Segurança Jurídica e Investimentos em Infraestrutura
O desenvolvimento é a terra prometida que o Brasil parece jamais alcançar. Nas mais variadas receitas para que cheguemos a esse tão sonhado destino, a atração de investimentos é apontada de forma consensual como ingrediente indispensável. Nesse contexto, diagnósticos sobre nossos recorrentes fracassos vêm atribuindo à insegurança jurídica que reina no país um papel preponderante na inibição de investimentos provenientes do mercado privado1, suscitando um virtual monopólio de aportes de recursos públicos que parece não se sustentar no longo prazo. Por isso mesmo, especialmente em um cenário de severa crise econômica e política, a segurança jurídica assume um valor instrumental de concretude bem mais clara do que podem transparecer as abstrações teóricas que povoam os manuais de direito.
Atribui-se a Pedro Malan a afirmação de que, no Brasil, até o passado é incerto. Não faltam exemplos para confirmar essa paradoxal tese que sintetiza a natureza singular do problema da insegurança jurídica em terras tupiniquins. Investidores estrangeiros que optaram por comprar o risco, quando confrontados com problemas práticos decorrentes desse cenário de precariedade, esbravejaram que “é insano investir no Brasil”2, enquanto outros mais cautelosos resistem a investidas de nosso governo observando que os recursos não podem desembarcar antes que se estabeleçam bases mais seguras3. Para enfrentarmos esse desafio, então, duas perguntas se colocam: (i) de que problema estamos falando quando nos referimos à insegurança jurídica?; e (ii) quais são as formas de atacá-lo, de modo que possamos abrir caminho para uma nova onda de investimentos?
Meu objetivo é trazer o conceito de segurança jurídica para o plano mais palpável das instituições tais como elas funcionam no mundo real. Apresento o debate a partir de uma distinção conceitual entre incerteza jurídica, que se refere a um fenômeno incontornável e natural do direito, e insegurança jurídica, que deve ser compreendida como consequência de patologias institucionais nos mecanismos de gestão estatal dessa incerteza. Concentrarei minhas atenções sobre o caso específico dos setores de infraestrutura, que vêm sendo especialmente afetados pelo custo decorrente de níveis elevados de insegurança jurídica. Meu intuito é explicitar como a insegurança nesse segmento específico da economia decorre de uma lógica burocratizante que gera disfuncionalidades no nível das instituições encarregadas pela formulação, seleção, contratação e controle de projetos.
É possível perceber de forma particularmente saliente nos negócios público-privados de infraestrutura uma gestão patológica da incerteza jurídica4 que se institucionalizou em normas e práticas do poder público. Esse problema tem como efeitos mais evidentes (i) o desincentivo à concepção de soluções inovadoras e eficientes por parte de gestores públicos; (ii) um controle excessivamente focado em processos em detrimento de resultados; (iii) e procedimentos altamente burocratizados que estimulam a corrupção, culminando em um grau de fragilidade jurídica que torna improvável uma onda de investimentos privados. Argumento que o combate à insegurança jurídica nos setores de infraestrutura e a consequente atração de novos investimentos depende da institucionalização de mecanismos propícios à superação da lógica maximalista, que informa as normas e práticas que assumiram a condição hegemônica nesse segmento da economia.
Ao final, analisarei criticamente dois planos de ataque que pretendem operar, por via de reformas legislativas, um reajuste dessa tortuosa trajetória institucional nos setores de infraestrutura. O primeiro é a recém-promulgada Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016, oriunda da primeira medida provisória editada pelo então governo interino de Michel Temer, que assentou as bases do Programa de Parcerias de Investimentos (“PPI”). O segundo é um projeto de lei elaborado por celebrados juristas e apresentado pelo senador Antonio Anastasia, com o objetivo de modificar a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Tentarei aferir até que ponto essas iniciativas podem ser compreendidas como experimentos institucionais transformadores que podem dar conta do problema da insegurança jurídica. Concluo indicando existência de certa dose de experimentalismo nessas reformas, que podem ajudar na construção de condições necessárias para a eliminação de amarras jurídicas que travam investimentos em infraestrutura.
1. Entre incerteza e insegurança
A segurança jurídica é mais do que um direito consagrado em nossa Constituição ou uma garantia individual, consistindo em um verdadeiro princípio-guia para a conformação de nosso ordenamento jurídico. Especialmente no que toca à sua interface com a economia, um papel fundamental do direito é justamente o de conferir previsibilidade (dimensão ex ante) e estabilidade (dimensão ex post) às relações jurídicas. Mais do que realizar um senso de justiça, conceitos como direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada buscam estabelecer um terreno minimamente firme para que as engrenagens do mundo da política e da economia possam funcionar.
