26 junho 2024

Uma criança não alfabetizada é prejuízo para o futuro da sociedade

Veveu Arruda, político com trajetória dedicada à educação, apresenta projeto bem-sucedido no Ceará, já replicado em outros estados do país, que busca sanar o drama nacional sintetizado em pesquisas que apontam o fato de que 56% das crianças brasileiras terminam o 2º ano do Ensino Fundamental sem serem consideradas alfabetizadas. Um dado cruel da ineficiência do direito de aprender a ler e a escrever na idade adequada, negligenciado na educação básica e que prejudica toda a trajetória escolar, comprometendo a aquisição de outras aprendizagens e o futuro do Brasil.

De acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep), em 2023 cerca de 56% das crianças brasileiras que terminaram o 2º ano do Ensino Fundamental não eram consideradas alfabetizadas[1]. Isto significa que o direito de aprender a ler e a escrever na idade adequada foi negligenciado a esta população, no início da educação básica, prejudicando toda a sua trajetória escolar e comprometendo a aquisição de outras aprendizagens.

Em um Brasil com 5.570 municípios, mais de 200 milhões de habitantes e um PIB per capita de aproximadamente R$ 46,1 mil, a média de 56% de crianças alfabetizadas não representa a realidade de todos os estados, regiões, e muito menos municípios. Quando comparadas, as regiões Sul e Centro-Oeste se destacam na média nacional, apresentando 67% e 57%, respectivamente; enquanto os resultados da região Norte indicam que apenas metade das crianças concluem o 2º ano do Ensino Fundamental devidamente alfabetizadas.

A garantia de uma alfabetização plena ainda nos anos iniciais do Ensino Fundamental tem um dever moral a ser cumprido, mas, para além disso, um dever ético de promover oportunidades e bem-estar à população brasileira. “A alfabetização tem impacto sobre a empregabilidade, a produtividade, a renda dos trabalhadores, as condições de saúde e a taxa de mortalidade e desenvolvimento dos filhos, além de impactar sobre a auto-estima, as atitudes, os valores, a cultura cívica, o capital social e também sobre o interesse e a capacidade de participação dos beneficiários na sociedade e na comunidade em que vivem”[2].

De acordo com estudo realizado pelo economista Ricardo Paes de Barros[3], adultos que conseguiram se alfabetizar na etapa adequada de ensino garantem maiores possibilidades de emprego formal; têm, em média, o dobro da renda per capita familiar em relação àqueles que não conseguiram se alfabetizar; além de alcançarem melhores condições de saúde e qualidade de vida. Este é, portanto, um tema interseccional e que gera impactos na trajetória de vida dos indivíduos e, consequentemente, promove efeitos sociais alinhados aos resultados alcançados.

Uma população que não aprende a ler e a escrever de maneira adequada produzirá efeitos que serão sentidos no curto prazo, ainda dentro das escolas dos municípios e estados brasileiros, com distorção idade-série, evasão e abandono escolar; e a longo prazo, do ponto de vista econômico e de saúde. Estas são consequências diretamente atreladas ao interesse pela leitura e pelo consumo de livros, como demonstra a recente pesquisa “Panorama do consumo de livros”, encomendada pela Câmara Brasileira do Livro, segundo a qual 80% dos brasileiros não compraram livros em 2023. Este é o retrato de gerações que tiveram seus direitos de aprendizagem apartados.

Sobral e o caminho para a superação da não alfabetização de crianças

No ano de 1997, uma nova gestão do município de Sobral começou a enfrentar, com prioridade, a realidade de uma rede municipal desestruturada, como era regra na maioria dos municípios brasileiros, com absurdos níveis de ineficiência evidenciados nas altas taxas de abandono, de distorção idade-série e na ausência de professores habilitados, entre outras questões.

A nova gestão encabeçou mudanças para estruturar a política educacional de Sobral, com a construção de novas escolas; reforma e ampliação das unidades já existentes; nucleação das escolas, acabando com as salas multisseriadas; oferta de formação superior para professores sem habilitação; e realização dos primeiros concursos públicos para selecionar professores e diretores por competência acadêmica. Antes disso, predominavam as indicações políticas e havia até diretor de escola analfabeto.

