18 julho 2016

O Renascimento da Política Externa

Um livro branco que desapareceu
No primeiro trimestre de 2014, o então segundo chanceler do terceiro governo lulopetista anunciou, com grande transparência, o início dos chamados “Diálogos de Política Externa”, uma série de exercícios de reflexão a propósito de temas selecionados da diplomacia brasileira, para os quais foram convidados os próprios diplomatas (chefes das diversas áreas do Itamaraty), ademais de funcionários públicos, acadêmicos, líderes do mundo empresarial e representantes dessa vaga entidade chamada “sociedade civil” – na qual atuam, na verdade, entidades que costumam servir de correias de transmissão para determinados movimentos políticos – e que deveriam oferecer subsídios para integrar um “Livro Branco da Política Externa”, que deveria estar disponível até meados daquele ano. Os diálogos foram gravados, os vídeos colocados nos canais apropriados, mas o livro prometido não viu a luz do dia em nenhum momento desde então.
Muito provavelmente – mas isto é apenas especulação –, a síntese dos diálogos, efetuada por diplomatas profissionais, deve ter se chocado com alguns conceitos caros aos companheiros que comandaram os destinos do Brasil desde janeiro de 2003 até o dia 12 de maio de 2016, quando eles foram desalojados do poder executivo e de outros órgãos estatais. No intervalo entre sua elaboração e nossos dias, o projeto de “livro branco” deve ter ficado dormindo em computadores do próprio Itamaraty e, mais precisamente, na gaveta de algum assessor dos preclaros promotores da “diplomacia ativa e altiva” – que, na verdade, deixou de sê-la há algum tempo – esperando, talvez, alguma correção nos seus termos, segundo os cânones da “novilíngua” companheira.
Com a assunção de um novo governo, o mais provável é que o livro se torne ainda mais diáfano, até desaparecer em alguma estante do arquivo morto. Os diplomatas profissionais, que devem ter tomado cuidado ao tentar compatibilizar sua visão isenta, basicamente técnica da agenda internacional do Brasil, com a Weltanschauung petista – marcada pelos preconceitos mais cultivados nestes anos de bolivarianismo caboclo –, podem não ter mais vontade de mostrar o produto confeccionado em meados de 2014 ao novo titular da chancelaria, que poderá pedir, ou não, um outro livro branco, ou simplesmente deixar de lado esses exercícios de divertissement intelectual.
Alguma “herança maldita” na política externa?
A despeito de sua pouca relevância no jogo político normal, existem diferenças naturais de visão no que se refere à agenda da política externa entre os partidos e os movimentos políticos que disputam espaços no cenário político-congressual de qualquer país. Em matéria de relações exteriores, o melhor a fazer é construir consensos em torno das melhores políticas para a interface externa do país do que ficar confrontando esta ou aquela questão, como se fossem propostas antagônicas, ou como se apenas uma servisse ao país e a outra fosse ser totalmente prejudicial. Diplomacia se faz pela criação de consensos, não pelo aprofundamento de divergências. O partido companheiro parece ter feito exatamente o inverso nos 13 anos em que esteve à frente dos destinos do Brasil.
Segundo seus próprios promotores e condutores, a política externa do Brasil, assim como sua diplomacia profissional, sofreu profundas inflexões ao longo desse período, mais exatamente desde antes da inauguração dos governos do PT, a partir de 2003, prolongados por três mandatos e meio. Com efeito, ainda em dezembro de 2002, os companheiros se mobilizaram para salvar Hugo Chávez, então enredado por uma greve da PDVSA, que ameaçava paralisar o país: o governo FHC consentiu em enviar um navio da Petrobras repleto de combustíveis, num típico papel de “fura-greves” que não se sabia existir naquela administração, em princípio comprometida com o princípio constitucional da não ingerência nos assuntos internos de outros países.
De modo geral, a “diplomacia ativa e altiva” dos companheiros – segundo o slogan cunhado pelo próprio (e principal) chanceler da era do Nunca Antes – contou com a aprovação inquestionada do amplo leque de militantes dos partidos de esquerda e do apoio crítico de larga fração da comunidade acadêmica, geralmente representada por universitários das Humanidades. Jornalistas experientes não deixaram, porém, de apontar o nítido caráter partidário dessa política externa, bem como a utilização do ferramental diplomático para a condução de determinadas iniciativas que se revelaram em contraste com tradições assentadas no Itamaraty, quando não em contradição com certo consenso nacional que tinha sido construído ao longo de décadas, no que se refere às grandes linhas de atuação da política exterior do Brasil.
