26 junho 2024

Lava Jato, STF e Elon Musk: corrupção e democracia em combate

Há pouco tempo, “Lava Jato” e “STF” foram termos utilizados larga e popularmente no Brasil como sinônimos de ardorosos combatentes contra a corrupção. Assim como toda deterioração de grandes estruturas, após o pêndulo da história se mover para este momento, ele se volta ao inverso, sofrendo lenta, gradual e progressiva deterioração.

Neste artigo será explorada uma parte desse movimento: as relações entre a Operação Lava Jato, o STF e os atuais embates entre Elon Musk e o Supremo Tribunal Federal (STF). À primeira vista inexistentes, elas revelam uma teia intrincada e sutil entre o processo de combate à corrupção e a defesa da democracia, gerando reação de agentes públicos e estruturas complexas — públicas e privadas — a esse movimento. E, no mesmo processo histórico, há um momento de grande espaço democrático, seguido do avanço de ações notoriamente contrárias à democracia, à liberdade, e, de modo geral, aos direitos fundamentais, apesar de afirmar que age em nome e defesa da democracia e da liberdade.

O apogeu e o declínio da Operação Lava Jato estão diretamente ligados ao processo de reconhecimento do STF como responsável por resgatar o rigor do combate à corrupção até os presentes dias, em que tal reconhecimento não se confirma na visão de parcela relevante da população: do auge de manifestações populares e democráticas aos terríveis ataques à democracia em nome de suposta “democracia”.

Para apresentar as razões do atual estado das coisas seria necessário um estudo de toda a história do Brasil, incluído o processo histórico que culminou nas grandes navegações e seu descobrimento. Afinal, raramente a história aceita recortes que não produzem distorções. Tal incursão neste artigo, contudo, não é apenas impossível, mas também desaconselhável. Delimitações são necessárias[1].

A primeira delimitação é temporal. Iniciaremos a avaliação a partir do ano 2003. A escolha do ano é relativamente simples: foi a partir dali que a Polícia Federal passou a divulgar uma lista com as suas operações em andamento — indicadores importantes, dentre outros, que moldaram o atual movimento de combate à corrupção. A segunda delimitação está ligada à impossibilidade de realizar um trabalho historiográfico com todos os fatos e suas consequências. Será necessário selecionar, portanto.

I – A importância dos anos 2003-2010 para o combate à corrupção

No ano de 2003 a Polícia Federal passou a divulgar a lista e a quantidade das suas operações ao público em geral, em seu sítio eletrônico. Dado o ineditismo e a importância de tal medida de transparência, por si já mereceria forte destaque, mas há outras razões e fatores relevantes.

No ano de 2003 Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse como presidente da República, sucedendo a Fernando Henrique Cardoso. A importância do fato se estende até hoje, lembrando que a nomeação do comando da Polícia Federal desde aquela época é de atribuição do governo federal, seja do presidente ou do ministro da Justiça.

Segundo apurado em relatórios da própria Polícia Federal, durante todo o governo FHC o órgão realizou 48 operações. Depois, somente no ano de 2004, foram realizadas 49 novas operações; em 2005 foram 67; em 2006, 167; em 2007, 188; em 2008, 235; em 2009, 210; e em 2010 foram 252!

Nos governos Lula I e II a Polícia Federal realizou 1.167 operações, parte expressiva focada em corrupção no setor de saúde pública.

Contudo, não podemos deixar de destacar que em 2005 surgiram notícias sobre um escândalo que mudaria todo cenário novamente: o mensalão.

A notícia envolvia o então senador Roberto Jefferson — que, por sua vez, implicava Delúbio Soares, então tesoureiro do Partido dos Trabalhadores (PT) — em um esquema de pagamento de propinas a parlamentares. Ainda em 2005 ocorreram as “descobertas” de pessoas ligadas ao PT com dinheiro em suas roupas íntimas.

Em 2006, o então presidente Lula, em entrevista, afirmou desconhecer o esquema do mensalão e disse sofrer “facada nas costas”.

Em agosto de 2007, após longos debates por cinco dias, o STF recebeu a denúncia e instaurou a AP 470, o caso “Mensalão”, sob relatoria do ministro Joaquim Barbosa.

