31 julho 2023

Um passo para frente, dois passos para trás

Após voltar ao poder, Lula formalizou seis das 14 Terras Indígenas que precisavam apenas da assinatura presidencial para serem oficializadas. Para professor, presidente colhe frutos baixos e precisará fazer concessões caso deseje cumprir sua meta de desmatamento zero na Amazônia até 2030

Após voltar ao poder, Lula formalizou seis das 14 Terras Indígenas que precisavam apenas da assinatura presidencial para serem oficializadas. Para professor, presidente colhe frutos baixos e precisará fazer concessões caso deseje cumprir sua meta de desmatamento zero na Amazônia até 2030

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebe adorno do cacique Kayapó Raoni Metuktire durante Ato de encerramento da 19ª edição do Acampamento Terra Livre (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Por Robert Toovey Walker*

Em abril, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou documentos que formalizaram a reivindicação de terras de seis Terras Indígenas (TIs). À primeira vista, essa parece representar uma reviravolta significativa no tratamento do Brasil para com seus habitantes indígenas, que sofreram muito com o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Não amigável aos povos indígenas do Brasil, Bolsonaro elogiou abertamente as políticas genocidas dos EUA no século XIX, quando uma jovem nação começou a estender seu poderio econômico pelo continente, sem muita consideração pelos habitantes aborígenes. No mínimo, as ações recentes de Lula fornecem um gesto humanitário bem-vindo para as pessoas deixadas em grande parte por conta própria, já que o governo Bolsonaro fechou os olhos para os grileiros, que tiraram o que puderam da floresta com pouco para detê-los.

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A criação dos TIs, prevista na Constituição brasileira de 1988, reflete um universo moral no qual se reconhece a soberania cultural da população indígena do país. Dito isso, minha coluna de hoje aborda uma dimensão oportunista aderindo a esse belo propósito. Refiro-me ao papel que se espera que os indígenas desempenhem na política brasileira de conservação.

‘A Constituição de 1988 é bastante explícita ao responsabilizar os povos originários pela manutenção do meio ambiente dos territórios que lhes foram outorgados’

Aliás, a Constituição de 1988 é bastante explícita ao responsabilizar os povos originários pela manutenção do meio ambiente dos territórios que lhes foram outorgados. Mas para ser franco, os povos indígenas do Brasil podem ter terras, desde que administrem seus recursos renováveis de forma sustentável. Múltiplos estudos mostram que eles realmente defendem suas terras quando ameaçados, então tal expectativa é bem fundamentada. Por motivos como esses, as TIs figuram no sistema de áreas protegidas do Brasil, um dos pilares de sua política de conservação.

Dada a promessa de Lula de acabar com o desmatamento até 2030, suas ações recentes para finalizar o estabelecimento de seis TIs parecem, portanto, bastante positivas, do ponto de vista da conservação. Mas é o melhor que ele poderia ter feito e, mais importante, é o suficiente?

‘É necessário parar com toda a fanfarra feliz e avaliar a realização de Lula com uma dose de ceticismo saudável

Não quero ser rabugento aqui, e me junto a todos aqueles que estão felizes em ver o Brasil estender a mão em amizade aos seus cidadãos indígenas. No entanto, dada a questão da conservação em jogo – ou seja, o potencial desaparecimento de toda a floresta devido a uma transgressão do ponto de inflexão – é necessário parar com toda a fanfarra feliz e avaliar a realização de Lula com uma dose de ceticismo saudável.

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Antes de fazê-lo, é importante ressaltar que criar uma TI não é uma tarefa simples. O processo deve seguir um procedimento complexo que começa com a identificação do território após uma avaliação antropológica. Isso leva à demarcação cartográfica, com aporte público e indenização se necessário. Então, a TI é formalmente declarada, ou homologada por decreto presidencial, momento em que é registrada como patrimônio nacional. O processo pode ser rápido, mas na maioria das vezes leva tempo, pois diferentes agências e indivíduos estão envolvidos.

Apenas duas das seis novas TIs são encontradas na Amazônia’

Quanto às ações recentes de Lula, pode ser uma surpresa que vários líderes indígenas tenham ficado desapontados, na medida em que esperavam celebrar o reconhecimento de 14 TIs, já que 14 haviam passado e tudo o que eles precisavam era de um aceno de Lula. No entanto, o presidente os rejeitou ao reconhecer apenas seis. Concedido, seis é melhor do que nada, mas ainda é desanimador considerando que teria sido fácil fazer mais.

Também ocorre que apenas duas das seis novas TIs se encontram na Amazônia. Embora as novas TIs não-amazônicas promovam os direitos indígenas, eles não irão aumentar as defesas do ponto de inflexão da Amazônia. Além disso, é desanimador notar que apenas uma das novas TIs amazônicas cobre uma quantidade substancial de terra, a TI Uneiuxi, com uma extensão de aproximadamente 5.500 km2. A outra, TI Arara do Rio Amônia, tem apenas 210 km2.

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Há quem se queixe de que essa minha crítica é mesquinha. Esse algo é melhor do que nada. É verdade, e eu seria o primeiro a admitir que apurar o valor das ações de Lula está muito no domínio de uma determinação subjetiva de saber se o “copo” das TIs amazônicas recém-declaradas está meio vazio ou meio cheio. Eu argumentaria que este copo em particular nunca pode estar meio cheio quando a conservação de uma quantidade muito pequena de floresta amazônica pode ter consequências  catastróficas.

Lula basicamente colheu frutos fáceis de colher, já que criou duas TIs que completaram todo o processo até a aprovação final do presidente’

Na verdade, restam duas questões obscuras escondidas em todas as felicitações que seguem as ações de Lula aqui. A primeira é que Lula basicamente colheu frutos fáceis de colher, já que criou duas TIs que completaram todo o processo até a aprovação final do presidente. Elas já estavam “em andamento”, por assim dizer.

O que Lula NÃO fez foi reconhecer novos pedidos, ou seja, NÃO permitiu a potencial expansão de terras em poder da população indígena brasileira. Isso foi uma decepção para os líderes indígenas.

A segunda questão diz respeito ao tempo de homologação das duas TIs amazônicas formalizadas. Embora os registros públicos estejam longe de serem completos, eles oferecem algumas informações sobre as histórias administrativas de sua criação. Acontece que os povos indígenas em questão buscaram reconhecimento para ambas as TIs durante as presidências anteriores de Lula, mas por algum motivo não tiveram sucesso.

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Não há como saber se Lula desempenhou algum papel no fracasso deles em obter status formal naquele momento. Como eu disse, o processo de verificação de TIs é bastante complexo. O que sabemos é que durante seus dois primeiros governos Lula estava muito ocupado construindo barragens. O que me leva à necessidade de considerar as TIs em um contexto mais amplo de conservação e com respeito à meta de Lula de atingir zero de desmatamento até 2030.

Suponha que um presidente declare uma nova TI na Amazônia com mil km2 de floresta, mas permita que 2 mil km2 de floresta protegida sejam convertidos em pastagens em outro lugar da bacia. Em tal situação, Lula ainda fica a mil km2 de sua meta declarada. Essa aritmética simples tem o objetivo de chamar sua atenção para o quadro maior, que envolve o que é conhecido como rebaixamento de área protegida, redução de tamanho e desclassificação. Simplificando, representa um ataque a áreas protegidas.

“Talvez tenham sido as boas notícias sobre o declínio das taxas de desmatamento que levaram muitos conservacionistas a um otimismo preguiçoso”

Muitos apontaram o programa de áreas protegidas do Brasil como a chave para a redução histórica das taxas de desmatamento durante os dois primeiros mandatos de Lula. Talvez tenham sido as boas notícias sobre o declínio das taxas de desmatamento que levaram muitos conservacionistas a um otimismo preguiçoso.

Seja qual for a explicação, eles evidentemente falharam em perceber que o governo federal começou a abandonar as políticas de conservação bem-sucedidas logo após elas se mostraram eficazes.

De fato, durante os dois primeiros governos de Lula e na Presidência de Dilma Rousseff, o Brasil degradou suas áreas protegidas conforme necessário para abrir caminho para projetos de desenvolvimento. Infelizmente, isso faz sentido, já que foi nessa época que Lula concentrou sua atenção em concretizar seus projetos hidrelétricos no rio Madeira. Para conseguir isso, ele achou necessário trocar as áreas protegidas por terras a serem desenvolvidas.

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A presidente Dilma Rousseff também não foi tímida sobre tais trocas de terras. Para dar lugar ao Complexo Hidrelétrico do Tapajós – parado pelos Munduruku em 2016 – ela diminuiu a extensão do Parque Nacional da Amazônia, o primeiro criado na região.

O que me traz de volta ao ponto de partida desta coluna, ao comentar o recente reconhecimento de Lula das seis TIs. Para as duas TIs amazônicas, a história é mais complicada do que aparenta. Claro, demos um passo à frente. Mas ao preço, talvez, de dois passos para trás em algum lugar da bacia.

Atualizações sobre o desmatamento

As boas notícias continuam na frente do desmatamento na Amazônia, com taxas mensais em maio e junho consideravelmente menores do que as verificadas no último ano da presidência de Bolsonaro. Em maio observamos uma queda de 77%, de 1.476 km2 para 339 km2, e em junho, uma queda de 75%, de 1.429 km2 para 361 km2.

Esta é uma tendência promissora, que lembra os governos anteriores do presidente Lula da Silva, quando a taxa caiu drasticamente depois de 2004. Esperemos que o declínio continue baixo durante a estação seca nos próximos meses, quando o desmatamento tende a aumentar na medida que novas terras são desmatadas para empreendimentos agrícolas.


*Robert T. Walker é colunista da Interesse Nacional e professor de estudos latino-americanos e geografia na University of Florida

Tradução de Julia Gonzalez


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Robert Toovey Walker é colunista da Interesse Nacional, geógrafo, tem doutorado em ciência regional pela University of Pennsylvania e é professor de estudos latino-americanos e geografia na University of Florida

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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