O Brasil e o mundo ‘pós-ocidental’
País enfrenta o desafio de se posicionar em um cenário o modelo westfaliano dos Estados nacionais está cedendo espaço para um mundo muito mais complexo, onde as relações entre Estados se constroem seguindo padrões e interesses multipolares e não mais “nacionais”
Tenho refletido muito sobre para onde as relações entre os países estão indo, sobretudo diante do cenário que se delineia nas chamadas “economias avançadas” – e em todo o planeta, de fato – com a possibilidade de uma mudança significativa de rumo dos Estados Unidos na gestão Trump.
Paralelamente, as crises, que não param de se multiplicar e diversificar pelo mundo afora, mostram que o modelo westfaliano dos Estados nacionais está cedendo espaço para um mundo muito mais complexo, onde as relações – e as alianças – se constroem seguindo padrões e interesses multipolares e não mais “nacionais” stricto sensu. Tautológico?Mas nem sempre óbvio.
Nada disto é novo no jogo das hegemonias e do primado dos Estados nacionais ao longo da história. Na verdade, este é um fenômeno recente: a paz de Westfália, o conjunto de acordos assinados nas cidades alemãs de Münster e Osnabrück que encerrou a Guerra dos Trinta Anos (1618–1648) e estabeleceu princípios como soberania, igualdade jurídica entre os Estados, territorialidade e não intervenção, datam de 1643/1649. Reflitamos como terá sido o apogeu – e a decadência – nos casos do Egito… Grécia… Roma… do colonialismo europeu, etc…
Vivi grande parte da minha carreira diplomática na Ásia. Servi em 11 países durante quase 16 anos. Desta forma, julgo ter – pretensiosamente – suficiente familiaridade com as civilizações com as quais tive a oportunidade de conviver para arriscar o meu palpite.
A quais conclusões pude chegar?
A mais basilar é que está sendo muito complexa a aceitação pelo Ocidente de que a dinâmica do mundo mudou e que é necessário convivermos com paradigmas novos e distintos nas relações internacionais.
A Ásia tornou-se fator decisivo na economia/política globalizadas. Basta consultar a tabela do FMI sobre os maiores PIBs em 2024 e veremos que entre os cinco primeiros três são asiáticos (China, 2º; Japão 4º, e Índia. 5º). Esta presença, crescente, e irreversível, a meu ver, instiga sentimentos ambíguos: de um lado, respeito pelo despertar de um gigante de história muito antiga e, de outro, temor das consequências que este protagonismo crescente possa acarretar. Mais que tudo, evidencia o nosso despreparo para lidar com esta realidade.
Acostumado a exportar seus valores e a impor seus conceitos civilizatórios como verdades absolutas e perenes sobre mais da metade da população planetária, o Ocidente “central”, como chamo, não tem sabido lidar com a realidade de que não serão mais possíveis situações do passado.
Um exemplo foram as Guerras do Ópio promovidas em meados do século XIX pelos ingleses para impor à China o consumo da droga a fim de equilibrar uma balança comercial bilateral deficitária. Também a abertura forçada do Japão Tokugawa às potências ocidentais; ou, ainda, o fim melancólico do Raj britânico, e a independência arbitrária e intempestiva oferecida à Índia e ao Paquistão, com as sequelas que deslanchou.
Ainda pior, instituir uma “ordem” político-religiosa “à la Ocidental” a um Oriente cada vez mais assertivo da sua identidade: a questão palestina é o mais recente e trágico exemplo desta incapacidade de convivência entre povos de uma mesma raiz, forjada por uma cartografia definida sub-repticiamente por duas potências – Grã-Bretanha e França – no ocaso traumático do império otomano.
Como todos podemos perceber, o Ocidente “central” está em crise, que deve ser similar às dos gregos e romanos no ocaso de suas civilizações. Mas nenhum espaço permanece vazio: esta é uma lei da física que se aplica a todos os fenômenos, inclusive os políticos.
Assim pensando, e com a nova gestão americana ameaçando reformular o planeta “à moda Trump”, onde ficamos nós, brasileiros?
Esta é a pergunta/resposta que vale um milhão de conjecturas. Vamos nos bandear para algum lado e defender bandeiras e interesses que, no fundo, nos são perniciosos quando a disputa sino-americana se acirrar, como parece? Os do chamado “Ocidente central”, cada vez menos influente?… Os interesses chineses – não nos esqueçamos de que a China é o nosso principal parceiro comercial (and likely to remain so for a long time)
Seria esta uma disputa “dicotômica” onde os demais membros do G7 acompanharão “carneirosamente” o senhor de cabelos louro-tintos contra os anciãos de cabelos negro-tintos do Politburo de Pequim?
Os que nascemos nos estertores da hegemonia britânica, no final da Segunda Guerra Mundial, passamos pela hegemonia compartilhada entre americanos e soviéticos, pela hegemonia absoluta americana e agora pela novamente compartilhada, desta vez entre americanos e chineses (e olhemos para os indianos…). Agora nos perguntamos qual é para nós a melhor “receita”.
Já disse que tive o privilégio de ingressar na carreira diplomática sob a liderança brilhante do chanceler Antonio Azeredo da Silveira, em 1976, e do seu “pragmatismo responsável”, em pleno governo militar. Foi quando trocamos o reconhecimento da China de Taiwan para Pequim e fomos o primeiro país a reconhecer o governo marxista de Agostinho Neto em Angola, onde as nossas empresas prospectavam petróleo.
Trocando em miúdos, isto me leva à conclusão de que “não interessa se o gato é branco ou negro, desde que cace ratos” (Deng Xiaoping dixit…). Aquele foi um momento áureo da nossa diplomacia.
Desta forma, estou convencido de que devemos avançar para onde os nossos interesses nacionais – falo de interesses nacionais legítimos ! – sejam mais bem atendidos, com lucidez e uma certa dose de salutar cinismo, diriam os politicamente incorretos.
Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.
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