13 junho 2023

Em defesa das jornadas de junho

Dez anos depois do início da onda de protestos pelo país, ainda há uma disputa sobre o significado e o legado das manifestações. Para cientista política, a criminalização dos protestos de junho de 2013 segue viva quando se cria uma narrativa em que a única via de ação política legítima é a partidária

Dez anos depois do início da onda de protestos pelo país, ainda há uma disputa sobre o significado e o legado das manifestações. Para cientista política, a criminalização dos protestos de junho de 2013 segue viva quando se cria uma narrativa em que a única via de ação política legítima é a partidária

Tropa de choque da política cria bloqueio na avenida Augusta durante protestos de junho de 2013 (Foto: CC)

Por Fhoutine Marie*

“Todo revolucionário acaba como opressor ou herege”. A frase de Albert Camus em O Homem Revoltado (1951), faz menção ao processo de corrosão do Estado soviético pelo autoritarismo. Por meio da análise da Revolução Francesa e da Revolução Russa, o autor indicava que se tratava de um caminho que tende a se repetir quando a esquerda se torna governo. Não só há um limite do que pode ser transformado em nome da conciliação com a antiga ordem: o autoritarismo que reside no cerne do Estado precisa ser abraçado. Afinal, poder se exerce.

A leitura O Homem Revoltado faz pensar numa divisão no pragmatismo necessário para a conservação do governo, que eventualmente irá matar homens e princípios. Do outro lado, existe a recusa. O homem revoltado é o homem que diz não. Esse “não” afirma a existência de uma fronteira, um limite que não pode ser ultrapassado. Ao mesmo tempo, o movimento da revolta apoia-se “na certeza confusa de um direito efetivo”, no sentimento “de que alguma forma, em algum lugar, se tem razão”.

“A narrativa dominante é de que os protestos visavam derrubar o governo PT, mas há uma versão outra que precisa ser contada: a versão do herege’

É a partir desse prisma que eu gostaria de situar as narrativas sobre as Jornadas de Junho, que este ano completam dez anos. Hoje a narrativa dominante é de que os protestos visavam derrubar o governo PT e foram responsáveis pela ascensão da extrema-direita no país. Escovando a história a contrapelo há uma versão outra das Jornadas de Junho e seus desdobramentos que precisa ser contada: a versão do herege.

Quantos acontecimentos cabem em um mês?

As manifestações de junho de 2013 foram puxadas pelo Movimento Passe Livre (MPL), que atuava em capitais de diversos estados do Brasil. O grupo se mobilizava contra o aumento da passagem, tendo como horizonte a gratuidade do transporte público. Junto, havia diversas organizações vinculadas a partidos de esquerda, agremiações de estudantes e membros de partidos, incluindo esse que aí está. Havia pluralidade, mas era visivelmente um movimento de esquerda. Quem queria levantar cartazes, bandeiras de partido ou de organizações estudantis não só era livre para fazê-lo.

Na manhã do dia 13 de junho, o jornal de maior circulação do país publicou um editorial cobrando das autoridades que “retomassem a paulista”. A grande imprensa já havia subido o tom contra manifestações anteriores, com direito a Luiz Datena ao vivo fazendo enquete sobre protestos com baderna. Diziam que os manifestantes eram vândalos, que entravam em confronto com a Polícia Militar, como se fosse possível pedestres enfrentar o batalhão de choque com faixas e cartazes. O quinto ato contra o aumento da passagem aconteceu naquela noite e acabou ganhando uma inesperada repercussão.

Talvez a opinião pública tenha se compadecido dos jovens que saíram de casa para reivindicar acessibilidade urbana e acabaram se deparando com a tropa de choque, a cavalaria, gás lacrimogêneo e as balas de borracha. Ou talvez a foto da repórter da empresa que publicou aquele editorial, que estava de serviço naquela noite e acabou sendo atingida, talvez a imagem de seu rosto ensanguentado tenha causado alguma mudança a partir daquele momento na cobertura das manifestações.

‘Os protestos se espalharam pelo Brasil, alguns vinculados à mobilidade urbana, outros com reivindicações mais genéricas e difusas: contra a corrupção, pela saúde, educação, etc’

O protesto seguinte ganhou adesão de dezenas de milhares de pessoas, e a prefeitura de São Paulo decidiu revogar o aumento da passagem. O anúncio foi feito por Geraldo Alckmin e Fernando Haddad, na ocasião governador e prefeito de São Paulo, e hoje membros do mesmo governo. Os protestos se espalharam pelo Brasil, alguns vinculados à mobilidade urbana, outros com reivindicações mais genéricas e difusas: contra a corrupção, pela saúde, educação, etc.