Por isso mesmo, a segurança jurídica não deve ser um assunto monopolizado por juristas, mas antes um tema abordado de forma multidisciplinar e uma agenda a ser colocada em primeiro plano pelos governos que se sucedem. Com efeito, deve-se distinguir, ainda no plano conceitual, o que se chama de forma mais genérica de incerteza jurídica e a insegurança jurídica propriamente dita. A vagueza do conteúdo normativo de leis e a consequente incerteza na aplicação do direito são um fenômeno natural e incontornável. Não por outra razão, foram desenhadas, por exemplo, instituições judiciais para cuidar da gestão dessa incerteza em hipóteses nas quais se contrapõem visões antagônicas sobre a interpretação de materiais jurídicos em casos concretos.
O que se chama de insegurança jurídica é algo diferente, referindo-se às consequências de uma gestão patológica dessa incerteza. Ou seja, a insegurança reina quando os mecanismos pensados para lidar com o incontornável problema da incerteza não funcionam de forma minimamente adequada e não conseguem atingir seu fim social. Temos uma situação de insegurança quando o ordenamento não é capaz de conferir níveis satisfatórios de estabilidade às relações jurídicas pretéritas e previsibilidade às relações jurídicas futuras, de modo que os agentes econômicos possam exercer seus respectivos papéis dentro de um panorama mais claro dos caminhos que podem seguir e dos direitos que podem reivindicar. É por isso que Armando Castelar Pinheiro observa que “a segurança jurídica não elimina, por óbvio, a incerteza, mas permite transformá-la em risco, que é calculável e pode ser inserido nos modelos de decisão”5.
Deve-se observar que a insegurança jurídica e seu impacto sobre a atração de investimentos não são um problema exclusivamente tupiniquim. Cuida-se de uma questão global, que vem sendo enfrentada de diferentes formas em cada contexto específico, inclusive por países integrantes do privilegiado grupo de nações desenvolvidas6. Ocorre que, por aqui, o problema parece assumir contornos ainda mais fortes. Pelo menos duas marcas tipicamente brasileiras da insegurança jurídica funcionam como barreiras ao investimento. Primeiramente, o cipoal de normas jurídicas é tão complexo que o problema não se restringe à falta de clareza da legislação. Não é incomum, especialmente na área tributária, que advogados sejam contratados para consultas em que empresas buscam apenas decifrar quais são os normativos em vigor.
Outra marca tipicamente brasileira da insegurança jurídica é o elevado nível de disputa intragovernamental que se verifica na aplicação da legislação vigente. Essa dimensão do problema se diferencia da primeira, pois não está estritamente relacionada com a falta de clareza na legislação vigente. O que se verifica, aqui, são patologias no processo de gestão da incerteza jurídica, i.e., um funcionamento dissonante e muitas vezes contraditório de instâncias governamentais que potencializa as incertezas naturais do direito e afeta os níveis de confiança de agentes investidores. Ao buscarmos no nível institucional as causas para a exacerbada insegurança jurídica nas relações Estado-mercado, no Brasil, percebemos esse tipo de patologia não apenas nos órgãos que tipicamente exercem função jurisdicional, mas também naqueles que cuidam da gestão pública e do controle.
No caso dos setores de infraestrutura, percebemos de forma ainda mais clara que não apenas o Poder Judiciário, mas também os órgãos encarregados pela gestão de projetos e pelo controle de recursos públicos atuam dentro de um amplo espaço de gestão de incertezas jurídicas do ambiente econômico. Identifico uma patologia institucionalizada nesse campo, que se relaciona com a burocratização em excesso dos negócios público-privados. Meu argumento é de que essa gestão patológica da incerteza7 gera uma contraproducente insegurança jurídica, inspirada em uma lógica maximalista que assumiu condição hegemônica no tratamento das contratações públicas no Brasil ao menos desde 1993, com a promulgação da Lei de Licitações e Contratos.
2. Negócios público-privados em infraestrutura e a “Era Maximalista”
Os setores de infraestrutura são historicamente tratados com desconfiança. Boa parte dos grandes contratos públicos para a realização de obras foi manchada por uma elevação de custos muito acima dos valores inicialmente projetados ou por grandes escândalos de corrupção. Em paralelo, desenvolveu-se um marco legal que privilegiou a normatização detalhada de atos de gestão e o controle extensivo da administração, o que resultou no que chamo de “Era Maximalista”8.
