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Interesse Nacional
30 setembro 2022

O que se espera de uma Academia de Letras?

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A ideia de uma Academia de Letras sempre polemizou alguns segmentos. Existem os avessos à existência de um grupo restrito de intelectuais, acreditando que não se justifica o arcaísmo. Há mesmo quem chegue a incluir em seus créditos nos artigos publicados, o fato de não pertencer a Academia alguma. Todavia, ainda nesse restrito enfoque, o espaço acadêmico é tema recorrente. Em regra, o assunto se intensifica ao surgimento de uma vaga. Quando se critica uma eleição pelo fato de o escolhido não corresponder à estrita categoria “literato”, desconhece-se que muitos escritores apreciados se recusam a concorrer. Isso ocorre em todas as Academias. Quem se dispuser a conhecer a história da Academia Francesa, nosso padrão mais invocado, verá que ali também acontece o que no Brasil se replica.  

Outros há – e são muitos – que aspiram ingressar no seleto clube dos imortais. O jusfilósofo Miguel Reale, a cada ocasião em que se cuidava de eleger alguém para as Academias a que ele pertenceu – a Brasileira e a Paulista –, costumava declamar um poema em francês. Cujo núcleo seria: somos 40 e não nos prestigiam. Somos 39 e chegam a se ajoelhar a nossos pés. Em francês, fica mais interessante por causa da rima: nous e genoux.

O certo é que as Academias continuam a existir e mostram instigante vitalidade. A Brasileira foi fundada em 1897 por Machado de Assis. A Paulista surgiu em 1909 por iniciativa do médico Joaquim José de Carvalho – um carioca impressionado com a adesão a tal propósito recebida na sede da República e cujo intento era replicá-la em Piratininga. Encontrou dificuldades. Resistiu-se ao projeto, mais do que se aplaudiu. Houve quem dissesse que São Paulo não teria 40 literatos e que a Brasileira já atendia à dimensão da intelectualidade tupiniquim.

Não foi fácil obter concordância dos 40 fundadores. Tanto que a Paulista poderia ter existido muito antes, não fora a resistência dos convidados a formarem o primeiro quadro. Um deles, exatamente o fundador da Cadeira 40, que hoje ocupo, era José Feliciano de Oliveira. Professor na Sorbonne, morou décadas em Paris. Era um dos que pensavam ser desnecessária a criação de uma Academia Paulista. Aquiesceu em ocupar a última cadeira só para satisfazer o amigo que insistiu pela aceitação. Entronizado, permaneceu como acadêmico de 1909 a 1962, quando faleceu.

Da luta que travou o instituidor, é expressivo o relato de Carlos Alberto Nunes: “Polemista experimentado noutros centros de cultura do País –como Rio de Janeiro e Curitiba – bateu-se o Dr. J. de Carvalho sem desfalecimento na defesa de suas ideias, antes e depois de criada a Academia dos seus sonhos, contra a incompreensão do meio, visceralmente infenso a tais inovações”[1]

A despeito das críticas inseridas nos jornais à época, a Academia foi criada e teve celebrada sua fundação em 27 de novembro de 1909. Discutiu-se até o número de cadeiras. Por que fixá-las em 40? Se São Paulo não dispusesse de tal número de intelectuais, nulidades ocupariam as vagas restantes. Se o Estado contasse com grupo superior a tal cifra, a seleção cometeria injustiças, ao refugar os extranumerários.

No discurso de inauguração da APL, usou da palavra o Barão de Brasílio Machado e forneceu síntese do significado da instituição: “Somos uma porção de vocações, e porção pequena, para que seja a sua coesão mais intensa e laboriosa; mas vocações que se apagam no objetivo comum, não disputando honrarias e monopólios, umas nutridas de vaidades, outros cheios de ridículo. Somos obscuros; antes de nós outros muitos o foram. Na parcela de trabalho que tomamos por quinhão, bem sabemos que o sulco aberto agora será talvez mal alinhado, mas enche-nos a esperança de que pelo lavor de outras mãos se corrija o defeito do traçado, e dele cresça a abundância da colheita, esta terra de São Paulo, sempre tão nutriente e pródiga de extraordinárias riquezas. À obscuridade, que somos, sucederá, talvez, a benemerência que nos escusa e perdoa o atrevimento da iniciativa”[2].

