exige forte capital e vontade política hoje inexistentes.

Em contraste com a visão deformada da esquerda arcaica, a esquerda moderna, representada pelo Ministro Fernando Haddad, utiliza a contrastante experiência brasileira entre o gasto público bem-sucedido – o primeiro mandato de Lula – e o descontrole fiscal seguido de profunda recessão – o governo Dilma, para defender um necessário e expressivo corte de gasto do atual governo. Além desse referencial empírico, a esquerda moderna absorve os ensinamentos da teoria econômica – Keynes e a síntese neoclássica – que recomendam a contenção da espiral de endividamento público atualmente em curso, como instrumento indispensável para o crescimento sustentado da economia brasileira. 

Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Tags:

Economia 🞌

Cadastre-se para receber nossa Newsletter