Como afirma André Rosilho, esse apego à norma gerou um desbalanceamento clarividente nas relações entre entes públicos e privados que atuam no mercado de infraestrutura. Para o autor, isso seria próprio ao maximalismo que marcou as normas de contratação pública nas últimas décadas, com uma tendência ao detalhismo, com regras que restringem ao máximo a liberdade de seus destinatários e teme a discricionariedade. Essa contraposição coloca a administração e o agente privado como polos opostos de uma relação que deveria ser sinérgica9. Seu símbolo maior é a Lei nº 8.666/93, promulgada em 1993, que foi concebida como solução após a crise de corrupção dos anões do orçamento a partir da implementação de uma assimetria completa na relação Estado-mercado, com dispositivos que incentivam uma condução pouco eficiente dos negócios públicos, como aqueles que permitem o não adimplemento de contratos pelo governo por até 90 dias, além da rescisão unilateral por interesse da administração, entre outros que se amparam na ideia de supremacia do interesse público.
Assim, os negócios público-privados de infraestrutura nas últimas décadas foram marcados por características que Helio Beltrão enumera como próprias de uma “asfixia burocrática”, em especial no que diz respeito a um excessivo apego ao formalismo e a uma “mórbida presunção da desconfiança”, que continua sendo a marca registrada da maioria das leis, dos regulamentos e das novas que regem a Administração Pública10.
As duas iniciativas que serão examinadas na próxima seção constituem tentativas de institucionalização de uma mudança de lógica no tratamento dos negócios público-privados de infraestrutura. Podem ser tratadas como propulsoras ou como sintomas de um movimento pendular que indica uma guinada no sentido contrário do maximalismo, que marcou as últimas décadas. Nessa mesma medida, guardam relação com uma maior preocupação em conferir segurança jurídica e proteger o mercado para que se alcancem novas soluções de financiamento.
3. Algumas iniciativas transformadoras?
O Programa de Parcerias e Investimentos (“PPI”), criado pela Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016, possui o objeto, declarado por seu artigo 1º, de “ampliação e fortalecimento da interação entre o Estado e a iniciativa privada por meio da celebração de contratos de parceria para a execução de empreendimentos públicos de infraestrutura”. Trata-se, em verdade, de uma iniciativa governamental mais ampla para fomento a grandes projetos de infraestrutura de longo prazo, sendo a lei apenas um pontapé inicial em uma estruturação que objetiva promover investimentos para novos projetos. De toda maneira, a mensagem que a reforma pretendeu incutir é a de que haverá um “restabelecimento da segurança jurídica”11.
A lei que fundou o PPI tem o claro propósito de organizar melhor o processo decisório intragovernamental no caso de grandes projetos de infraestrutura. Mira, assim, exatamente na gestão patológica da incerteza jurídica, estabelecendo uma nova sistemática para grandes projetos que sejam selecionados como de interesse nacional12. Seu foco na atração de investimentos fica ainda mais claro ao promover a constituição de um Fundo de Apoio à Estruturação de Parcerias, administrado pelo BNDES, que seria uma forma de trazer o know-how do banco de investimentos para a estruturação dos negócios público-privados. O texto da lei indica uma guinada em favor de mais planejamento e de soluções mais eficientes de gestão, tendo em vista a celeridade que deve marcar o andamento de grandes projetos de infraestrutura que sejam importantes para o desenvolvimento nacional.
O PPI tem um perfil nitidamente pragmático, voltado à resolução de problemas práticos que travam o desenvolvimento do país. Como é comum a esse tipo de iniciativa, busca desenvolver-se à margem de problemas estruturais que se colocam sobre o sistema como um todo. Ou seja, a nova lei busca estabelecer uma espécie de oásis normativo em que investimentos para grandes projetos de infraestrutura poderiam atracar para fugir das amarras que ainda povoam o marco geral de contratações públicas. Com esse escopo limitado, o programa não alcança, por exemplo, problemas relacionados com a insegurança jurídica decorrente da atuação de órgãos de controle. Ainda assim, o PPI pode ser compreendido como um experimento institucional inovador, que pode servir como balão de ensaio a ser expandido para outras áreas.