Para corrigir a distorção idade-série, Sobral, por exemplo, além de esforço próprio, articulou ações com alguns parceiros do município ao longo dessa importante e necessária trajetória. Até então, não existia uma política de avaliação externa. Um dos primeiros indicadores que começou a se manifestar foi o nível insatisfatório de alfabetização das crianças.

No ano 2000 foi realizada a primeira avaliação externa, por recomendação do professor Edgar Linhares, sobre os níveis de leitura dos alunos que estavam concluindo a 2ª série do Ensino Fundamental. Ela revelou que 50% dos alunos sobralenses não sabiam ler e escrever: as escolas municipais de Sobral estavam formando analfabetos. Essa constatação acendeu um alerta para investigar a fundo por quê os estudantes não estavam aprendendo.

Ao invés de procurar justificativas externas, a Secretaria Municipal de Educação definiu como foco de sua atuação a garantia da alfabetização de todas as crianças ao final do 2º ano do Ensino Fundamental. Para os gestores públicos de Sobral, todos têm capacidade de aprender, independentemente de gênero, cor e condição socioeconômica, desde que sejam oferecidas oportunidades.

Com foco na aprendizagem e na alfabetização no período adequado, foi estruturada a política educacional de Sobral. O conjunto de ações foi articulado e baseado em três eixos estratégicos: o fortalecimento da gestão escolar, com a realização de concursos públicos para diretores e professores, formação continuada e autonomia administrativa, pedagógica e financeira para as escolas; o fortalecimento da ação pedagógica,com a qualificação e a organização do trabalho em sala de aula, formação continuada dos professores, material pedagógico e didático estruturado e avaliação externa; e a valorização do magistério,com reconhecimento, gratificação por desempenho e qualificação docente.


Ceará desenvolve política de apoio inspirada na experiência de Sobral

Com as eleições estaduais de 2006, a experiência de Sobral inspirou o governo empossado em 2007, que estruturou o regime de colaboração voltado para o apoio à melhoria da alfabetização em todos os municípios do Ceará como política de estado, independentemente das filiações partidárias dos seus prefeitos e prefeitas.

O regime de colaboração, que envolveu a cooperação entre diferentes esferas de governo, foi uma peça-chave no desenho e na implementação do que veio a ser estruturado e lançado como Programa de Alfabetização na Idade Certa (PAIC), política que garantiu, de forma contínua e progressiva, a melhoria da aprendizagem das crianças na etapa de alfabetização em todos os 184 municípios do Ceará.

A abordagem colaborativa do PAIC permitiu que o estado e os municípios trabalhassem juntos para definir metas claras, compartilhar recursos e trocar experiências. Foi criado, portanto, um ambiente propício para a inovação e a adaptação de estratégias que se mostraram bem-sucedidas em diferentes contextos municipais.

A relação entre o PAIC e a política de alfabetização em Sobral destaca a importância de aprender com experiências locais de sucesso e de adaptar essas lições para abordagens mais amplas de políticas públicas. Essa perspectiva baseada em evidências e em experiências práticas contribuiu significativamente para o sucesso do PAIC na melhoria dos índices de alfabetização no Ceará.

n Resultados de Sobral e Ceará comparados ao Nordeste e ao Brasil

Em 2005, Sobral participou da primeira avaliação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), obtendo uma nota 4 no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Comparado aos demais municípios brasileiros, Sobral estava na 1.366ª posição. Com a reforma educacional ocorrida durante os primeiros anos após o início da implementação da política de alfabetização, o município alcançou o primeiro lugar do país em 2015 — com Ideb 8,8 nos anos iniciais do Ensino Fundamental — entre os 5.570 municípios brasileiros.

Um relatório elaborado pelo Banco Mundial[4] avalia que “os resultados alcançados por Sobral derivam de sua capacidade de convergir todo o sistema educacional para a aprendizagem e da decisão de manter a política partidária longe das escolas. O sucesso da reforma educacional de Sobral não deriva de uma solução milagrosa, mas sim de um conjunto de ações estruturadas que se reforçam mutuamente, com o objetivo de garantir que todos os alunos da rede municipal concluam a educação básica na idade certa e com aprendizado adequado”. O documento sistematiza os pilares da política educacional de Sobral, conforme a figura abaixo.