As academias são instituições, na longeva concepção de André Hauriou. Instituição seria, singelamente, uma empresa humana alimentada por uma ideia-força da qual ela frui a seiva de uma constante e permanente evolução. Na verdade, a instituição estabelece um padrão de comportamento ao qual o seu integrante adere, para a obtenção contínua de uma finalidade.

  E qual a finalidade das Academias?

Elas são guardiãs do vernáculo. “Minha pátria é minha língua”, eternizou Fernando Pessoa. Disseminar o bom uso da linguagem, estimular a escrita e a leitura, propagar a literatura, tudo isso vem a ser o escopo de uma Academia, mas não só. Trata-se de instituição capaz de congregar 40 pessoas irmanadas por ideal de tamanha abrangência e tem de oferecer muito mais à sociedade que a acolhe.

A Academia Paulista de Letras se propôs ser fiel ao ensinamento do “Bruxo do Cosme Velho”: reunir literatos, pois é de Letras; acolher pessoas que a ela concedam visibilidade; permitir o ingresso de jovens, que é para alegrar o ambiente. Funcionar, prioritariamente – e observada a sua vocação – como casa de bom convívio. Não é por acaso que o tratamento entre os acadêmicos é fraternal: confreiras e confrades. Além de conferências e palestras, da oratória própria aos cenáculos, a Academia é o espaço da conversação. Como dizia Afrânio Peixoto: “O discurso é alarmante, sem réplica, enfático, peremptório… Arte para o povo, para espetáculo. A conversação é persuasiva, convincente, pede colaboração, aceita a contradita, promove o bom dito e a reflexão. Arte de boa companhia que afina os homens em humanismo… Não é esse o destino das Academias? Vós tendes a melhor parte”[3]

A presença da Academia na história do Estado e do Brasil tem sido decantada em estudos esparsos. Um dos pontos de relevo maior foi a participação na Semana de Arte Moderna de 1922. À exceção de Oswald, os mais expressivos responsáveis integravam ou vieram a integrar a Academia Paulista de Letras.

Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Plínio Salgado, Sérgio Milliet e o presidente do Estado, Washington Luís Pereira de Souza. Pode-se dizer que o gérmen da Semana medrou na Academia. A inquietude dos jovens na casa dos 20 anos serve a evidenciar que o espírito acadêmico não precisa ser vetusto ou rançoso. Tudo exatamente ao contrário do que se costuma atribuir ao academicismo.

Era a vontade indômita de redescobrir o Brasil, sua cultura, suas características e seu povo, em lugar de se abeberar exclusivamente nas fontes europeias, com desprezo ao que é genuinamente nosso. Um potencial exuberante de possibilidades desabrochou no horizonte da mocidade paulista e aquele evento – um século depois – continua a suscitar o interesse dos brasileiros.

Dez anos depois, a Revolução Constitucionalista de 1932 contou com a participação da Academia Paulista. Ibrahim Nobre, o tribuno da Revolução, era integrante da Casa. O acadêmico Odilon da Costa Manso, filho do notável magistrado Manoel da Costa Manso, foi à luta e defendeu o sonho bandeirante de uma nova Constituição. Páginas de heroico civismo estão prenhes de testemunhos da participação acadêmica na epopeia que veio a desaguar na primeira Constituição Republicana democrática, a de 1934. 

Outra verdadeira revolução, a industrialização de São Paulo, contou com a liderança de Roberto Cochrane Simonsen, também acadêmico paulista, que também ornamentou a Academia Brasileira de Letras, onde faleceu em 1948, durante uma oração acadêmica.

  A resistência ao debate político-partidário

Alguns membros da Academia ainda postulam que ela não se envolva em política. Convém, é verdade, não se imiscuir na política partidária, que no Brasil republicano produziu uma categoria questionável – o político profissional. Isso não quer dizer que a Academia permaneça inerte em momentos cruciais da fragílima democracia aqui instaurada e periodicamente ameaçada.