Dois grandes temas sobrelevam sobre os demais no conjunto de posturas no plano externo a que o Brasil foi levado nos anos da diplomacia do PT: o alinhamento geral da política externa brasileira a teses nitidamente caracterizadas como pertencentes ao espectro partidário da esquerda latino-americana, com a perda consequente de sua credibilidade, e o isolamento comercial do Brasil num momento de aceleração dos processos de globalização e de consolidação de grandes cadeias produtivas em escala regional ou mundial. Já efetuei breve análise dessas duas heranças da diplomacia companheira em artigo de jornal – “Epitáfio do lulopetismo diplomático”, O Estado de S. Paulo (17/05/2016; link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,epitafio-do-lulopetismo-diplomatico,10000051687) – o que me permite, ainda que também de maneira sintética, passar diretamente à análise de alguns outros grandes temas da agenda internacional do Brasil que figuram na pauta do Itamaraty pós-lulopetismo.
Antes, contudo, convém desmantelar o próprio símbolo, e o maniqueísmo a ele implícito, usado pelos companheiros para tentar classificar a sua diplomacia como a única possível para um Brasil “soberano” e supostamente “não submisso a interesses hegemônicos”, o que já é indicativo de uma fraude conceitual. A chamada diplomacia “ativa e altiva” nada mais foi do que um slogan, como muitos outros criados durante esses anos. O slogan nada diz sobre o conteúdo específico da política externa, mas deixa entrever que esta se opunha a supostas potências hegemônicas que estariam interessadas em manter o Brasil periférico ou subordinado. Como outros fantasmas do partido neobolchevique, essa é uma visão ingênua do mundo, como se o Brasil pudesse ser submetido por qualquer outro país. Traduz também um infantilismo confrontacionista ou até certa insegurança psicológica quanto ao que deveria ser feito. Soberania não se defende com retórica barata, com proclamações altissonantes, mas com atos concretos, sem bravatas, promovendo políticas consistentes com os interesses do país, sem qualquer alinhamento com grupos ou outros países, em total independência.
A acusação de má-fé de que se pretende agora inverter a política externa do Brasil, tentando afastá-la da América Latina para alinhá-la com os Estados Unidos e a Europa, é ridícula, se não fosse torpe. É tão absurda que nem merece refutação, pois só expressa o desejo dos companheiros de justamente antagonizar, dividir, praticar o maniqueísmo habitual que os caracteriza. Tal visão de que existem dois modelos de política externa, e que só o da era Lula representava a soberania e a defesa do interesse nacional, é falsa e apenas expressa o profundo simplismo que polui a mente dos companheiros. Que isso seja proclamado por militantes, pode-se entender; quando são acadêmicos que afirmam isso, só podemos lamentar que estes sejam tão simplórios ou desonestos intelectualmente. A noção de uma “diplomacia Sul-Sul”, por exemplo, é tremendamente redutora, pois apenas mentes fechadas, olhos tapados por viseiras ideológicas, podem conceber que o essencial das relações exteriores do Brasil passe por essa dimensão geográfica exclusivamente. O Brasil sempre se desenvolveu abrindo-se a todos os quadrantes do globo, recebendo aportes humanos, de conhecimento, investimentos de todas as partes. Por que agora tentar reduzir essa riqueza a um novo determinismo geográfico? Por que o Brasil teria de reduzir o escopo de suas relações, restringir o amplo leque de relações? Vamos agora ao que interessa.
A política externa numa agenda nacional de desenvolvimento
A política externa tem, realisticamente, um papel secundário em face dos grandes problemas nacionais. A maior parte desses problemas são “made in Brazil”, e devem receber respostas e soluções puramente nacionais. O ambiente externo tem sido, na verdade, favorável ao crescimento dos países que souberam aproveitar os impulsos e as oportunidades externas para alavancar avanços internos. A política externa poderia ter um papel relevante na agenda nacional se o Brasil fosse mais aberto ao comércio internacional e bem mais receptivo aos investimentos estrangeiros e associações com os países mais avançados tecnologicamente, fatores relevantes para projetos nacionais de desenvolvimento. Uma comparação entre os países de mais alta renda per capita e seus respectivos coeficientes de abertura externa comprovam esta assertiva. Este deveria ser um argumento suficientemente convincente para justificar um processo de abertura comercial e de maior aproximação aos países líderes do desenvolvimento tecnológico e cultural no mundo. Uma política externa compatível com os interesses nacionais precisaria se concentrar numa agenda desse tipo, o resto sendo secundário, inclusive as alianças Sul-Sul, que só nos afastam desses objetivos prioritários.