O estado do Ceará, assim como Sobral, a partir do início da implementação do PAIC alcançou destaque nacional e internacional com os resultados advindos da sua política em regime de colaboração. Em 2007, o estado ocupava a 16ª posição do Ideb AI (Anos Iniciais) entre os estados brasileiros. Em 2019, sendo o 24º estado brasileiro no ranking de PIB per capita, o Ceará passa a ocupar a terceira posição entre as redes públicas no Ideb AI, atrás apenas dos estados de São Paulo e Paraná.

Dados mais atualizados nos mostram que os exemplos de sucesso de Sobral e do Ceará trouxeram resultados duradouros, advindos da continuidade e do aperfeiçoamento de suas políticas. De acordo com dados divulgados pelo Inep em maio de 2023, o Ceará é, hoje, o estado brasileiro que mais alfabetiza crianças ao final do 2º ano do Ensino Fundamental, com 84,5% de crianças alfabetizadas, enquanto a média nacional é de 56% e a média da região Nordeste é de 54%.

Já o município de Sobral atingiu o marcante percentual de 98,7% de crianças alfabetizadas nas escolas da rede ao final do 2º ano do Ensino Fundamental em 2023. Com este número, Sobral alcançou o primeiro lugar em alfabetização na idade certa do Brasil entre municípios acima de 100 mil habitantes.

A criação da Bem Comum e o poder da difusão de políticas públicas

Em 2018 foi criada a Associação Bem Comum, com o objetivo de apoiar gestores municipais e estaduais, líderes e protagonistas dos governos locais a estruturarem e implementarem políticas públicas que visem a melhoria dos resultados de aprendizagem nos anos iniciais, em especial na alfabetização.

Utilizando-se da inspiração das experiências bem-sucedidas de Sobral e do Ceará, a Bem Comum difunde boas práticas sistêmicas para a implementação de políticas que garantam a erradicação do analfabetismo nas escolas públicas brasileiras por meio de uma alteração na cultura política, que define a educação como uma prioridade política dos governadores e prefeitos; e de apoio técnico e pedagógico aos gestores públicos e equipes das secretarias de Educação, compartilhando trocas de saberes e fazeres no desenho de uma política pública educacional em cada território.

O modelo sistêmico de atuação está no cerne da garantia dos resultados positivos de aprendizagem: tem-se por diretriz que estratégias unicamente pedagógicas não são capazes de garantir uma mudança de realidade nas salas de aula. É preciso mais: uma gestão comprometida, com lideranças estratégicas engajadas e cientes do desafio. Para isso, faz parte do modelo da atuação da Bem Comum entender a política de alfabetização como um prisma com eixos muito específicos e complementares: a institucionalização da política; a garantia de incentivos financeiros; a articulação e a mobilização social; a comunicação e o engajamento pelo diálogo; a criação de material didático complementar; o desenvolvimento de capacidades; o fortalecimento da gestão municipal e escolar; e a avaliação e o monitoramento.

Inicialmente atuando em cinco municípios e apenas quatro estados brasileiros, a Bem Comum se caracteriza entre as organizações de terceiro setor pelo apoio direcionador e garantidor do protagonismo e da autonomia dos entes federados que, de fato e de direito, implementam a política pública.

Constituída e liderada por ex-gestores públicos que participaram da formulação, da implementação e da liderança da política sobralense de alfabetização e do PAIC, no Ceará, a instituição tem nos colaboradores a sua maior fortaleza, garantindo legitimidade entre os servidores públicos nos estados e municípios parceiros.

Com seis anos de existência, a Bem Comum apoia hoje 18 estados[5] brasileiros a implementarem suas políticas de alfabetização em regime de colaboração, atingindo mais de 3.800 municípios, 54 mil escolas, 450 mil professores alfabetizadores e, finalmente, mais de 3,5 milhões de estudantes.

O grande desafio em 2024, ano de eleições municipais, está na garantia da continuidade das políticas municipais de alfabetização já estabelecidas e da busca pela não paralisação das ações no período eleitoral, especificamente no segundo semestre. Para alcançar este objetivo, a organização tem se dedicado a implementar estratégias previamente definidas e a dialogar com demais organizações do terceiro setor, mapeando aprendizados e trocando experiências. O principal orientador é de que as políticas se tornem de estado e não de governo, e que tenham continuidade ao longo dos anos, apesar de possíveis trocas de gestão.

