05 dezembro 2024

‘Ainda estou aqui’, um true crime brasileiro em que o serial killer é o Estado

Mais do que um debate sobre como julgar golpistas, sucesso do filme deve ampliar discussão sobre a realidade do estado de exceção permanente. Ditadura ou não, a violência estatal continua acontecendo, mas toda tortura é um crime contra a humanidade e todo desaparecimento forçado é um desaparecimento político

Walter Salles (no centro) durante gravação de ‘Ainda estou aqui’ (Foto: Divulgação)

Em mais de uma cena, o filme Maníaco do Parque (2024), que relembra o caso daquele que é considerado o maior serial killer brasileiro, o público é informado das características de psicopatas: Sedutores e manipuladores, eles não sentem arrependimento, vergonha, culpa, remorso. Não parecem predadores, mas são. Eles não vão parar nunca.  

O longa é mais uma produção voltada para o segmento de crimes reais (true crime), mercado em alta no audiovisual e que vem crescendo no Brasil. O  gênero costuma retratar crimes de grande repercussão midiática, com destaque para homicídios, fraudes, abusos e violências diversas cometidos, em geral, por indivíduos. Muitos dos casos retratados por esse gênero são de assassinos em série.

‘Eleito deputado e cassado logo após o golpe de 1964, Rubens Paiva foi um dos 434 mortos e desaparecidos políticos da ditadura civil-militar, mais um número incontável de pessoas exiladas’

É justamente um crime real que ocupa hoje o topo das bilheterias brasileiras, Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. Inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, de 2019, o longa mostra as marcas deixadas na família pelo desaparecimento de seu pai, Rubens Paiva. Eleito deputado federal em 1962 e cassado logo após o golpe de 1964, o engenheiro foi um dos 434 mortos e desaparecidos políticos da ditadura civil-militar, mais um número incontável de pessoas exiladas. 

Como nas produções de true crime, temos um vislumbre sobre a vítima pela visão dos que ficam. Para além do gênero, uma  narrativa contundente sobre os que ficam. Como continuar vivendo quando não há um corpo para velar e sepultar? Uma data que marque o início dos rituais do luto. A família segue vivendo com a tortura psicológica de não saber. 

‘A ditadura civil-militar já foi chamada de  “ditabranda”. Nas periferias do país, entretanto, o estado de exceção segue produzindo mortos e desaparecidos décadas após a redemocratização’

A ditadura civil-militar brasileira já foi chamada de  “ditabranda”, porque resultou em um número menor de mortos e desaparecidos que os governos autoritários sul americanos do mesmo período. Foram 40 mil no Chile, 30 mil na Argentina. Não era pra ter sido nenhum.  Nas periferias do país, entretanto, o estado de exceção segue produzindo mortos e desaparecidos décadas após a redemocratização. Só no ano passado foram registradas 6.393 mortes por intervenção policial.

Não há serial killer que possa rivalizar com esses números. Mas é preciso lembrar que há uma estrutura que permite que eles sigam crescendo em tempos de paz democrática. Algumas vezes as Forças Armadas, outras a polícia militarizada. 

‘Quando os “casos isolados” são numerosos e se repetem com regularidade é porque eles constituem uma política de Estado’

Quando os “casos isolados” são numerosos e se repetem com regularidade é porque eles constituem uma política de Estado. Como os serial killers dos filmes, séries, documentários e podcasts de true crime, as forças da segurança pública também não vão parar 

Na intenção de dar visibilidade a outros crimes reais que são cometidos pelo Estado brasileiro desde sua fundação (quando ele ainda se chamava Terra de Santa Cruz), alguns podem minimizar a crueldade de regimes autoritários. Afirmar que ditadura é quando a violência estatal que faz parte do cotidiano das periferias chega à classe média e alta. Contudo, é preciso considerar que talvez vidas sejam ceifadas justamente por causa desta condição “privilegiada”. 

‘Em um país que cotidianamente mata e faz desaparecer a população preta e pobre o estado de exceção é permanente’

É fato que em um país que cotidianamente mata e faz desaparecer a população preta e pobre o estado de exceção é permanente. Era uma nova forma de exercer poder sobre a vida e a morte dos governados mandava-se um recado: Ninguém que se atrever a enfrentar o estado de exceção estará a salvo. 