Pode o Brasil encarar, internamente, a ampliação de facilidades no comércio exterior, com o desmantelamento de entraves administrativos e sistêmicos para uma elevação dos fluxos de exportações e de importações? Tal processo teria de ser paralelo e coincidente com um processo de diminuição da carga tributária sobre as empresas, insuportável sob qualquer critério que se examine. Paralelamente, seria iniciado um esforço de revisão completa das bases de funcionamento da união aduaneira do Mercosul, a começar pela alternativa entre: (a) unificação de suas regras de aplicação; ou (b) negociação de um protocolo adicional ao Protocolo de Ouro Preto (POP), introduzindo a possibilidade de negociação externa individual de novos acordos de liberalização, com preservação da cláusula de nação-mais-favorecida para dentro. Sob a segunda hipótese, o Brasil poderia negociar acordos com a UE, a Aliança do Pacífico e até com os EUA, prevendo redução de tarifas, abertura a comércio de serviços, defesa de propriedade intelectual e regras estáveis para investimentos, abertos aos demais membros do Mercosul, se estes assim o desejassem.
Não há muito o que o Brasil possa fazer no plano das negociações comerciais multilaterais, seja no âmbito da Rodada Doha (paralisada), seja no contexto da agenda de Bali ou qualquer outra. O que cabe, sim, é examinar os demais acordos plurilaterais existentes no sistema multilateral de comércio, verificar a compatibilidade com o processo (a ser conduzido) de reforma na política comercial nacional, e considerar a hipótese de aderir a esses outros instrumentos de abertura e facilitação. No plano plurilateral, caberia examinar os acordos bilaterais de livre comércio, ou simplesmente de preferências tarifárias, que o Brasil poderia começar a negociar com os mais relevantes parceiros do comércio internacional, que não são exatamente os do antigo G20 comercial, onde estão os maiores obstrutores de uma agenda aberta, e aos quais estivemos vinculados por simples decisão política e ideológica tomada em 2003.
Na vertente da política industrial, os governos petistas promoveram cinco ou seis, todas fracassadas, e se dedicaram a improvisações e puxadinhos, que criam uma selva de regulações diferenciadas entre setores, com regimes fiscais diferentes, inclusive desrespeitando o princípio da isonomia tributária que deveria pautar as ações do governo, além das regras de não discriminação do Gatt-OMC. A política industrial está intimamente relacionada à política comercial e, na sua vertente externa, deveria se dedicar a atrair o máximo possível de investimentos estrangeiros e incentivar associações com o que há de mais tecnologicamente avançado no mundo. A política Sul-Sul nunca pôde, inquestionavelmente, cumprir esse papel. Independentemente de o Brasil ser ou não membro da OCDE, caberia se associar ao Comitê de Indústria dessa organização e passar a examinar todos os protocolos, códigos e demais normas voluntárias estabelecidas naquele âmbito, de maneira a colocar a indústria brasileira num contexto de plena conformidade com os padrões internacionais nessa área.
Uma das primeiras tarefas internas seria retomar, reexaminar, eventualmente assinar ou renegociar todos os acordos bilaterais de proteção a investimentos, os APPIs, que foram sabotados pelos petistas antes mesmo de assumirem o governo em 2003. O Brasil descumpriu mais de uma dezena de acordos assinados com os mais importantes parceiros exportadores de capitais e de investimentos diretos. Deixou de oferecer um ambiente seguro e estável para esses investimentos, assim como deixa de oferecer um ambiente estável para os próprios empresários brasileiros do setor. Caberia trabalhar com a CNI e algumas federações estaduais mais ativas nessa área, com o objetivo de colocar o Brasil no mesmo patamar regulatório que os países mais avançados, deixando de lado o stalinismo industrial praticado pelo último governo petista.