Imprevisibilidade e incerteza
A segunda iniciativa analisada, em contraste, possui um enfoque de ordem mais programática, buscando consolidar no ordenamento jurídico algumas ideias de teor generalizável que teriam aplicabilidade sobre o sistema como um todo. Seu escopo, por conseguinte, não se restringe a empreendimentos urgentes, tampouco se direciona exclusivamente ao desenvolvimento da infraestrutura, mas antes busca enfrentar mazelas que se encontram no terreno mais profundo das relações público-privadas que dão forma ao direito administrativo brasileiro.
Cuida-se do projeto de Lei nº 349/2015, que tramita no Senado Federal. A versão original do texto, elaborada pelos juristas Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto, foi acolhida e apresentada pelo senador Antonio Anastasia. A justificativa dos autores intelectuais da proposta está em sintonia com o diagnóstico aqui apresentado. Segundo eles, “assistimos a um processo contraditório: quanto mais se avança na produção de normas disciplinadoras da ação da Administração, mais se aprofunda a precarização da segurança jurídica. Quanto mais crescem processos e controles, maiores a imprevisibilidade e a incerteza. Isso tudo pôs em risco os ganhos da estabilidade econômica, política e institucional construída nos últimos anos. A incerteza jurídica é a porta de entrada das violações aos direitos”13.
A partir desse ponto de vista, o projeto arquiteta um plano de ataque que não propõe, simplesmente, um desvio pontual dos problemas estruturais que assolam nosso sistema, focalizando, de fato, o real núcleo do problema. Seu objetivo não é eliminar a incerteza jurídica, mas antes conferir uma mecânica decisória mais clara, que seja, assim, suficiente para conferir parâmetros normativos que evitem o que chamei de gestão patológica das incertezas jurídicas por parte das instâncias públicas decisórias, tanto judiciais, como administrativas e de controle. Nessa medida, compreendo a iniciativa como um experimento institucional inovador que merece ser levado adiante, ainda que passível de debates e mudanças pontuais sobre seu teor mais específico.
O projeto objetiva a modificação da chamada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, consolidando balizas mais claras para a interpretação e a aplicação do direito público. Dentre os dez artigos do projeto, vale mencionar o dispositivo que impõe que decisões fundadas em valores jurídicos abstratos sejam motivadas a partir de uma mensuração de suas consequências práticas (art. 20), bem como os textos que pretendem proteger a atuação de gestores inovadores e bem-intencionados (art. 21) e que fomentam soluções negociadas entre a administração e particulares (arts. 22 e 23). O projeto também mostra preocupação com patologias nos mecanismos de controle, impedindo-se a perpetuação da incerteza de contratos administrativos, inclusive com a possibilidade de recorrer ao Poder Judiciário para declarar a validade de atos, contratos, ajustes ou normas administrativas (art. 24).
A aprovação do projeto não teria a capacidade, por si só, de promover uma mudança completa a partir da incorporação formal de soluções absolutamente inéditas ao ordenamento jurídico. Nota-se, contudo, que o projeto já parte de uma convergência teórica que vem sendo construída ao longo do tempo como uma espécie de reação às fragilidades da “Era Maximalista”. Nas palavras de Sundfeld, o projeto busca “sintetizar as preocupações de uma época”, como reflexo dos “desvios de uma época anterior”14. Ou seja, é o resultado de inquietações de um conjunto de juristas que se rebelam de forma quase consensual contra a lógica burocratizante do modelo que ainda se encontra em vigor e que ainda é responsável pelos incentivos que orientam as relações público-privadas no mercado de infraestrutura.
O que se percebe a partir da análise das duas medidas é que, apesar de organizarem estratégias de ação opostas – uma pensando em um segmento específico a partir de preocupações de curto prazo e a outra buscando dar um tratamento mais abrangente ao problema a partir de uma visão de longo prazo –, ambas partem de um mesmo diagnóstico e apontam para soluções que buscam contribuir para a institucionalização de mecanismos de aperfeiçoamento da gestão da incerteza jurídica. Assim, devem ser defendidas com um sentido de complementariedade. A aprovação do projeto de lei que ainda tramita no Congresso Nacional seria um passo importante, inclusive, para a consolidação do PPI no mercado de infraestrutura.
Conclusão
Como alerta Joaquim Falcão, a preocupação do arquiteto institucional deve ser a de evitar que a natural incerteza que povoa o ordenamento jurídico repercuta em um aumento indesejável da insegurança jurídica, visto que “se aquela é estruturadora da democracia, esta é sua patologia”15. Busquei jogar luz sobre reformas legislativas que têm como objetivo justamente conferir maior segurança jurídica às relações público-privadas e, assim, abrir caminho para a atração de mais investimentos. Caracterizei as duas iniciativas analisadas como experimentos institucionais inovadores que podem ser compreendidos como estratégias complementares que devem ser levadas adiante pelo Poder Público. Meu argumento é de que essas reformas legislativas podem ser caracterizadas como impulsos importantes para a criação de um círculo virtuoso.
