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Interesse Nacional
05 abril 2024

Potências médias emergentes e transição de poder no sistema internacional

Comunidades de política externa e a transição de poder

A transição de poder é um tema clássico dos estudos da política internacional. As pesquisas sistemáticas acerca da transição de poder são realizadas desde fins da década de 1950, quando Organski*[1]construiu as raízes de um programa cujo foco recaía sobre a dinâmica competitiva ou conflituosa entre potências emergente e declinante. Contudo, foi apenas com a criação do grupo dos BRICS e a emergência da China como superpotência que o problema da transição de poder voltou à agenda acadêmica[2]. As abordagens adotadas nos estudos sobre transição de poder, tradicionalmente, concentram-se nas dinâmicas entre as superpotências, e, particularmente, nos desafios impostos pelas potências emergentes ao status quo estabelecido pelo hegemon*[3]. Nessa agenda de pesquisa, pouca atenção é oferecida às potências médias cujo comportamento seria apenas relevante no interior das políticas de alianças adotadas pelas superpotências[4]. Mais que isso, as abordagens da transição de poder em geral negligenciam as formas como potências médias compreendem o próprio processo de transição ou mudança e as principais razões que incidem sobre seu posicionamento.

Com vistas a tratar desse gap na literatura, equipes de pesquisadores do BRICS Policy Center (PUC-Rio), a Körber Stiftung (Alemanha), Gateway House (Índia) e o South Africa Institute of International Affairs (África do Sul) conduziram uma pesquisa junto às comunidades de política externa dos quatro países[5]. Amaury de Souza*[6] se referiu a “comunidades de política externa” como uma forma de compreender a multiplicidade de atores envolvidos na formação da política externa brasileira. Seguindo o insight de Souza, o que aqui chamamos de “comunidade de política externa” não compreende apenas os tomadores de decisão mais evidentes, como diplomatas, ministros e a presidência, mas também burocratas de vários ministérios e instituições sociais e estatais, parlamentares, representantes do setor privado e líderes de organizações da sociedade civil*[7]. A pesquisa ouviu 922 pessoas vinculadas às comunidades de política externa nos quatro países e os dados coletados permitem compreender a posição adotada por cada um dos países diante de um cenário global marcado pela transição de poder. As figuras 1 e 2 apresentam o perfil dos respondentes nos quatro países.

Neste artigo, concentramo-nos na apresentação e na análise parciais e limitadas dos dados referentes aos países IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) e como suas comunidades de política externa percebem os processos mais amplos de transição de poder no sistema internacional. Beneficiamo-nos aqui dos insights do modelo preferences for change proposto por He & Feng*[8]. Esse modelo analítico pretende compreender como potências regionais, ou Estados secundários, ajustam suas políticas externas durante períodos de transição na ordem internacional. Para tanto, o modelo considera a transição de poder como um dado do sistema internacional e indaga como esses Estados se posicionam em meio à competição e potencial conflito entre as superpotências. Como observam os autores, “esse efeito sistêmico no comportamento da política externa é transmitido por meio das percepções dos líderes em relação ao cálculo de custo-benefício da transição da ordem em andamento. Em outras palavras, a preferência dos líderes políticos baseada no custo-benefício para a mudança da transição da ordem internacional enquadra a escolha da política de um Estado durante o período de transição da ordem.”*[9]

Os países IBAS e a transição de poder

Para compreender o posicionamento dos países IBAS diante da transição de poder, a pesquisa buscou identificar como essas comunidades percebem a distribuição de poder no sistema internacional e se estaríamos ou não diante do fenômeno da transição de poder. Como apresentado na figura 3, os respondentes confirmaram a percepção de que estaríamos diante de um processo de transição (80% na África do Sul, 87% na Índia e 90% no Brasil). A maioria dos respondentes nos três países (média de 63%) percebem que essa transição estaria se dando em direção a um sistema bipolar (40%) ou multipolar (23%). É importante perceber, ainda, que 23% dos respondentes na Índia identificam uma tendência para a consolidação de um sistema tripolar (EUA, Rússia e China), acima da média dos países IBAS (20%) e dos resultados encontrados no Brasil e na África do Sul (19% e 18%, respectivamente). Vale recordar que os laços de cooperação entre Índia e Rússia datam da Guerra Fria e se enraízam em diversos setores estratégicos incluindo defesa, espaço e comércio. Desde os anos 2000, contudo, a cooperação entre Índia e Rússia tem se concentrado na área de segurança energética com expressivos investimentos de empresas indianas na Rússia e um aumento expressivo das importações de petróleo desde o início do conflito na Ucrânia[10]. É digno de nota, ainda, o impulso que o antigo projeto de um corredor de transporte norte x sul, conectando os dois países através do território do Irã, ganhou com a adoção das sanções por países do G7 contra a Rússia[10].

