06 dezembro 2023

Xi, Biden e o curso da história

Analistas dizem que a competição entre China e EUA tende a levar a um conflito inevitável entre as duas potências. Para embaixador, há um contraste entre as formas como os dois países veem o mundo e seu papel nele, e é importante questionar a fronteira entre “Oriente” e “Ocidente” no planeta globalizado

Analistas dizem que a competição entre China e EUA tende a levar a um conflito inevitável entre as duas potências. Para embaixador, há um contraste entre as formas como os dois países veem o mundo e seu papel nele, e é importante questionar a fronteira entre “Oriente” e “Ocidente” no planeta globalizado

Por Fausto Godoy*

O artigo do Lourival Sant´Anna, intitulado O longo caminho para China e EUA, que o Estadão publicou em 19/11, no qual ele analisa a “competição entre democracias (EUA…) e autocracias (RPC…) para mobilizar o Ocidente contra China, Rússia, Irã e Coreia do Norte”, o âmago de um conflito que “pode ser adiado, mas dificilmente evitado”, estimulou-me a refletir sobre a fatalidade desta afirmação.

Segundo o articulista, “depois de se reunir com Xi Jinping, Joe Biden foi indagado por uma repórter da CNN se o presidente americano ainda considerava o líder chinês um ditador. Ele respondeu que sim. A chancelaria chinesa repudiou a declaração. O episódio revela os imensos obstáculos a uma distensão entre as duas superpotências”. Ainda conforme o artigo, “durante a reunião a portas fechadas entre os dois líderes, segundo a agência oficial chinesa Xinhua, Xi argumentou que a China não tem planos de ultrapassar ou desbancar os EUA, e os EUA não deveriam tramar para suprimir ou conter a China”.

Vamos refletir sobre a “alegação da inevitabilidade de um conflito EUA X RPC” e “os planos de a RPC desbancar os EUA”?

‘Os chineses se veem antes como uma “civilização” do que um “país” segundo o conceito westfaliano’

Para tanto, é preciso tentar entender como a China – antes mesmo de ser percebida como uma “República Popular” – se vê. Lourival Sant’Anna tem razão quando afirma que “a China acredita ter vocação milenar para ocupar o centro do mundo”. Na verdade, a primeira impressão que se pode ter é que os chineses se veem antes como uma “civilização” do que um “país” segundo o conceito westfaliano. Com efeito, o nome oficial do país, em mandarim, é Zhōng guó (中国), ”país do centro/meio”. Esta tem sido a imagem pela qual os chineses têm-se identificado perante eles mesmos ao longo da sua história. 

Como corolário deste conceito, para manter a integridade da sua civilização, eles se mantiveram isolados do mundo durante séculos pelas muralhas que construíram a partir do século VII AEC até o final da dinastia Ming (1368-1644). Entrementes, expandiram o seu comércio através da(s) Rota(s) da Seda e se tornaram a maior potência econômica do planeta ao longo dos séculos, mas nunca ocuparam de forma “imperialista/colonialista” territórios além dos que – à tort ou à raison – consideram como seus: o Tibete, Xinjiang, Hong Kong, Macau e Taiwan, todos eles, aliás, contestados pela população nativa e por grande parte da comunidade internacional. 

Até que nos séculos XVIII/XIX os ocidentais vieram romper este “esplêndido isolamento” e catapultar a sociedade chinesa ao conturbado século XX, que ela enfrentou de forma atabalhoada.

O que isto tem a ver com alegadas “veleidades hegemônicas” de Pequim? Em suma, como as elites políticas e empresariais chinesas – e a população, na sua grande maioria – veem o papel da China no mundo contemporâneo?

‘A China se vê como a superpotência econômica do século XXI. Em outros termos, seria uma “revanche” contra o espoliação a que foi submetida pelas potências europeias no século XIX’

A julgar pelos conceitos enunciados logo no primeiro capítulo do livro The China Dream, de autoria do professor e diretor da China´s National Defense University, Liu Mingfu, que o Presidente Xi Jinping cita amiúde, “it has been China´s dream for a century to become the world´s leading nation. But what does it mean for China to become the world ‘s leading nation? First it means that China´s economy will lead the world. On that basis, it will make China the strongest country in the world. As China rises to the status of a great power in the 21st century, its aim is nothing less than the top – to be the leader of the modern global economy”: ou seja, ela se vê como a superpotência econômica do século XXI. Possível? Preocupante? Em outros termos, seria uma “revanche” contra o espoliação a que foi submetida pelas potências europeias no século XIX , que a sua história registrou como o “Século das Humilhações”?

De um outro ângulo de análise, este livro foi publicado inicialmente em 2015, quando a economia chinesa crescia a galope. Seria o mesmo cenário agora? Será que os desafios que a economia e a sociedade estão enfrentando na atualidade constituem o presságio de um novo ciclo, ou até mesmo de um possível declínio? Ou a adaptação a um novo paradigma de desenvolvimento, voltado cada vez mais para o mercado interno e não tão dependente do comércio exterior, não demandando, portanto, PIBs tão superlativos?

E o que isto tem a ver com o encontro entre Xi Jinping e Joe Biden?

‘A leitura que os americanos estão fazendo é a de uma “ameaça aos valores do Ocidente” – democracia, direitos humanos, liberdades individuais, etc. – impulsionada pelos conceitos e valores promovidos pelos “comunistas chineses“‘

A leitura que os americanos estão fazendo, pelo que entendo, é a de uma “ameaça aos valores do Ocidente” – democracia, direitos humanos, liberdades individuais, etc. – impulsionada pelos conceitos e valores promovidos pelos “comunistas chineses“. Este entendimento levou Biden a chamar Xi de “ditador”, como vimos. Porém, estamos falando de ideologia, valores ou de conceitos/preconceitos civilizacionais? Certamente, o presidente americano, e a maioria de nós neste lado do planeta, analisamos e prejulgamos uma cultura alienígena segundo nossos padrões. É a lógica; mas, será que estes padrões, que fazem todo sentido para nós, são válidos erga omnes num planeta cada vez mais interligado? Qual é a fronteira entre as ideologias e a boa convivência? Onde estaria o equilíbrio?

Ademais, a história segue o seu curso. Testemunhei quatro hegemonias no meu tempo de vida (nasci em 1945): 1) o ocaso do Império Britânico, ao final da II Guerra Mundial; 2) a hegemonia disputada entre os Estados Unidos/Ocidente e a União Soviética/países da Cortina de Ferro, na détente das décadas de 60/70/80; 3) a hegemonia unívoca dos Estados Unidos após a dissolução da URSS, em 1991; e 4) a hegemonia compartilhada entre os Estados Unidos e a China neste início do século XXI. Conjecturando, eu me pergunto qual seria a próxima. Tenho as minhas suposições…

Desta forma, convido os amigos a refletir comigo sobre se os valores que compartilhamos neste lado do planeta estariam “ameaçados”, como julga o presidente americano, pela emergência da que aparentemente está fadada a ser a principal economia do mundo. Será que o cerne dos nossos valores seriam desvirtuados por uma suposta hegemonia econômica? Qual é a fronteira entre “Oriente” e “Ocidente” no planeta globalizado?

Questionamentos e desafios para as nossas convicções. 

Enquanto isso, la nave va…

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fausto-godoy-xi-jinping-e-o-mandato-do-ceu/

*Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

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