Se, de um lado, essas reformas não podem dar conta de todos os problemas relacionados com a insegurança jurídica, de outro, parecem acertar na tentativa de fixar algumas das condições necessárias para o combate da gestão patológica da incerteza jurídica que marca o processo decisório das instituições públicas que atuam nos setores de infraestrutura. Seu mérito reside justamente no fato de que consolidam normativamente visões contestatórias da lógica da “Era Maximalista” que já haviam alcançado certo grau de consenso na comunidade crítica, mas que ainda não tinham assento formal no ordenamento e, logo, não devem ser encaradas como mudanças de tipo top-down.
A criação de um ambiente de negócios mais seguro sob o ponto de vista jurídico é um passo fundamental para a atração de investimentos. Temos que compreender, no entanto, que a garantia de estabilização de relações jurídicas pretéritas e de maior previsibilidade das relações jurídicas futuras não depende apenas de mudanças legislativas. O processo de construção do princípio da confiança nas relações Estado-mercado deve ser pensado no longo prazo. Não podemos deixar de lado a dimensão cultural do problema, direcionando esforços ao fomento de um capital cívico que contraste com a lógica desconfiada do modelo ainda dominante. Temos muito espaço para avançar – que a crise funcione, de fato, como uma janela de oportunidade.
NOTAS:
1.
Armando Castelar Pinheiro sintetiza bem essa visão. Segundo o economista, “o Brasil tem uma economia cheia de oportunidades, mas que esbarra, de um lado, no alto risco para quem investe e, de outro, na falta de financiamento que, entre outros fatores, também reflete o risco elevado que cerca a atividade econômica no país. A economia também sofre com a baixa produtividade dos investimentos, estruturados, em parte, para protegê-los desses riscos e reduzir os custos de realizar negócios em um ambiente de grande incerteza”. Assim, “se o Brasil gozasse de maior grau de segurança jurídica, a economia cresceria mais rapidamente, pois as taxas de investimento e de crescimento da produtividade aumentariam. Mais crescimento geraria mais emprego, melhoraria as condições sociais e favoreceria a estabilidade política, o que, por sua vez, contribuiria para promover a segurança jurídica, criando um círculo virtuoso”. PINHEIRO, Armando Castelar. (2005) Segurança jurídica, crescimento e exportações. Ipea, Texto para Discussão nº 1125, p. 1.
2.
A frase é do empreendedor americano Stephen Ross após enfrentar conflitos intragovernamentais que bloquearam o andamento de um empreendimento de R$ 8 bilhões localizado na cidade de São Paulo. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/blogs/direto-da-fonte/areas-do-governo-nao-se-entendem-e-insano-tentar-investir-no-brasil/
3.
Em recente visita ao Brasil, o vice-ministro de Finanças da Alemanha, Jens Spahn, ponderou: “Queremos que mais empresas alemãs invistam no Brasil, mas, para isso, é preciso um arcabouço mais interessante para investir”. Disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/para-investir-alemaes-querem-mais-seguranca-juridica-17246971
4.
A expressão é inspirada no que Joaquim Falcão, Luiz Schuartz e Diego Werneck chamam de incerteza patológica. Para os autores, “as expectativas dos indivíduos quanto ao conteúdo das decisões judiciais que os afetam como destinatários diretos ou indiretos podem ser afetadas negativamente por incerteza de natureza patológica. Isso se dará quando uma expectativa juridicamente fundada for frustrada por uma decisão que não pertença ao conjunto – normalmente não unitário – das decisões juridicamente satisfatórias diante do caso concreto”. FALCÃO, Joaquim; SCHUARTZ, Luís Fernando; ARGUELHES, Diego Werneck. (2006) Jurisdição, incerteza e estado de direito. Revista de Direito Administrativo, v. 243, p. 108. Busco levar esse conceito ao nível institucional de outros órgãos encarregados pela gestão de incertezas jurídicas, como órgãos públicos responsáveis pela contratação, gestão e controle de contratos administrativos firmados entre a administração e particulares.
5.
PINHEIRO, Armando Castelar. (2016) Segurança jurídica e competitividade. Diário de Pernambuco, 10 de março de 2016.
6.