Do mesmo modo que um psicopata das produções de crimes reais, o Estado tem um perfil de vítimas preferenciais: o pobre e o criminoso político, também chamado de subversivo e/ou terrorista. Como os psicopatas dos crimes reais, quem tem esses perfis como alvo não sente remorso, vergonha ou culpa. Nunca parou de matar. Não vai parar. 

Estado de exceção permanente

Em 2016, um golpe parlamentar destituiu – sem nenhuma prova – Dilma Rousseff da Presidência do Brasil. Não era o tipo de golpe que tínhamos em nossa memória recente, uma vez que as instituições seguiram funcionando normalmente. Não houve fechamento do Congresso, cassação de parlamentares ou de partidos, censura dos meios de comunicação ou suspensão das eleições. No cerne dessa democracia formal emergiu a defesa pública e contundente da ditadura de 1964, e consequentemente, das violações dos direitos humanos praticadas por seus agentes. 

Diferente do que afirmam alguns analistas que não sabem usar o Google, o embrião do golpe foi germinado quase uma década antes, com o movimento “Cansei” (e não em 2013). Realizando manifestações contra o governo petista, tinha entre seus adeptos, atrizes e atores globais, cantores, empresários, políticos, socialites e apresentadores de televisão. Usando verde e amarelo, ao lado de sindicatos patronais e entidades de classe, protestavam inicialmente contra “o caos aéreo” e terminaram pedindo a volta da ditadura militar.   

‘A votação do impeachment normalizou que se defendesse o indefensável em todos os lugares. Muitos se sentiram à vontade para dizer que violar direitos humanos e que garantias constitucionais democráticas não eram assim tão necessárias’ 

A votação do impeachment, porém, normalizou que se defendesse o indefensável em todos os lugares: em programas de televisão, podcasts, em grupos de aplicativos como Telegram e WhatsApp. Empresários, políticos em início e fim de carreira, comediantes, cidadãos comuns se sentiram à vontade para dizer que violar direitos humanos e que garantias constitucionais democráticas não eram assim tão necessárias. 

Do pântano da desinformação e da falta de entendimento que liberdade de expressão não é liberdade de opressão emergiu uma liderança. O mesmo parlamentar que homenageou um torturador em plenário e que passou os seus mais de 20 anos de vida pública defendendo a ditadura. Sem negar os crimes cometidos pelo Estado brasileiro, dizia que deveriam ter matado mais. 

Mas a Terra plana não gira. Ela capota. 

‘O ex-presidente foi indiciado, deve ser preso e julgado com todas as suas garantias constitucionais respeitadas, conforme manda o Estado democrático de direito que tentou abolir naquele 8 de janeiro’ 

Alçado à Presidência pela via eleitoral, o capitão não aceitou o resultado das urnas e conspirou para dar um golpe de Estado. Foi indiciado pela participação no plano de matar o presidente eleito que o derrotou em 2020, seu vice e um ministro do STF, de quem se declara inimigo. Deve ser preso e julgado com todas as suas garantias constitucionais respeitadas, conforme manda o Estado democrático de direito que tentou abolir naquele 8 de janeiro. 

O ex-presidente que conspirou para derrubar a democracia terá mais acesso a direitos humanos e a um julgamento justo do que a multidão de mortos pelo poder público todos os anos no Brasil. Como a família de Amarildo, muitas outras jamais terão um corpo para enterrar. A Justiça concluiu que o pedreiro morreu em decorrência de torturas na operação Paz Armada. Seria irônico, se não fosse trágico. 

Mais do que um debate sobre como julgar golpistas, seria oportuno que o grande sucesso de Ainda Estou Aqui ajudasse a ampliar o debate sobre a realidade deste estado de exceção permanente, que ocorre nas democracias e também sob governos de esquerda que se declaram defensores dos direitos humanos. Ditadura ou não, toda tortura é um crime contra a humanidade e todo desaparecimento forçado é um desaparecimento político. 

Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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