Novos movimentos: Compromisso Nacional Criança Alfabetizada e mobilização social pela garantia da alfabetização de crianças

É importante considerar um cenário nacional positivo, com o lançamento do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, pelo Ministério da Educação, em junho de 2023. Hoje, 100% dos estados e mais de 99% dos municípios aderiram ao compromisso, iniciativa de caráter único nacional, com aporte financeiro e pedagógico em regime de colaboração com estados e municípios, para apoiar a implementação das políticas já existentes de alfabetização e induzir a sua criação nos territórios onde ainda não existiam.

Além de um movimento histórico de pacto interfederativo em prol da alfabetização das crianças brasileiras, existem esforços pela Bem Comum e por parceiros como a Fundação Lemann e o Instituto Natura, no sentido da produção de uma mobilização social, envolvendo outros setores da sociedade, para a criação de um sentimento de urgência relacionado à necessidade da garantia da alfabetização das crianças brasileiras. Quanto mais se fala e se discute sobre o problema, maior relevância de agenda este terá nos diversos espaços de diálogo. Desta forma, torna-se uma questão de todos pelas crianças e não mais restrita aos tomadores de decisão. O intuito é o estabelecimento de um mecanismo de controle social forte e engajado.

Um bom exemplo de mobilização de atores para além do setor público aconteceu no estado de São Paulo, quando a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) lançou, em 2023, o Prêmio Prefeito Alfabetizador, reconhecendo os municípios paulistas com maiores resultados em alfabetização. O prêmio faz parte do Programa de Alfabetização Responsável (PAR) e o SESI-SP apoiará municípios na formação de professores e na utilização de novos recursos pedagógicos. Esta foi uma iniciativa apoiada pela Unicef, pela Associação Bem Comum e pelo Canal Futura.

A recente reunião, no dia 28 de maio, liderada pelo presidente da República e pelo Ministério da Educação com governadores, Consed, Undime e organização de representantes de prefeitos e prefeitas foi um marco histórico. Na ocasião, além de publicizar os últimos resultados das avaliações censitárias estaduais, indicando a tragédia de 56% de crianças analfabetas nas escolas públicas, foram estabelecidas metas de alfabetização para os entes federados, prevendo alfabetizar 80% das crianças até 2030 — embora concordamos com o presidente Lula que devemos garantir a alfabetização de 100% das crianças brasileiras.

A crença em um Brasil alfabetizado está viva e permanece pulsante. Existe otimismo nos próximos passos a serem perseguidos daqui em diante pela mudança positiva já ocorrida em diversos níveis até aqui. O que se espera agora é que o movimento pela garantia da alfabetização de crianças cresça, ganhe apoiadores e continue gerando os efeitos positivos na vida de tantos milhões de brasileiros que só completam sete anos uma vez na vida. E desejamos que este seja o início de um ciclo de leitura fluente, prazerosa e autônoma.  


[1].
INEP. Inep publica o Indicador Criança Alfabetizada. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/avaliacao-da-alfabetizacao/inep-publica-o-indicador-crianca-alfabetizada. Acesso em: 6 jun. 2024.

[2].
Henriques, Ricardo; Barros, Ricardo Paes de; Azevedo, João Pedro (Orgs.). Brasil alfabetizado: caminhos da avaliação. Brasília: MEC/Secad, 2006. Coleção Educação para Todos, v. 18, n.1, Série Avaliação. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8983/1/Brasil%20Alfabetizado.pdf.

[3].
Oshima, Flávia Yuri. O custo do analfabetismo para a vida de um indivíduo. Época, 3 ago. 2017. Disponível em: https://epoca.globo.com/educacao/noticia/2017/08/o-custo-do-analfabetismo-para-vida-de-cada-um.html.

[4].
Disponível em: https://documents.worldbank.org/en/publication/documents-reports/documentdetail/ 778741594193637332/achieving-world-class-education-in-adverse-socioeconomic-conditions-the-case-of-sobral-in-brazil.

[5].
Alagoas, Amapá, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, São Paulo, Sergipe e Tocantins.

(JOSÉ CLODOVEU DE ARRUDA COELHO NETO) é professor e advogado. Foi secretário municipal, vice-prefeito e prefeito de Sobral (CE). É reconhecido pela atuação em política educacional e é diretor-executivo da Associação Bem Comum, responsável pelo programa Educar pra Valer (EpV) em parcerias com ONGs

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