Uma vez que a grande maioria dos respondentes confirmou a hipótese da transição de poder, a pesquisa indagou também como percebem a influência da potência emergente sobre seu próprio país e globalmente (Figuras 4, 5). Entre os países IBAS há uma clara clivagem entre as percepções identificadas nas comunidades de política externa do Brasil e da África do Sul, de um lado, e Índia, de outro. Tais preferências devem ser compreendidas à luz não apenas das relações econômicas da China com os três países como também de suas disputas regionais com a Índia. De fato, a China é, hoje, o maior parceiro comercial tanto do Brasil quanto da África do Sul[11] e o terceiro parceiro comercial da Índia[12] Diante desse quadro, brasileiros e sul-africanos veem a influência chinesa positivamente (78% e 62% respectivamente), tanto interna quanto globalmente (76% e 60%), enquanto os indianos percebem essa influência negativamente (86% e 73%).

Com os dados oferecidos na pesquisa, não somos capazes de afirmar que as percepções compartilhadas por brasileiros e sul-africanos acerca da China devem-se unicamente às relações econômicas entre esses países. Contudo, é possível sugerir que essa variável concorre para o balanço de custos e benefícios que informa a percepção dos respondentes. Essa perspectiva parece ser reforçada quando consideramos o caso da Índia. Embora a China ocupe a posição de terceiro parceiro comercial mais importante da Índia, o agravamento das tensões geopolíticas, particularmente desde 2020, e a insatisfação da Índia em relação às dificuldades de acesso de seus produtos ao mercado chinês (principalmente medicamentos e tecnologia da informação) parece incidir negativamente sobre a percepção acerca do impacto da China na Índia e no mundo. Não por acaso, as relações com a China são consideradas, por respondentes da Índia como a maior prioridade de sua política externa.

As diferentes percepções sobre a China e sobre sua ascensão à posição de superpotência, permitem compreender as opções de posicionamento estratégico sugeridas pelos respondentes para os três países (Figura 6). Assim, não surpreende que em países como Brasil e na África do Sul, onde prevalecem percepções positivas acerca da China, encontremos significativo apoio ao não alinhamento (82% e 79%, respectivamente). Tais dados contrastam com aqueles encontrados na Índia, onde 59% dos respondentes favorecem uma aproximação com os EUA.

Não Alinhamento e Proteção Estratégica

Os dados coletados com a pesquisa permitem realizar uma primeira aproximação às preferências portadas por participantes das comunidades de política externa dos três países. Seguindo as sugestões do modelo de preferences-for-change, podemos compreender como a transição de poder e a emergência da China são percebidas. Os dados nos sugerem que, (1) diante de uma transição para um sistema bipolar e, (2) na ausência de competição direta com um dos polos de poder, potências médias como o Brasil e a África do Sul tendem a adotar uma posição estratégica de não alinhamento que lhes garante flexibilidade e maior espaço político. Ao mesmo tempo, a ocorrência de competição com um dos polos, como observado no caso das relações entre Índia e China, sugere a adoção de uma posição de proteção estratégica (hedging). A proteção estratégica sugere o aprofundamento das relações com vários polos de poder sem que haja qualquer alinhamento definitivo. A adesão da Índia ao Quadrilateral Security Dialogue (Quad), do qual participam os Estados Unidos, Japão, e Austrália, e o apoio ao lançamento do Indo-Pacific Economic Framework[12]pelos Estados Unidos, são expressões desse posicionamento. Tais iniciativas indicam, por um lado, a preocupação com a criação de um mecanismo de balanceamento de poder na região que eleve os custos de um eventual conflito e, por outro permite maximizar seus interesses. O aprofundamento das relações com a Rússia no contexto de seu crescente enfrentamento com os Estados Unidos e com os países ocidentais, permite também compreender como a Índia busca, ainda, evitar uma posição de alinhamento automático.