O episódio da eleição de Washington Luís Pereira de Sousa foi um desses momentos em que a Academia Paulista de Letras testemunhou a sua coragem cívica e o seu destemor. É notório que o paulista de Macaé – o 13º presidente da República – teve seu mandato de 1926 a 1930 interrompido por golpe de Estado. O poder o baniu, mas a Academia de Letras do Estado, que também presidira, foi buscá-lo, como narra Carlos Alberto Nunes: “Em maio de 1945, ainda no exílio, por aclamação, ou melhor, num abaixo-assinado da maioria dos acadêmicos, senão mesmo da sua totalidade, foi eleito o Dr. Washington Luís para a vaga da Cadeira nº 3, aberta com o falecimento de Mário de Andrade, depois de haver sido declarada vaga a referida cadeira e de quatro escritores do nosso meio se terem apresentado para disputá-la. Os Estatutos permitiam essa modalidade de eleição, equivalente à aclamação da maioria absoluta dos acadêmicos em condições de votar. Semelhante decisão anulava a pretensão dos candidatos já inscritos para a mesma vaga”[4]

Essa eleição consagradora adquiriu uma tonalidade política. Não a política rasteira, mas a boa política, a ciência e a arte de promover o bem comum. Quando ela se distancia dos postulados éticos, irrita aos estritos lindes democráticos, não é opção de uma Academia de Letras silenciar e permanecer inerte. É um dever moral dos seres pensantes emitirem sua opinião, quando ocorre – como na presente quadra histórica – o surrealismo na condução da vida pública.

Sabe-se que não é fácil arrostar a pretensa unanimidade fabricada algoritmicamente nesta era dominada pelas redes sociais, mas é um dever moral indeclinável. “Embora vos acusem, vos condenem, vos prendam e vos enforquem, publicai sempre os vossos pensamentos. O fazê-lo não é um direito; é antes um dever, obrigação restrita para todos os que têm ideias; é comunicá-las aos outros para o bem comum. A verdade inteira pertence a todos: o que entenderdes que é útil, podeis sem receio publicá-lo”[5]. É o que tem sido feito no âmbito da Academia Paulista de Letras nestes tempos de tantos desafios.

Escolhidos pelos que integram a comunidade que assumiu o encargo de defender o idioma, empenhando-se em acelerar o letramento de uma população ainda imersa no analfabetismo estrito e no analfabetismo funcional, os acadêmicos sentem ressoar em suas consciências um apelo ao destemor. Muitos, dentre os membros da atual composição, exerceram funções relevantes na República. Podem ser considerados estadistas. E “o estadista dos tempos modernos, é preciso dizê-lo, o homem que compreende devidamente a sua complexa função social, como órgão vivo das forças políticas, aquele que se acha na posição de guia e conselheiro de seus concidadãos, para bem dirigir e encaminhar as diversas manifestações do pensamento e do sentimento popular, precisa de impor-se à consideração, ao respeito e à admiração de seus contemporâneos, não pelo seu prestígio pessoal ou pelo prestígio que lhe empresta a sua posição oficial, mas pela competência provada do seu saber, pela sua grande força de previsão, e pela sua reconhecida experiência na direção dos negócios”[6]

  O papel da consciência na Academia

Foi uma questão de consciência que levou os acadêmicos da Paulista de Letras, à quase unanimidade, posicionarem-se publicamente, por meio de manifesto, diante de sinais clamorosos de risco ao Estado de Direito e à Democracia. A consciência acadêmica foi importunada pelos fatos. Avaliou suas consequências. Cada ser humano, assim chamado a posicionar-se, angustiou-se e refletiu: “Que se passa com esse ser, entregue a si mesmo e à opção de decidir da sua vida, da vida dos outros, do seu relacionamento com o mundo? Onde irá encontrar as referências necessárias para estas opções se, em si mesmo, os instintos não o programam, contrariamente aos belos e vãos sonhos naturalistas, e se, fora de si, a multiplicidade das normas e das autoridades torna vão um conformismo da obediência e do seguidismo tranquilo?”[7]. Mais tranquilo seria portar-se como observador neutral e desinteressado. Ou filiar-se ao séquito dos transitórios condutores da vida pública brasileira. Não. A tradição da Academia Paulista de Letras não é a de se render à “tática das homenagens”, nem acompanhar o rebanho anestesiado, que sequer imagina o que o espera.

É da índole dos bandeirantes nutrir a noção de que tomadas de consciência individuais e coletivas permitem vislumbrar alternativas para problemas aparentemente insolúveis. Não é permitido aos intelectuais paulistas perder esta consciência viva de sua responsabilidade, pois a sua experiência demonstra que a melhor Constituição e a mais aprimorada normatividade infraconstitucional serão de utilidade, se a nação se vê dividida e infestada dos “ismos” os mais nefastos.

A história da humanidade está repleta de exemplos de seres destemidos que não acompanharam a multidão, porque sabiam e puseram em prática, expuseram-se e “proclamaram aos ouvidos dos surdos a importância decisiva da consciência moral e do seu protesto obstinado contra a mentira totalitária”[8]. O Brasil já experimentou – e não gostou – de regimes de exceção. Os paulistas da Casa de Cultura por excelência do Largo do Arouche estão com a consciência tranquila. Ouviram e levaram a sério a mensagem de João Paulo II, na celebração do Dia da Paz em 1º de janeiro de 1991: “Nenhuma autoridade humana tem o direito de intervir na consciência seja de quem for. A consciência é a testemunha da transcendência da pessoa, mesmo perante a sociedade, e, como tal, é inviolável. Negar a uma pessoa a plena liberdade de consciência, nomeadamente a liberdade de procurar a verdade, ou tentar impor-lhe uma maneira particular de compreender a verdade vai contra o seu direito mais íntimo”[9]

A Academia Paulista de Letras não pretende se afirmar como mais consciente, mais atuante, mais protagonista do que qualquer outra academia ou instituição congênere. Tem lúcida compreensão de que este momento reflete um singular confronto entre culturas, o que leva a um desencontro entre as éticas. Respeita as visões divergentes, aceita a verdade contida no dogma do pluralismo e da tolerância, valor precioso, pois fonte de uma coabitação pacífica. Muito mais eficiente do que a imposição de uma unanimidade ideológica e ética.

Com essa convicção continuará a se manifestar, a redigir manifestos, pois persuadida de que é a postura exigível no atual momento histórico. Uma Academia não existe exclusivamente para deleite de seus integrantes, para os encontros em torno à mesa, para platitudes e autoelogios. Ela é, continuará a ser e se orgulha de se fazer presente quando a nação aguarda que seus filhos se armem com palavras, o mais valioso instrumento de transformação da sociedade.    ■ 


[1]. NUNES, Carlos Alberto, Pequena História da Academia Paulista de Letras – 1909-1955, in Academia Paulista de Letras – 70 anos, Revista da APL, 27.11.1979, p. 155.

[2]. Discurso de Brasílio Machado na noite de inauguração da APL, apud NUNES, Carlos Alberto, op. cit., idem, p. 170.

[3]. PEIXOTO, Afrânio, Revista da Academia Paulista de Letras nº 8, dezembro de 1939.

[4]. NUNES, Carlos Alberto, op. cit., idem, p. 211-212.

[5]. COURIER, Paulo Luiz, in SALES, Alberto, Pátria Paulista, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983, p. 3. 

[6]. SALES, Alberto, op. cit., idem, p. 118.

[7]. VALADIER, Elogio da consciência, Lisboa: Instituto Piaget, 1994, p. 12.

[8]. VALADIER, op. cit., idem, p. 13.

[9]. La Documentation Catholique, nº 2020, de 20 de janeiro de 1991, p.54.

Mestre e doutor em Direito Constitucional pela USP, reitor da Uniregistral e docente na pós-graduação da Uninove. Foi corregedor-geral da Justiça e Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. É presidente da Academia Paulista de Letras.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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