Apesar de outros tantos exemplos e fatos, os elementos acima indicam uma forte mudança no posicionamento da Polícia Federal e uma nítida expansão das suas atividades, notadamente na realização de operações para o combate de diversos crimes, em especial o de corrupção.

II – 2011 a 2016: ascensão do STF e manifestações sociais

O julgamento do mensalão tomou os noticiários. Os ministros do STF passaram a ser conhecidos de toda a população, fato que até então inexistia. Duros embates e divergências entre o ministro Joaquim Barbosa e outros ministros foram acompanhados por grande parcela dos brasileiros.

Apesar de diversas críticas possíveis, enquanto ocorria, o julgamento do mensalão colaborou para modificar um sentimento popular de impunidade generalizada nos casos de corrupção e propiciou um ambiente político e social favorável para outras medidas. No entanto, tal sentimento não durou — especialmente em razão do resultado dos recursos em 2014, em que permaneceram presos apenas os agentes privados envolvidos no caso. Os agentes públicos, em especial os ligados ao PT, ficaram livres ou em prisão domiciliar.

Do ponto de vista social, as grandes manifestações de 2013 foram bastante relevantes, na medida em que muitas das críticas a elas, em verdade, reforçaram-nas como efetivamente democráticas. Por exemplo, a falta de liderança e pauta claras — começaram por conta de alguns centavos e logo foram ampliadas para protestar contra a corrupção e tantos outros motivos —, reforçavam a sua difusão social e a força da manifestação democrática espontânea.

O avanço legislativo de 2011 a 2016 em termos de combate à corrupção é, sem dúvida, um marco inegável: reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro, Lei Anticorrupção, Lei das Estatais, Lei de Conflito de Interesses, entre outras — todas durante o governo Dilma.

Em março de 2014, no ambiente favorável propiciado pelo julgamento do mensalão e pelas manifestações democráticas de 2013, a primeira fase da Operação Lava Jato gerou um movimento de difusão de informações e a utilização — declarada e reconhecida por integrantes da força-tarefa — dos meios de informação como instrumentos de combate à corrupção. No início da operação, ocorreu um forte reforço no sentimento popular, refletido nas pesquisas de percepção da Transparência Internacional. São inegáveis, contudo, falhas na Operação Lava Jato que mais tarde produziram impactos extremamente negativos no combate à corrupção.

Nos anos de 2011 a 2016 ocorreu a maior expansão já registrada das operações da Polícia Federal: foram deflagradas 1.066 operações. Nos anos de 2015 e 2016 foram registrados os números recordes de 516 e 550, respectivamente.

Importante destacar que nesse período — 2011 a 2016 — não ocorreu troca do comando da Polícia Federal (diretor-geral). A troca ocorrerá no ano de 2017.

No auge da Operação Lava Jato, e no ano com o maior número histórico de operações da Polícia Federal até hoje, ocorreu o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Esse período foi marcado pela ascensão do STF ao conhecimento popular e como elemento fundamental do combate à corrupção, consolidando a expansão da Polícia Federal. Debaixo de um único diretor-geral, que não foi trocado pelo então ministro da Justiça, ocorreram grandes manifestações democráticas, a ampliação e a reforma do aparato legislativo de combate à corrupção, o auge da Operação Lava Jato, e, por fim, o impeachment da presidente da República. O pêndulo histórico se posicionou em um extremo.

III – 2017 até os presentes dias: retrocesso no combate à corrupção e grave deterioração do processo democrático

A partir de 2017 a Polícia Federal deixou de informar de modo direto a quantidade de operações deflagradas por ano. Há, sim, relatórios estatísticos disponíveis para análise[2], mas não são consolidados nem seus dados são tratados. São divulgados por cada diretoria e, para serem consolidados de modo adequado, seriam necessárias mais informações do que as disponibilizadas. Em síntese: não é possível afirmar, com certeza, a quantidade total de operações deflagradas a partir de 2017.