Estas áreas, comercial e industrial, são as mais relevantes na interface entre uma agenda interna de desenvolvimento e uma agenda diplomática na área econômica. Existem outras, por certo, relativas à tecnologia, à propriedade intelectual (na qual os governos lulopetistas também promoveram inacreditáveis retrocessos conceituais e práticos), à cooperação científica e educacional – durante muito tempo toldada pela distorção ideológica da diplomacia Sul-Sul – e até no terreno das políticas de segurança e de capacitação bélica, igualmente marcadas pelo anti-imperialismo infantil dos companheiros e por suas alianças espúrias nesse terreno. Todas elas possuem algum impacto econômico relevante para um projeto nacional de desenvolvimento, mas cabe insistir em que o ambiente internacional é bastante favorável ao crescimento do Brasil, à condição que este empreenda reformas internas capazes de potencializar a sua inserção na economia global.
O problema do Mercosul
O Mercosul é o mais importante problema diplomático do Brasil, mas também econômico-comercial. Desde 2003, ele deixou de ser uma ferramenta para a inserção internacional do Brasil, tal como tinha sido concebido no início dos anos 1990, e se tornou um problema triplo: diplomático, econômico e de política comercial. Os desvios quanto aos objetivos do Tratado de Assunção (TA), detectados ainda na fase 1995-1999, foram ampliados depois da crise argentina e potencializados pelo curso errático das políticas adotadas pelas administrações Kirchner e Lula desde 2003. O tripé essencial para a continuidade do bloco – liberalização comercial para dentro, política comercial unificada para fora e coordenação de políticas macro e setoriais – foi totalmente desvirtuado a partir de então, em favor de uma politização indevida das instituições próprias ao bloco, seguindo-se uma verdadeira anarquia institucional.
No campo das negociações externas, ocorreu um grande desastre, ao se adotar uma postura defensiva baseada no mínimo denominador comum, que passou a ser o protecionismo argentino. A implosão ideológica da Alca e a crença ingênua num acordo com a União Europeia (UE) foram dois passos irrefletidos no caminho da insensatez. Nada avançou a partir de então, a não ser acordos ridículos na dimensão Sul-Sul, e um com Israel, apenas para compensação visual. Não estranha, assim, que vizinhos mais sensatos tenham procurado suas próprias soluções para comércio e investimentos, ao negociar acordos com os EUA, com a UE e com outros parceiros, e ao adotar seus próprios esquemas de liberalização real dos fluxos comerciais (Aliança do Pacífico), já pensando na grande integração produtiva que terá seu centro na bacia do Pacífico e até no Índico, reunindo todos os grandes atores do comércio internacional (dos EUA à Austrália e toda a Ásia Pacífico integrada na globalização). O Brasil e o Mercosul estão totalmente ausentes desse novo universo absolutamente central da atual e futura economia mundial.
Pior ainda foi a expansão indevida, totalmente política, do Mercosul em direção a vizinhos pouco propensos a adotar os mecanismos básicos da união aduaneira tal como definida em 1991 e supostamente implementada em 1995 pelo Protocolo de Ouro Preto. O ingresso da Venezuela, a suspensão ilegal do Paraguai, a abertura apressada e injustificada a parceiros incapazes de cumprir os requisitos básicos do TA (como Bolívia, Equador e, talvez, Suriname) não apenas não retificam o que foi feito de errado no Mercosul, como acrescentam novos problemas ao edifício instável do bloco.
Existem problemas no Mercosul, mas poucos derivam de mecanismos e instituições do próprio bloco, vários resultando de políticas, atitudes e comportamentos das administrações nacionais, com destaque para a Argentina, mas contando esta com a conivência, complacência e cumplicidade dos governos petistas. Os problemas se situam na zona de livre comércio – e aqui o diálogo único a ser travado é com a Argentina –, mas também na união aduaneira, o que envolve todos os parceiros, em especial a Argentina e o Paraguai. Nem se considera o problema da Venezuela, que deriva de seu próprio caos econômico: ela deveria ser, simplesmente, colocada em quarentena e isolada das negociações que precisam ser feitas com os sócios originais do bloco, para que se possa iniciar o processo de renegociação diplomática.
