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Interesse Nacional
08 março 2023

#8M – Misoginia não é piada e não será derrotada na base da gracinha e do meme

Tratada como uma questão menor pelas esquerdas em tempos de eleições e como piada nas redes sociais, a questão de gênero é o elemento central para entender e neutralizar a violência misógina – que é também fascista. Para cientista política, enquanto dados não mostrarem a redução da violência misógina, não há motivo para comemoração Por […]

Tratada como uma questão menor pelas esquerdas em tempos de eleições e como piada nas redes sociais, a questão de gênero é o elemento central para entender e neutralizar a violência misógina – que é também fascista. Para cientista política, enquanto dados não mostrarem a redução da violência misógina, não há motivo para comemoração

Ato de mulheres em defesa da democracia, no Rio de Janeiro (Foto: Agência Brasil)

Por Fhoutine Marie*

Desde que virou corriqueiro questionar verdades há muito tempo estabelecidas pela ciência – como o formato da Terra e a importância de tomar vacina – neste 8 de Março vou evitar a ironia e listar tudo o que gostaria de receber de presentes nesta data, bem como as reflexões mais elaboradas sobre a violência praticada contra meninas e mulheres nas guerras. Porque de tempos em tempos é necessário repetir o óbvio, já que a proliferação efusiva de informações com vistas a gerar engajamento não tem nada de neutralidade ou ativismo político e tampouco ancoragem na vida para além dos algoritmos.

Gênero não diz respeito apenas às mulheres ou pessoas LBGTQIA+

Apesar de a questão de gênero ter sido amplamente debatida na ocasião do golpe parlamentar que culminou no impeachment de Dilma Rousseff, o debate de gênero não decolou na eleição de 2018. Do lado dos partidos, nas chapas das candidaturas à presidência – com exceção de Marina Silva e dos nanicos – as mulheres foram relegadas à posição de vice. No debate público, a organização de feministas no movimento suprapartidário #EleNão, foi criticada por políticos e analistas como contraproducente. Algo que, ao invés de enfraquecer o bolsonarismo, acabaria por reforçá-lo devido a  uma suposta rejeição do eleitorado às “pautas identitárias”, que seriam distantes “do povo”.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fhoutine-marie-fascismo-nao-e-piada/

‘A questão de gênero foi apropriada pela direita, que não esconde que a pauta dos costumes constitui um campo central para seu projeto político’

Mas essas pautas não desapareceram da agenda pública com a opção da esquerda institucional, dos partidos e grandes movimentos, se concentrou na libertação de Lula e na busca pelo apoio dos setores mais conservadores, em especial, os evangélicos e católicos fundamentalistas. Elas apenas foram apropriadas pela direita, que não esconde que a pauta dos costumes constitui um campo central para seu projeto político. O exemplo mais visível disso foi a atuação da pastora Damares Alves à frente do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, e sua colaboração com ativistas antiaborto, mesmo nos casos previstos na lei brasileira, que incluiu a exposição de uma criança de 12 anos e tentativa impedi-la de realizar o procedimento e forçá-la a levar adiante uma gestação decorrente de um estupro.

Na campanha de 2022, a chapa Lula-Alckmin inicialmente tentou se concentrar na gestão desastrosa da pandemia conduzida pelo governo Jair Bolsonaro para em seguida destacar a questão econômica, com o aumento da inflação e agravamento dos indicadores sociais nos últimos quatro anos. Contudo, os planos foram frustrados diante da necessidade de responder à disseminação de informações falsas e forjar um elo mais forte com o eleitorado feminino  evangélico, processo no qual foi central a afirmação pública de que Lula, e sua esposa Janja, eram contrários “ao aborto”.

‘Há décadas a questão de gênero é o cerne de dois projetos políticos em disputa. Um que preza por valores humanistas; outro baseado no fundamentalismo cristão e na supremacia branca, masculina e heteronormativa’

Embora a imprensa comumente tente colar a discussão sobre aborto ao tema da religião, trata-se, em primeiro lugar, de uma questão de gênero, já que diz respeito à regulação do Estado sobre corpos de mulheres e demais pessoas com capacidade de gestar. Mas, evidentemente a questão de gênero não se reduz à denúncia da misoginia discursiva e ao jornalismo declaratório sobre questões polêmicas. Ao contrário, há algumas décadas a questão de gênero é o cerne de dois projetos políticos em disputa. Um que preza por valores humanistas e pela conservação e aprimoramento das garantias e liberdades democráticas; outro, que é baseado no fundamentalismo cristão e na supremacia branca, masculina e heteronormativa.