Este foi um processo gradativo e que levou meses, sobre o qual eu comentei três meses das jornadas de junho, bem no calor dos acontecimentos. Mas a posição do MPL aquele momento era clara: tratava-se de um movimento anticapitalista, sem vínculos partidários, que não abraçou o discurso contra a corrupção. O objetivo levar adiante o projeto de gratuidade no transporte público — que existe em algumas cidades brasileiras — e pressionar pela libertação dos manifestantes que ainda estavam presos.

Num olhar mais apressado, seria possível dizer que o que vem sendo repetido à exaustão nos últimos anos, sobretudo após a queda de Dilma Rousseff: formou-se um vácuo de poder que foi ocupado pela extrema-direita, o que culminaria na eleição de Bolsonaro. Mas isso requer uma visão bem simplista dos processos históricos, que supõe uma linearidade e uma relação de causalidade que não se sustenta.

Com uma esquerda dessas, quem precisa de direita?

Quando todo mundo foi para a rua, a despolitização foi junto. Mas levou um certo tempo para que essa indignação difusa fosse capturada pelo antipetismo e pela extrema-direita, que já existiam antes de 2013. O antipetismo já mostrava a cara publicamente desde 2007, com o movimento Cansei, formado basicamente pelas mesmas pessoas dos protestos “varanda gourmet” e já entoando “Lula ladrão, teu lugar é na prisão”.

‘Quando todo mundo foi para a rua, a despolitização foi junto. Mas levou um certo tempo para que essa indignação difusa fosse capturada pelo antipetismo e pela extrema-direita’

Já o fascismo meio que faz parte da história do Brasil nos últimos cem anos. Tivemos o maior partido nazista fora da Alemanha, chegando a ter 2.903 filiados. O Partido Nazista Brasileiro foi fundado em Timbó (SC) e chegou a estar presente em 17 estados por dez anos em que atuou, até que Getúlio Vargas proibisse os partidos políticos, em 1938.

Tivemos campos de concentração para presos políticos e pessoas consideradas loucas, passamos por dois golpes de Estado em um século de República, tivemos casos de esterilização forçada de mulheres negras e/ou portadoras de deficiência nos anos 1990, convivemos com o encarceramento em massa e o genocídio da juventude negra e normalizamos a existência das milícias, a presença do exército e das UPP nas favelas e, durante os anos 2000, idolatramos o Capitão Nascimento.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fhoutine-marie-fascismo-nao-e-piada/

O próprio Jair Bolsonaro não surgiu surfando a onda de 2013: deputado federal desde a década de 1990, o político soube se colocar e se manter na mídia desde os anos 1980, de onde nunca saiu, sempre envolvido em algo escandaloso ou dando declarações violando alguns Direitos Humanos. Jair já ambicionava ser presidente desde o início de sua trajetória na política, sem esconder um posicionamento de extrema-direita. Sua ascensão não ocorreu descolada de um contexto internacional que favorecia o mesmo tipo de liderança, como Donald Trump, mas não apenas ele.

‘O encontro do antipetismo meritocrático com o fascismo tropical ocorreu apenas em 2014, após a reeleição de Dilma e a contestação do resultado pelo candidato derrotado’

Contudo, o encontro do antipetismo meritocrático com o fascismo tropical, duas vias que se desenvolviam independentes, ocorreu apenas em 2014, mais precisamente após a reeleição de Dilma e a contestação do resultado pelo candidato derrotado. A Lava Jato naquela altura estava engatinhando e o MBL só seria criado em novembro de 2014, mais de um ano após as Jornadas de Junho.

Após junho de 2013, as manifestações se espalharam pelo país, ganharam esse caráter de “contra tudo isso que aí está” e assumiram um tom mais moralizante. Nesse ínterim foi se desenhando no discurso midiático e da esquerda partidária a diferenciação, o tipo ideal de manifestante. Podia ir pra rua, sim, mas tem um jeito certo. Sem atrapalhar o trânsito, sem ameaçar a integridade das vidraças, sem “entrar em confronto” com a PM.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fhoutine-marie-uso-do-termo-terrorismo-para-classificar-ataque-em-brasilia-e-problematico/

A própria presidenta Dilma, em pronunciamento, condenou o dano ao patrimônio público e privado e afirmou que tais atos deveriam ser “punidos com vigor”. Mas protestar pegava tão bem em 2014, e a campanha presidencial daquele ano resgatou a imagem de Dilma Rousseff enquanto presa política na ditadura militar. O que ela tem todo direito de usar, já que é sua história.