Tornaram-se recorrentes notícias sobre cortes de orçamento da Polícia Federal. Contudo, o acesso ao orçamento também é de difícil acesso, apesar de ser possível compô-lo a partir das peças orçamentárias e cada uma das suas emendas. Inclusive, esse assunto foi objeto de pedido de acesso à informação negado pela Polícia Federal e, após recursos, novamente negado pela Controladoria Geral da União (CGU)[3].

A falta de transparência nas informações — seja do número total de operações, seja do orçamento — não é medida que reforça o processo democrático Ademais, segundo notícia, durante o governo Temer — 2017 a 2019 — a verba da Polícia Federal sofreu corte de 44%[4]. Outro dado relevante é que cortes de orçamento da Polícia Federal ocorreram após fatos específicos, como a divulgação da gravação de conversa entre o ex-presidente da JBS Joesley Batista e Michel Temer.

Os cortes de orçamento e mudanças de ocupantes do cargo de diretor-geral, no entanto, não pararam. Entre 2017 e 2019 a Polícia Federal teve quatro diretores-gerais. Durante o governo Bolsonaro — 2019 a 2023 — foram quatro diretores-gerais e o encerramento da Lava Jato. Merece destaque a afirmação do então presidente da República Jair Bolsonaro em 2020: “É um orgulho, uma satisfação que eu tenho de dizer para essa imprensa maravilhosa nossa que eu não quero acabar com a Lava Jato, eu acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo”[5].

O retrocesso no âmbito das operações da Polícia Federal e no combate à corrupção tem início no governo Temer, passa por Bolsonaro e se mantém em franca expansão durante este governo Lula III.

A gradual passagem da Operação Lava Jato de símbolo de combate à corrupção para algo negativo e inócuo — em razão das anulações de condenações — tem se intensificado, como se pode observar com a recente extinção da condenação de José Dirceu pela 2ª Turma do STF, em razão do reconhecimento de prescrição.

Durante o governo Bolsonaro ocorreu, também, a deterioração da percepção de parte expressiva da população de que o STF era efetivo no combate à corrupção — substituída pela percepção de que o STF atenta contra a Constituição e a liberdade das pessoas.

Sob a ótica da democracia, o período foi marcado pela redução da transparência das informações; o aumento jamais visto de fake news; as manifestações populares com pedidos absurdos — como de “ditadura militar para proteger a democracia” —; as ameaças de dissolução e fechamento do Congresso e do STF na comemoração de 7 de setembro de 2021 realizada por Bolsonaro; e até o fatídico 8 de janeiro de 2023, em que “manifestantes” afirmam que invadiram Brasília “em defesa da democracia”.

Também sob a visão do combate à corrupção, as absolvições e anulações de condenações impostas no âmbito da Lava Jato; os pleitos de revisão de penalidades em acordos de leniência; as denúncias envolvendo ex-integrantes da força-tarefa da Lava Jato; e a migração de ex-integrantes da força tarefa da Lava Jato para a política são alguns dos fatores que justificam a ampla sensação de piora no combate à corrupção. O pêndulo histórico se move a outro extremo.

IV – Musk e o X nesse contexto

Alinhado ao mesmo movimento iniciado no governo Bolsonaro, Elon Musk afirmou que o STF, em especial o ministro Alexandre de Moraes, não respeita a Constituição e a liberdade individual.

O desgaste da imagem do STF nos últimos anos impulsiona o embate e promove, especialmente dentro da sua plataforma (a rede social X, ex-Twitter), ambiente propício para a proliferação de fake news em momento tão próximo das eleições municipais.

A negativa de Musk em participar do acordo de adesão ao Programa de Combate à Desinformação do Supremo intensifica o embate. As plataformas YouTube, Google, Meta, TikTok, Microsoft e Kwai realizaram a adesão no último dia 6 de junho.

V – Lava Jato, STF e Musk

A intrincada relação entre o processo de combate à corrupção e a defesa da democracia, neste ponto, já não é sutil.

Grandes contradições fáticas envolvem o presidente Lula e a ex-presidente Dilma quando se trata do combate à corrupção. Afinal, a Polícia Federal expandiu suas operações de combate à corrupção como jamais visto antes em seus governos. Principalmente durante o governo Dilma, quando ocorreu a promulgação dos mais importantes atos normativos de combate à corrupção recentes — a Lei Anticorrupção, por exemplo, tem a sanção da presidente Dilma. E, apesar destes fatos, o número de investigados e presos ligados ao PT em operações da Polícia Federal foi muito grande.