Como observam Larry Beeferman e Allan Wain, “The reference to legal/political would seem to have particular relevance to developing countries where, at the extreme, there might be issues of concern in respect of the rule of law, stability, etc. though the matter of legal uncertainty and political pressure/machinations might extend under some circumstances to developed countries”. BEEFERMAN, Larry; WAIN, Allan. (2013) Infrastructure: deciding matters. Harvard Law School Paper Series, p. 11.
7.
O termo é inspirado na tese defendida por Joaquim Falcão para falar em uma gestão patológica da incerteza jurídica por tribunais e cuja origem remonta à ideia de incerteza patológica, desenvolvida em FALCÃO, Joaquim; SCHUARTZ, Luís; ARGUELHES, Diego Werneck. (2006) Jurisdição, incerteza e estado de direito. Revista de Direito Administrativo, v. 243. Assumo a visão dos autos no sentido de que “apenas a insegurança jurídica gerada por um tipo de incerteza que qualificaremos – em contraposição à estrutural – de patológica é que pode e deve ser combatida”.
8.
O termo é inspirado na obra de André Rosilho, Licitação no Brasil, publicada pela editora Malheiros, em 2013.
9.
Sundfeld enquadra essa distância como a contraposição entre direito dos clipes e direito dos negócios. SUNDFELD, Carlos Ari. (2013) Direito administrativo para céticos. Malheiros: São Paulo.
10.
BELTRÃO, Helio. (2002) Asfixia burocrática. In: Descentralização & Liberdade. 3. ed. Brasília: Universidade de Brasília e Instituto Helio Beltrão.
11.
A frase é de Moreira Franco, coordenador do PPI. Disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,vamos-restabelecer-a-seguranca-juridica-diz-moreira-franco,10000075625. Outras autoridades do Governo Federal destacaram o enfoque do PPI sobre a questão da segurança jurídica. O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, enfatizou que: “O que é importante, do ponto de vista do investimento, é que haja, em primeiro lugar, uma taxa de retorno atrativa. Segundo, que o marco regulatório seja estável. Isto é: que haja uma confiança de que as regras não sofrerão mudanças constantes. É o clássico binômio: de um lado, rentabilidade, de outro lado, previsibilidade. E o resultado disso, obviamente, é melhor serviço à população e melhor custo de produção no País”. Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-planalto/noticias/2016/09/concessoes-devem-garantir-retorno-e-seguranca-juridica-diz-meirelles. O ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira, por sua vez, destacou a segurança jurídica e a viabilidade econômica como as marcas do programa. Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-planalto/noticias/2016/09/seguranca-juridica-e-viabilidade-economica-sao-marcas-do-ppi-diz-dyogo-oliveira
12.
Apesar de soar como uma espécie de protocolo de intenções, é particularmente inovadora a solução postulada pelo art. 17 da lei para liberação célere de empreendimentos: “Art. 17. Os órgãos, entidades e autoridades estatais, inclusive as autônomas e independentes, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, com competências de cujo exercício dependa a viabilização de empreendimento do PPI, têm o dever de atuar, em conjunto e com eficiência, para que sejam concluídos, de forma uniforme, econômica e em prazo compatível com o caráter prioritário nacional do empreendimento, todos os processos e atos administrativos necessários à sua estruturação, liberação e execução”.
10.
SUNDFELD, Carlos Ari; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. (2013) Uma nova lei para aumentar a qualidade jurídica das decisões públicas e de seu controle. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Org.). Contratações públicas e seu controle. São Paulo: Malheiros.
14.
Apresentação oral no seminário “Interpretação, Segurança Jurídica e Decisão Administrativa: Diálogos sobre o Projeto de Lei nº 349/2015”, organizado pela Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, em setembro de 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2wg YSw00rP0
15.
FALCÃO, Joaquim (2007). Privacidade do STF ou liberdade de imprensa. Folha de S.Paulo, 28 de agosto de 2007.
Daniel Bogéa é diretor-executivo do Idesb - Instituto Desburocratizar. Advogado e cientista político, possui mestrado em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo e é mestrando em Ciência Política na Universidade de Brasília. Foi bolsista do Tarello Institute for Legal Philosophy da Universitá degli Studi di Genova (Itália) e realizou treinamento em regulação na London School of Economics and Political Science (Reino Unido). Membro da Comissão de Juristas da Desburocratização do Senado Federal. É profissional certificado pela APMG International, em programa concebido pelo Banco Mundial para atuar em parcerias público-privadas (CP3P-F). E-mail: daniel@desburocratizar.org.br
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional