25 outubro 2023

O realismo mágico do desenvolvimento sustentável

Os projetos de infraestrutura na Amazônia não são mais vistos empreendimentos de importância global, mas sim como destruidores do conceito de ‘desenvolvimento sustentável’. Para professor, a posição do presidente Lula a respeito desse tópico no novo governo ainda é incerta

Os projetos de infraestrutura na Amazônia não são mais vistos empreendimentos de importância global, mas sim como destruidores do conceito de ‘desenvolvimento sustentável’. Para professor, a posição do presidente Lula a respeito desse tópico no novo governo ainda é incerta

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa da Cúpula da Amazônia para assinar a Declaração de Belém (Foto: Lucas Leffa/CC)

Por Robert Toovey Walker* 

Escrever sobre infraestrutura não é um passatempo agradável; assim como ler sobre ela não proporciona nenhuma emoção perceptível. Infelizmente, é impossível pensar no futuro da Amazônia sem considerar a infraestrutura que os planejadores do governo estão construindo lá.

Esse é um tópico extenso que não posso abordar em uma única coluna. O que posso fazer é fornecer uma estrutura para pensar sobre a infraestrutura no contexto dos objetivos sociais que há muito tempo competem em um cabo de guerra entre o desenvolvimento econômico e a conservação da Amazônia.

A construção de represas, ferrovias, rodovias e hidrovias exige grandes somas de dinheiro e gera pouco retorno imediato. Dado o desejo das empresas de obter lucro no curto prazo, não é de surpreender que os governos sejam responsáveis por fornecer às sociedades a infraestrutura de que elas precisam para funcionar economicamente. 

‘No passado, os projetos de infraestrutura eram vistos como empreendimentos de importância nacional e até mesmo global, mas hoje sabemos que coisas ruins acompanham as boas em qualquer projeto de grande escala’

No passado, os projetos de infraestrutura eram vistos como empreendimentos de importância nacional e até mesmo global. Por exemplo, a construção do Canal de Suez foi anunciada como um empreendimento que refletia o gênio criativo e a verdadeira garra da humanidade. Hoje em dia, a narrativa da infraestrutura não é tão direta. Sabemos que as coisas ruins acompanham as boas em qualquer projeto de grande escala. Assim, muitos pesquisadores argumentam que a infraestrutura de transporte contribuiu significativamente para o desmatamento da Amazônia ao abrir terras para a agricultura. A principal questão é se os benefícios decorrentes da agricultura compensaram os custos da degradação ecológica.

A infraestrutura na Amazônia não seria tão problemática se não estimulasse o desenvolvimento da agricultura, em especial a pecuária, um dos principais fatores de desmatamento da Amazônia. A comunidade mundial percebeu isso durante a Rio-92, quando o conceito de “desenvolvimento sustentável” tomou conta da imaginação popular.

Foi uma epifania, a compreensão de que a Amazônia não precisava mais ficar presa em um jogo de soma zero, com o desmatamento sendo o resultado da criação de empregos. Tratou-se de um divisor de águas, um momento em que o realismo mágico conspirou com o pensamento positivo para iludir muitos conservacionistas a equiparar a retórica à realidade. Após a conferência, os ambientalistas presumiram que as agências governamentais, a partir de então, buscariam uma agenda de desenvolvimento sustentável, dada a sua lógica irresistível.

‘Infelizmente, os governos tinham outras ideias para além do desenvolvimento sustentável, o que ficou bastante claro quando o presidente Fernando Henrique Cardoso criou a IIRSA’

Infelizmente, os governos tinham outras ideias, o que ficou bastante claro quando, há pouco mais de 20 anos, o presidente Fernando Henrique Cardoso criou a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana, ou IIRSA. Esse foi e continua sendo um programa de infraestrutura de dimensões impressionantes que envolve todas as nações sul-americanas. Para ter uma noção de sua magnitude geral, considere um pequeno trecho envolvendo o Rio Tapajós. Nesse rio, cinco represas foram planejadas, capazes de gerar 12.000 MW de energia hidrelétrica. Além disso, uma hidrovia de 1.400 km será construída do Mato Grosso até o rio Amazonas, e 11 portos complementares serão implantados ou modernizados. Fora da planície de inundação, duas ferrovias ligarão pontos do baixo Tapajós a rodovias transcontinentais e a ferrovias ao sul.

Não parece haver nada particularmente “verde” nessa infraestrutura, muito pelo contrário. Na verdade, o objetivo da IIRSA é promover a industrialização e transformar a Amazônia em uma fonte continental de energia hidrelétrica e um centro de transporte multimodal para exportação aos mercados globais. Qual será o impacto na Bacia Amazônica quando toda a infraestrutura da IIRSA estiver totalmente implementada? Essa é uma grande incógnita, mas não é muito difícil de supor, se evitarmos as armadilhas do pensamento mágico e resistirmos à ilusão de que o fato de o governo dizer que promove o desenvolvimento sustentável não significa que o faça. 