Mas, ao mesmo tempo em se veiculava a imagem de “Dilmãe” Coração Valente, eram criados dispositivos que poderiam ser usados na repressão de manifestantes, como a Lei 12.850, que diz respeito a organizações criminosas, que na ocasião dispunha sobre atos terroristas. A lei específica para punir o crime de terrorismo (Lei 13.260) seria sancionada por Dilma em 2016, pouco antes de deixar a Presidência.

‘Diante do punitivismo midiático e do Estado, outro tipo de manifestação tomou conta das ruas. A manifestação cívica, higienizada, pacífica’

Diante do punitivismo midiático e do Estado, outro tipo de manifestação tomou conta das ruas. A manifestação cívica, higienizada, pacífica. Ficou na rua chamando atos gigantescos, a massa despolitizada que tinha pegado o gosto por essa sensação de participação política.

A extrema-direita estava lá pronta para acolher os despolitizados e para expulsar pessoas com símbolos de partidos de esquerda das ruas. Não porque foi criado um vácuo a ser ocupado, as esquerdas estavam apanhando dos fascistas e sendo criminalizadas e agredidas pelo Estado, muitas vezes com o aval da grande imprensa.

Legado em disputa

Voltando a O Homem Revoltado. Camus afirma que, a partir do momento em que as leis não fazem reinar a concórdia, a unidade criada pelos princípios é destruída. Quem deve ser culpado pela erosão da unidade é a facção. Os facciosos, diz, são aqueles que por sua própria atividade a unidade. “A facção divide o soberano. Ela é portanto blasfema e criminosa. Ela, e só ela, deve ser combatida”. 

Se as ruas eram em junho de 2013 um campo em disputa, dez anos depois a memória sobre as manifestações é também algo que deve ser disputado. Foram as dissidências de esquerda que foram criminalizadas. Não foram os verde-amarelos que apanharam da polícia, que foram presos por formação de quadrilha, enquadrados na lei de Segurança Nacional. A repressão não recaiu sobre quem posava para foto ao lado da polícia. Apenas os hereges foram combatidos.

‘O discurso de um suposto legado nefasto de 2013 tenta nos convencer de que protestar pode jogar o país nas mãos do fascismo. Mas o fascismo nunca morreu’

O discurso de um suposto legado nefasto de 2013 tenta nos convencer de que protestar pode jogar o país nas mãos do fascismo. Mas o fascismo nunca morreu e não é uma esquerda acovardada, que só enxerga nas urnas a possibilidade de salvação, que irá nos proteger. A expulsão dos fascistas na Paulista pelas torcidas organizadas, em 2020, é uma atualização da “revoada das galinhas verdes” que mostra que o fascismo deve ser combatido nas ruas, por meio da autodefesa, para impedir que ocupem os espaços.

O legado de junho de 2013 foi o fortalecimento dos movimentos dos estudantes secundaristas, dos movimentos por moradia, de mulheres, de pessoas negras e LGBTQIA+, dos trabalhadores precarizados, de diversas formas de ação política que visam a horizontalidade e a transformação social sem mirar necessariamente na via institucional. A narrativa que coloca os protestos como culpados por todas as desgraças que ocorreram no país tendem a eclipsar essas formas de ação política ou, pior, desqualificá-las.

‘O legado de junho de 2013 foi o fortalecimento de diversas formas de ação política que visam a horizontalidade e a transformação social sem mirar necessariamente na via institucional’

Ir para a rua não gera fascismo, este filho dileto do capital e do fundamentalismo cristão, uma dupla amplamente cortejada por todos aqueles que ocuparam e ocupam a Presidência desde então. Recriar uma história em que um partido é o grande prejudicado e que só ele é o caminho, a verdade e a vida é perigoso porque legitima o autoritarismo — independente se quem governa é de direita ou esquerda. Diante de uma política messiânica e cada dia menos laica, há que se defender a memória dos hereges.


*Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional. Jornalista e cientista política, participa como co-autora dos livros “Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil” (Zouk/2017) e “Neoliberalismo, feminismo e contracondutas” (Entremeios/2019). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.  


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.

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