Nesse contexto, este artigo buscou compreender as percepções das comunidades de política externa da Índia, Brasil e África do Sul. Tal exercício sugere que tanto o posicionamento de não alinhamento como o de proteção estratégica indicam que potências médias podem buscar uma posição de equidistância ou de múltiplos engajamentos das/com superpotências como forma de proteção e maximização de eventuais benefícios decorrentes da própria transição de poder.   

Referências bibliográficas

1. ORGANSKI, A. World politics. Alfred A. Knopf, (1958).

2. Tammen, R. L. Power Transitions: Strategies for the 21st Century. SAGE Publications, (2000). <https://books.google.com.br/books?id=xEF3AAAAMAAJ>.

3. CHAN, S.; FENG, H.; HE, K.; HU, W. Contesting revisionism: China, the United States, and the transformation of international order. Oxford: University Press, (2021). <https://books.google.com.br/books?id=nFFyzgEACAAJ>. *

3.CHRISTENSEN, T. J. There will not be a New Cold War. Foreign Affairs, (2021). <https://www.foreignaffairs.com/articles/united-states/2021-03-24/there-will-not-be-new-cold-war>*.

3. HE, K. Contested multilateralism 2.0 and regional order transition: causes and implications. The Pacific Review, v. 32, n. 2, p. 210–220, 2019.*

4. _______ ; FENG, H. After hedging: hard choices for the Indo-Pacific States between the US and China (1st ed.). Cambridge University Press, (2023) <https://doi.org/10.1017/9781009420570>.

5. GANTER, J.; COELHO, C. F.; ESTEVES, P.; GRUZD, S.; MANJEET, K.; LEHER, J. Listening beyond the echo chamber: emerging middle powers report. Körber Stiftung, 2024. <https://koerber-stiftung.de/en/projects/koerber-emerging-middle-powers-initiative/2023-2024/>.

6. SOUZA, A. Agenda Internacional do Brasil: um estudo sobre a Comunidade Brasileira de Política Externa. CEBRI, 2002.*

6. _______. Agenda Internacional do Brasil revisitada: percepções da Comunidade Brasileira de Política Externa. CEBRI, 2008.*

7. ESTEVES, P. Brazil: the nexus between security and development. In: PACZYNSKA, A. The new politics of aid: emerging donors and conflict-affected states. Lynne Rienner Publishers, Incorporated, (2020). <https://books.google.com.br/books?id=pJ3pwQEACAAJ>.*

7. _______; Herz, M. Climbing the ladder: Brazil and the international security field. In: Status and the rise of Brazil. Springer, (2020) p. 113–131.*

7. SOUZA, A. Agenda Internacional do Brasil: um estudo sobre a Comunidade Brasileira de Política Externa. CEBRI, 2002.*

7. _______. Agenda Internacional do Brasil revisitada: percepções da Comunidade Brasileira de Política Externa. CEBRI, 2008.*

8. HE, K. ; FENG, H. After hedging: hard choices for the Indo-Pacific States between the US and China (1st ed.). Cambridge University Press, (2023) <https://doi.org/10.1017/9781009420570>.

9. _______. ; _______. After hedging: hard choices for the Indo-Pacific States between the US and China (1st ed.). Cambridge University Press, (2023). p.12 <https://doi.org/10.1017/9781009420570>.

10. GUPTA, P. India-Russia oil trade and investments: an evolving facet of the historic bilateral. (2023).ORF. <https://www.orfonline.org/expert-speak/india-russia-oil-trade-and-investments-an-evolving-facet-of-the-historic-bilateral>.

10. MENON, R.; RUMER, E. Russia and India: a new chapter. Carnegie Endowment for International Peace, (2022).

11. DEPARTMENT TRADE, INDUSTRY AND COMPETITION (DTIC). China and South Africa holds talks on trade and investment in preparation for State Visit by President Xi Jinping. Republic of South Africa, (2023).

12. INDO-PACIFIC ECONOMIC FRAMEWORK (IPEF). Exploring India China trade and economic relations. (2024).

Obs.: referências que apresentam asterisco (*) ao final referem-se a um mesmo documento utilizado como fonte de informação para temas diversos.

PAULO ESTEVES é professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e pesquisador do BRICS Policy Center

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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