‘A teoria da causação cumulativa sugere que, uma vez que a IIRSA tenha reduzido os custos de transporte e tornado a energia hidrelétrica barata prontamente disponível, inicia-se um processo de feedback positivo econômico’

A teoria da causação cumulativa, conforme articulada por economistas como o ganhador do Prêmio Nobel Paul Krugman, sugere que, uma vez que a infraestrutura tenha reduzido os custos de transporte e tornado a energia hidrelétrica barata prontamente disponível, inicia-se um processo de feedback positivo. O crescimento do emprego decorrente de novos investimentos atrai trabalhadores, cujas demandas de consumo atraem investimentos adicionais, o que leva a mais crescimento do emprego, estimulando, assim, um novo influxo de trabalhadores, e dessa forma por diante, formando um ciclo que transforma uma região subdesenvolvida em uma região economicamente dinâmica. 

Na Amazônia, a população regional poderia chegar a 100-200 milhões de pessoas, e a economia espacial do continente poderia ser “invertida”. A base industrial de São Paulo se tornaria um cinturão de ferrugem, enquanto uma nova aglomeração industrial surgiria no Vale do Amazonas.  

‘A floresta desapareceria antes que a última hidrovia da IIRSA fosse concluída, um resultado não consistente com o caminho do desenvolvimento sustentável’

E quanto à floresta? A alimentação de 100 a 200 milhões de pessoas estimularia o desenvolvimento agrícola dentro da própria região, já que todas essas árvores estariam prontas para serem derrubadas em campos e pastos. A floresta desapareceria antes que a última hidrovia da IIRSA fosse concluída. O resultado descrito não seria consistente com o caminho do desenvolvimento sustentável.

Então, como o presidente Lula da Silva lida com a aparente contradição entre o planejamento do governo e o pensamento positivo? Ele é um proponente do desenvolvimento sustentável ou um defensor da velha guarda do “negócios como sempre e a floresta que se dane”? Pelas suas palavras como presidente recém-eleito, seria difícil classificar Lula como algo além de um defensor do desenvolvimento sustentável, como deve ser o caso de qualquer pessoa que promete reduzir o desmatamento a zero até 2030.

Mas e quanto às ações de Lula? Elas não são tão facilmente discerníveis, embora uma pista possa ser obtida ao considerar os gastos do governo com o desenvolvimento da Amazônia durante as administrações anteriores do Partido dos Trabalhadores. 

Esses gastos de 2011 a 2015 mostram um padrão tradicional que favorece o crescimento econômico e somam cerca de R$ 453 bilhões. Isso engloba os gastos com desenvolvimento sustentável de R$ 5,29 bilhões, grande parte deles provenientes de doadores do Fundo Amazônia (R$ 1,16 bilhão). Assim, o orçamento federal alocou apenas 1,5% de seus fundos de desenvolvimento da Amazônia para a agenda de sustentabilidade

‘Evidentemente, da última vez que Lula atuou, ele não se mostrou um defensor ferrenho da sustentabilidade’

Evidentemente, da última vez que Lula atuou, ele não se mostrou um defensor ferrenho da sustentabilidade. O desmatamento caiu depois de 2005, mas começou a subir novamente depois de 2012, provavelmente em resposta, pelo menos em parte, à sua agressiva agenda de infraestrutura.    

O presente não precisa repetir o passado, e as declarações políticas de Lula desde que assumiu o cargo em 2023 sugerem uma mudança de atitude. Vale ressaltar que ele reafirmou o compromisso do Brasil com os princípios da Rio-92 na Declaração de Belém, após a recente reunião da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Mais especificamente, o presidente mostra-se ciente dos perigos de desmatamento associados à infraestrutura de grande escala, ao declarar uma abordagem bioeconômica para o desenvolvimento da Amazônia. Esse é um bom sinal, já que as atividades bioeconômicas têm o potencial de alcançar o desenvolvimento sustentável, se ramificadas nos confins da bacia. 

‘A questão é: se as atividades bioeconômicas já existem, e existem, e se são economicamente desejáveis, como muitos argumentam, por que a bioeconomia ainda não derrotou o desmatamento?’

O “se” aqui aponta para uma questão séria, já que as atividades bioeconômicas existem há muito tempo, incluindo a prática da agrofloresta e a extração de produtos florestais não madeireiros, para citar apenas dois exemplos de uma lista muito longa. A questão é: se as atividades bioeconômicas já existem, e existem, e se são economicamente desejáveis, como muitos argumentam, por que a bioeconomia ainda não se estabeleceu e derrotou o desmatamento? 

Espero sinceramente que minha pergunta seja logo contestada por inovadores brasileiros brilhantes que desenvolvem produtos baseados na biodiversidade e tornam a terra mais valiosa com a floresta do que sem ela. Mas também me preocupo com o fato de que a bioeconomia possa vir a ser a “baleia branca” do sonho de desenvolvimento sustentável. Se isso acontecer, Lula da Silva passará por maus bocados no papel do capitão Ahab.

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*Robert T. Walker é colunista da Interesse Nacional e professor de estudos latino-americanos e geografia na University of Florida

Tradução de Letícia Miranda


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Robert Toovey Walker é colunista da Interesse Nacional, geógrafo, tem doutorado em ciência regional pela University of Pennsylvania e é professor de estudos latino-americanos e geografia na University of Florida

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