08 março 2023

O Brasil conseguirá se reindustrializar?

Compromisso do governo Lula com o retorno à industrialização é positivo e pode desenvolver a capacidade manufatureira nos principais setores da economia mundial, criando empregos altamente qualificados e bem pagos. Para professor, entretanto, em um mundo competitivo e em rápida mudança, as condições domésticas do Brasil e da economia mundial podem não facilitar tal missão […]

Compromisso do governo Lula com o retorno à industrialização é positivo e pode desenvolver a capacidade manufatureira nos principais setores da economia mundial, criando empregos altamente qualificados e bem pagos. Para professor, entretanto, em um mundo competitivo e em rápida mudança, as condições domésticas do Brasil e da economia mundial podem não facilitar tal missão

Luiz Inácio Lula da Silva e sua equipe durante o discurso da vitória nas eleições de 2022 (foto: Ricardo Stuckert)

Por Anthony W. Pereira*

Em seu discurso de vitória na noite do segundo turno da eleição, em 30 de outubro, Lula disse: “Vamos reindustrializar o Brasil, investir nas economias verde e digital e apoiar a criatividade de nossos empresários e empreendedores. Queremos também exportar nosso conhecimento.” A ideia pode ser encontrada novamente no relatório da equipe de transição governamental, que afirma que a missão de um Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) reativado será “reindustrializar o Brasil e promover uma inserção internacional mais competitiva” nas cadeias produtivas globais.

Mas o Brasil pode se reindustrializar? A política governamental pode moldar algo tão fundamental e sujeito a forças transnacionais tão poderosas quanto o papel da manufatura na economia?

A evidência de que o Brasil se desindustrializou nas últimas décadas é convincente. Segundo o Banco Mundial, em 1984 a manufatura representava 34% do PIB brasileiro. Em 2021, esse número era de 10%. Uma história semelhante pode ser contada para as exportações. Em 1993, os produtos manufaturados representavam 59% das exportações brasileiras. Em 2021, esse número era de 25%.

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Isso faz parte de uma tendência maior em que praticamente toda a América Latina e o Caribe, com exceção do México, se desindustrializou (ou nunca se industrializou). A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) afirma que a “participação da região nas exportações totais de manufaturas não ultrapassou 5% nos últimos 20 anos”. Além disso, o déficit comercial da região em bens manufaturados aumentou de 3% do PIB em 1995 para 6% em 2021. O aumento da importância da Ásia e especialmente da China como parceiro comercial dos países da região exacerbou essa tendência. No século XXI, a América Latina, e com ela o Brasil, parece destinada a ser exportadora de produtos primários. Este é um destino que os economistas cepalistas de meados do século 20 argumentaram que deveria ser evitado, se o desenvolvimento econômico de base ampla fosse alcançado.

Alguns observadores argumentam que o atual período de turbulência geopolítica, em que as cadeias produtivas estão sendo reorganizadas, oferece uma oportunidade para o Brasil se reindustrializar. O chamado near-shoring ou friend-shoring por empresas sediadas nos Estados Unidos, por exemplo, pode envolver a realocação de parte da produção industrial da Ásia para o Hemisfério Ocidental. 

‘Alguns observadores argumentam que o atual período de turbulência geopolítica, em que as cadeias produtivas estão sendo reorganizadas, oferece uma oportunidade para o Brasil se reindustrializar’

Da mesma forma, aumentar a cooperação entre o Brasil e os Estados Unidos na expansão de setores como energia limpa e bioeconomia pode estimular a manufatura brasileira. A declaração conjunta entre os governos Biden e Lula divulgada após a visita de Lula a Washington, DC. em 10 de fevereiro parece sugerir tal desenvolvimento, mencionando a “importância da resiliência da cadeia de suprimentos” e a “importância dos diálogos público-privados” em áreas como como “comércio e investimento, energia, saúde, ciência, tecnologia e inovação”.

No entanto, há sérias dúvidas sobre a possibilidade de reindustrialização no Brasil. Isso tem a ver tanto com a capacidade doméstica do Brasil de subir na cadeia de valor agregado para formas avançadas de produção industrial quanto com o espaço no sistema internacional para tal movimento. Também não há consenso no Brasil sobre como induzir a reindustrialização, por exemplo, se isso deve ser feito por meio de uma política industrial cuidadosamente elaborada que use o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a FINEP para financiar empresas competitivas ou se uma política macroeconômica sólida e uma abordagem laissez-faire é, em última análise, mais produtiva.

‘Reindustrialização é um termo impróprio, porque o desafio não é simplesmente reinventar o tipo de produção em massa fordista que serviu tão bem ao Brasil’

Reindustrialização é um termo impróprio, porque o desafio não é simplesmente reinventar o tipo de produção em massa fordista (tipificada pela linha de montagem de automóveis) que serviu tão bem ao Brasil em sua industrialização altamente bem-sucedida do período 1930-1980 (como um grande país com um grande mercado interno, o Brasil tinha uma forte vantagem comparativa nesse esforço). 

A manufatura moderna é intensiva em termos de conhecimento e depende de mercados de capital profundos, empresas que podem inovar e treinar trabalhadores, sociedades com altos níveis de educação e Estados que podem investir em política robusta de ciência e tecnologia e oferecer condições favoráveis a empresas que prometem produzir inovações em setores líderes da economia.

Não está claro se o Brasil se encaixa nesse perfil. A taxa de poupança do Brasil é baixa e a disponibilidade de capital de risco é limitada. No agregado, as empresas brasileiras gastam relativamente pouco em pesquisa e desenvolvimento e muitas vezes buscam vantagens comparativas produzindo mais do mesmo em larga escala para o mercado doméstico, em vez de inovar. A qualidade da educação básica no Brasil é relativamente baixa e a capacidade do Estado de coordenar os atores privados por meio de uma política industrial coerente não foi demonstrada no passado.

Nada disso quer dizer que as empresas competitivas nos principais setores da economia mundial não poderiam surgir no Brasil. Braskem, Embraer, Gerdau e Natura, para citar apenas alguns exemplos, sugerem que podem. Mas o ambiente social em que ocorre a inovação e o desenvolvimento industrial no Brasil não é totalmente propício, e o clichê de que as políticas do estado são “antimanufatureiras” parece ter um fundo de verdade. O aumento espetacular do agronegócio e das exportações de minerais como soja, carne bovina, frango, petróleo e minério de ferro nos últimos anos confirma essa percepção.

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Depois, há os ventos da economia mundial. Se as empresas sediadas nos Estados Unidos se envolverem em near-shoring, o Brasil não está muito próximo. México, América Central e Caribe são alvos mais prováveis de realocação da cadeia de suprimentos do que o Brasil. Além disso, nenhum dos três maiores parceiros comerciais do Brasil – China, Estados Unidos e União Europeia – demonstra propensão a facilitar a reindustrialização brasileira.

A China investiu pesadamente no Brasil nos últimos anos. Um investimento chinês de US$ 5,9 bilhões foi relatado em 2021, três vezes o US$ 1,9 bilhão em investimentos dos EUA no Brasil relatados em 2020. Parte disso foi para a manufatura, como a da empresa chinesa BYD, que fabrica baterias, produtos eletrônicos e automóveis no Brasil. No entanto, a maior parte desse investimento é em setores que fornecem energia e matérias-primas que a China precisa para seu próprio processo maciço de industrialização, que está se afastando de formas de produção em massa de baixa qualificação e mão-de-obra intensiva e entrando cada vez mais em setores líderes do mundo economia, como inteligência artificial, computação quântica, biotecnologia, robôs e redes de telecomunicações.

Nos Estados Unidos, apesar da recepção favorável de Lula pelo governo Biden em 10 de fevereiro, o Estado caminha para uma direção cada vez mais protecionista. Por exemplo, a Lei de Redução da Inflação da Administração Biden fornece US$ 400 bilhões em subsídios para tecnologia limpa ao longo de uma década, mas contém uma série de proteções ao “made in America” para empreiteiros e limita a importação e exportação de muitos produtos tecnológicos com base na segurança nacional

A União Européia, por sua vez, tem sinalizado que deve fazer novas exigências como condição para a ratificação do acordo comercial UE-Mercosul. Elas se concentram não apenas nas exigências ambientais, principalmente na redução da taxa de desmatamento na Amazônia brasileira, mas também na redução das tarifas de exportação de manufaturados para os países do Mercosul.

‘Desenvolver a capacidade manufatureira nos principais setores da economia mundial seria bom para o Brasil’

Em suma, não há nada de errado com o compromisso do governo Lula com a reindustrialização. Desenvolver a capacidade manufatureira nos principais setores da economia mundial seria bom para o Brasil, criando o tipo de empregos formais altamente qualificados e bem pagos que são escassos no mercado de trabalho e proporcionando padrões de vida decentes para muitas pessoas. Seria ainda melhor se essa capacidade incluísse a capacidade de exportar bens manufaturados, mesmo que apenas para os vizinhos sul-americanos do Brasil, uma área de vantagem comparativa que o país ainda desfruta. No entanto, em um mundo competitivo e em rápida mudança, as condições domésticas do Brasil e da economia mundial podem não facilitar tal missão.


*Anthony W. Pereira é colunista da Interesse Nacional, diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center na Florida International University e professor visitante na School of Global Affairs do King’s College London


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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É diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center da Florida International University, professor visitante na School of Global Affairs do King’s College London e membro sênior da Canning House

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