A nociva expansão da defesa de uma “liberdade” de atacar a democracia, “liberdade” de propagar desinformação, “liberdade” de descumprir decisões judiciais supostamente em defesa de uma “democracia”, nada mais é do que grave ataque ao Estado Democrático de Direito, que se constrói com instituições e integrantes dos poderes sérios e comprometidos com a transparência e o combate à corrupção. O respeito aos direitos fundamentais é intrínseco ao conceito de Estado Democrático de Direito, e é nesse ambiente que a democracia tem chance de se desenvolver.

Os fatos ocorridos nos últimos anos corroboraram para que a democracia não florescesse em meio à corrupção. Democracia não vinga em meio à desinformação ou à ausência de compromisso em prestar e controlar se as informações divulgadas são verdadeiras. Não há direito fundamental à liberdade de propagar informações falsas.

Aprender com os erros e acertos da Lava Jato é um dever de todos que estão comprometidos com o combate à corrupção. Resgatar a imagem e a percepção de que o STF tem papel fundamental no combate à corrupção e que não é com ela conivente também é fundamental. Esse cenário não é propício a qualquer ato de desafio, desobediência, ou, ainda mais, de suposta defesa da liberdade de colaborar com a desinformação.  

Notas

1.Delimitações não são recortes enviesados. Delimitações decorrem da simples constatação da impossibilidade de tratar todos os assuntos de forma a esgotá-los. Porém, uma delimitação não permite excluir da análise elementos que possam convir a um ou a outro. Apenas para esclarecer, delimitações não se confundem com versões convenientes. Estas são construídas com cuidadosos recortes e seleções, ora incluindo determinados fatos, ora omitindo, e, principalmente, distorcendo o que não convém à narrativa.

2. Disponível em: <https://www.gov.br/pf/pt-br/acesso-a-informacao/estatisticas>.

  • 3.Segundo consta na decisão, o requerente solicitou informação do orçamento da Polícia Federal e recebeu resposta informando que o pedido foi negado pois a informação já é pública e está disponível no link geral das peças orçamentárias. O requerente recorreu contra a decisão e ponderou: “Foi interposto recurso. O Diretor-Geral da Polícia Federal, em decisão, informou que a informação está amplamente disponível, é de fácil acesso, não procedendo as alegações recursais. Ao invés de compilar as informações solicitadas, remete novamente o solicitante ao portal Orçamento Federal, indicando passo a passo a ser seguido. Pois bem, o passo a passo apresentado já demonstra que a simples remissão ao portal Orçamento Federal, inicialmente feita, é absolutamente insuficiente. Dentro do portal Orçamento Federal, em cada exercício (Orçamentos anuais) existem SETE abas. Para a autoridade a quo, o solicitante deveria saber que a aba correta é a PLOA. Depois, dentro desta aba, existem mais DEZOITO links. Para a autoridade a quo, o solicitante deveria saber que o link correto é o do volume IV”. Ao fim, recorrendo à CGU, o pedido foi novamente negado sob o seguinte fundamento: “Sendo assim, entende-se que, embora o recorrido tenha informado link genérico na resposta ao pedido inicial, a explicação concedida em segunda instância pelo DPF atende ao pedido de acesso adequadamente, não havendo negativa de acesso à informação”. Disponível em: <https://buscaprecedentes.cgu.gov.br/?idAnexo=13073&fileName=08850000657201562.pdf&handler=DownloadFile>.

4.
Disponível em: <https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/governo-reduz-equipe-da-lava-jato-e-corta-verba-da-pf/>.

5.
Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/acabei-com-a-lava-jato-porque-nao-tem-mais-corrupcao-no-governo-diz-bolsonaro/>.


 

 

 

 

 

é advogado, professor, palestrante e consultor corporativo. Doutor em Direito pela USP, diretor-executivo do Instituto Não Aceito Corrupção e do Centro de Estudos em Integridade e Desenvolvimento

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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