Em outras palavras, a discussão de gênero diz respeito ao homem. Não apenas o homem gay ou bissexual, o homem negro ou o homem trans. Diz respeito ao homem branco heterossexual cisgênero que é representado em nossa cultura a identidade universal e contra a qual todas as outras se oporiam numa disputa que, dependendo de onde se observa, seria motivada por desejo de poder ou de sobrevivência. 

‘Incluir o homem na discussão de gênero requer a consciência de que a supremacia masculina é um dos elementos constituintes fundamentais dos neofascismos’

Incluir o homem na discussão de gênero requer a consciência de que a violência fascista não se encerra com as eleições, uma vez que a supremacia masculina é um dos elementos constituintes fundamentais dos neofascismos. Ela está presente nas redes sociais, fóruns de internet e grupos de aplicativos como WhatsApp e Telegram, recrutando adeptos por meio do que a esquerda chama algumas vezes de “masculinidade frágil”, outras de “masculinidade tóxica” e que por eles é visto como um papel de dominância “natural” a ser exercido pelo homem.

Sem esforço para gostar de mulher

Conforme explica a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, para além do que aparece na superfície (o discurso anticomunista, anticiências, o negacionismo da crise climática), os neoconservadores possuem um projeto de conhecimento que procura definir uma nova direção para a sociedade global.

Para eles, o projeto de sociedade moderna, baseada nos princípios da ciência e na crença de direitos humanos universais, teria não apenas ruído, mas se tornado ele próprio o promotor das desigualdades ao formar um certo consenso liberal-democrático que conciliava o capitalismo com avanço das chamadas pautas identitárias. A nova direita se coloca como defensora dos interesses do povo ao associar establishment, elites intelectuais e poder, que teriam virado as costas para as pessoas comuns.

Se a primeira geração dos pensadores da extrema-direita era composta por autores vinculados ao nazifascismo (cujo nome de maior destaque é Carl Schmitt), a atual se manifesta predominantemente pela Internet e assume um tom ainda mais radical e apocalíptico que as anteriores: a civilização branca, europeia e ocidental estaria sob ataque, e a forma de reagir seria ocupando espaços de poder e produção de conhecimento. Nesse contexto, o nome Jack Donovan chama atenção especial.

A teoria de supremacia masculina de Donovan exalta a virilidade dos homens, que encontrariam sua essência na hostilidade. A prática de esportes, artes marciais e caça reconecta-os com essa essência perdida com o advento da civilização e do “globalismo”.   Com isso, ele justifica/naturaliza a escravidão e os genocídios, já que fariam parte da natureza violenta e predadora dos homens.

‘Donovan repudia a cultura gay e repudia relações com mulheres, reivindicando a volta a um passado em que as mulheres teriam apenas função reprodutiva ou de serem troféus’

Enquanto se tornou lugar comum dizer que esse tipo de homem faz muito esforço para gostar de mulher, a ideologia de gênero pregada por Donovan passa longe disso e não faz o menor esforço. Donovan, que se relaciona sexualmente com homens, mas repudia a cultura gay, repudia relações com mulheres, reivindicando a volta a um passado em que as mulheres teriam apenas função reprodutiva ou de serem troféus. Por mais que absurdas que sejam, essas mensagens são diluídas entre seus asseclas e difundidas em formato aparentemente inofensivo em outras mídias, como canais do YouTube e grupos de WhatsApp.

Conforme explica Pinheiro-Machado, Donovan recorre a Nietzsche para justificar sua misoginia militante. Curiosamente, é também por meio deste filósofo controverso que a cientista política Wendy Brown, analisa o ressentimento como a energia vital do populismo de direita. É esse sentimento que garante a instrumentalização dos valores para ganhos políticos (e também comerciais). A perda da supremacia masculina a partir do fim da era do macho provedor é identificada com os pequenos avanços políticos obtidos por grupos ainda hoje em desvantagem social (mulheres, pessoas LGBTQIA+, pessoas racializadas, imigrantes, refugiados). Se ela não pode ser revertida, pode ser utilizada politicamente. É o que a direita faz ao incitar o ódio por feministas, movimentos como Black Lives Matter e o politicamente correto.

Esses “rompantes que portam os ressentimentos específicos e a raiva de um poder injuriado” estão sempre presentes nos discursos de líderes da extrema-direita e nos coachs, ideólogos, influenciadores e entusiastas da ideologia de gênero masculinista. Se o discurso de Donovan é muito extremo para iniciantes, coachs que ensinam a se comportar “como homem”e a desprezar as mulheres que pretendem conquistar são mais palatáveis, mas igualmente alinhados ao discurso niilista da antipolítica e do autoritarismo.

A revolução não será viralizada

Há algumas semanas a internet descobriu a existência da misoginia militante, que chamarei aqui de masculinismo. Isso aconteceu depois que viralizou o trecho da entrevista de um coach adepto da “filosofia” red pill sobre como resistir às armadilhas da manipulação feminina. Logo o jeito de falar, a calvície e o vestuário do sujeito começaram a ser ridicularizados por diversos perfis. Mas, ao que se sabe, apenas duas pessoas – mulheres – receberam ameaças caso não retirassem o conteúdo do ar: “processo ou bala” dizia a mensagem recebida por uma delas.

O que se viu a seguir foi um show de horrores típico de quando algo tosco e/ou nocivo se torna popular nas redes: uma meia dúzia de matérias responsáveis explicando que o tal “coach do Campari” era apenas a ponta do iceberg num universo misógino, enquanto muitas outras se dedicaram a esmiuçar a vida do coach para descobrir que ele havia sido rejeitado por uma feminista de 50 anos e que havia recebido Auxílio Emergencial durante a pandemia ou a desenterrar trechos de seus vídeos, que não paravam de aparecer em minhas redes, compartilhados por pessoas que se declaram contrárias à mensagem disseminada por esse e outros masculinistas.

‘Ao individualizar todo um movimento de misoginia organizada, centrando a discussão em um único sujeito, temos a impressão de que estamos tratando de algo isolado e não perigoso, apenas ridículo’

Nada contra a piada, menos quando ela ocupa o lugar de falar sério. Ao individualizar todo um movimento de misoginia organizada há décadas, centrando a discussão em um único sujeito, temos a impressão de que estamos tratando de algo isolado e não perigoso, apenas ridículo. Isso é reforçado pela ideia delirante de que a exposição debochada constituiu uma arma contra a mobilização dos mesmos.

Na verdade, a atuação de masculinistas na Internet não começou ontem e não é a primeira vez que dá sinais de ser perigosa. A professora Lola Aronovich, autora do blog feminista Escreva Lola Escreva, já recebeu inúmeras ameaças desses grupos. As mensagens continham ofensas, ameaças de estupro e morte e continham seus dados pessoais, como números de documentos e seu endereço. A ativista hoje faz parte do grupo de trabalho criado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, que visa traçar políticas públicas de combate aos discursos de ódio e de extremismo. O grupo é coordenado pela ex-deputada Manuela Dávila, que também já foi alvo de ameaças misóginas em um passado recente. 

Eu não sei vocês, mas eu acordei num mundo tão ruim para ser mulher hoje quanto na semana passada. Em que pese a existência de uma lei que atribui à Polícia Federal a responsabilidade por investigar crimes de ódio contra mulheres feitas no ambiente virtual (Lei 13.642/18, conhecida como Lei Lola, em homenagem à Lola Aronovich), mais criminalização não me parece uma resposta satisfatória para o tamanho do problema que enfrentamos. Não importa a quantidade de deboche comemorativo viralizar nas redes, enquanto não tiver dados da minha mesa sobre redução da violência misógina eu vou dar uma segurada antes de estourar o champanhe e achar que estamos vencendo.


*Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional. Jornalista e cientista política, participa como co-autora dos livros “Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil” (Zouk/2017) e “Neoliberalismo, feminismo e contracondutas” (Entremeios/2019). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.  

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fhoutine-marie-uso-do-termo-terrorismo-para-classificar-ataque-em-brasilia-e-problematico/

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Referências:

Rosana Pinheiro-Machado – “Amanhã vai ser maior” (2019/Ed. Planeta)

Wendy Brown – “O Frankenstein do neoliberalismo: liberdade autoritária nas democracias do século XX” in “Neoliberalismo, Feminismo e Contracondutas – Perspectivas foucautianas” (2019 – organização Margareth Rago e Maurício Pelegrini). Ed. Intermeios

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/rubens-barbosa-as-mulheres-no-itamaraty/

Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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