No plano do livre comércio, caberia fazer um mapeamento dos impedimentos práticos à sua total consecução e isolar esses setores numa espécie de “caixa amarela”, para então começar a discussão sobre seu enquadramento ou dispensa semipermanente. No campo da união aduaneira, caberia, igualmente, contabilizar e identificar os fluxos que são levados ao abrigo e fora da TEC, para um diagnóstico mais detalhado da situação. O mais importante, porém, seria um exercício de exame das políticas comerciais dos quatro membros – ao estilo da OMC, adaptado às configurações do bloco –, com vistas a ter um panorama real, e realista, sobre todas as políticas nacionais compatíveis e incompatíveis com os objetivos do bloco. Apenas a partir desse diagnóstico mais preciso se poderá partir para o terreno das prescrições de políticas, algumas simplesmente diplomáticas, mas a maior parte dependente de definições nas próprias políticas comerciais e industriais de todos os sócios. Em síntese, o Mercosul precisaria voltar a ser um componente da estratégia brasileira de inserção na economia mundial, tal como foi concebido originalmente.
O problema do Focem
Assim como o Mercosul é o mais importante problema diplomático do Brasil, o Fundo de Convergência Estrutural (Focem) do Mercosul é o mais importante problema político do bloco, pelo menos para o Brasil. Suas principais implicações não são nem de ordem econômico-comercial, ou de recursos orçamentários, mas basicamente de ordem política, e elas têm origem, como outros equívocos monumentais da gestão amadora dos companheiros na política externa, numa incompreensão flagrante das realidades do Mercosul ou as do próprio Brasil. Mais uma vez, a ideologia, junto com a incultura econômica, prevaleceu sobre a simples racionalidade instrumental, mas nem todos os pecados são devidos aos companheiros, ainda que tenham sido eles que tomaram a decisão de implantar esse monstro bizarro no corpo do Mercosul: contribuiu para isso a obsessão do ex-SG-MRE, Samuel Pinheiro Guimarães, em querer converter o Mercosul numa obra de benemerência em favor dos sócios menores, em lugar de simplesmente atender ao que estava escrito no Tratado de Assunção. O fato é que o Brasil é a terceira renda per capita do bloco, e acabou assumindo quase quatro quintos do esquema de financiamento amador que acabou sendo criado sem qualquer estudo técnico.
O Focem parte de dois equívocos, ambos monumentais, mas que jamais tinham sido cometidos pelo Itamaraty ou pelos dirigentes econômicos brasileiros, nos primeiros 12 anos do Mercosul: o de que os problemas da não integração acabada no bloco seriam devidos a supostas “assimetrias estruturais” entre os sócios e o de que essas assimetrias poderiam ser corrigidas por ações pontuais dos Estados membros. Havia uma demanda dos outros sócios do Mercosul, quanto à redução das “assimetrias” dentro do bloco, para que ele pudesse avançar, argumento que o governo FHC e a diplomacia brasileira nunca aceitaram como válido para a implementação de medidas “corretoras”, obviamente a cargo do sócio maior, o Brasil. Os argentinos, em especial, já vinham reclamando há muito tempo dessas assimetrias, primeiro de ordem cambial – mas quem tinha fixado o câmbio ao dólar foram eles, não o Brasil –, depois de natureza financeira – a existência de um banco generoso, como o BNDES, que eles não tinham, como se fosse culpa nossa a inexistência de mecanismos similares na economia vizinha –, e finalmente o simples fato de o Brasil sozinho ser muito grande, o que é um fato, mais exatamente 60% a 70% do peso bruto da economia, do comércio, dos recursos, da amplitude do mercado interno – que permitiria “economias de escala” às indústrias brasileiras, como se o mercado interno não estivesse aberto às empresas dos demais também, permitindo-lhes as mesmas economias de escala.
O governo dos companheiros, vendo o bloco através de lentes equivocadamente comunitárias – em especial no tocante aos programas de reconversão setorial e de redução das desigualdades regionais existentes entre os países membros da UE – considerou que caberia ao Brasil assumir o papel da Alemanha, apresentando-se, em 2004, como o provedor líquido de recursos num projeto de redução de “assimetrias estruturais” que supostamente estariam impedindo o Mercosul de se desenvolver de modo adequado. O Brasil propôs financiar o Focem, à razão de 70% dos montantes operacionais, que replica o que já está sendo feito, sem a expertise técnica, pelos organismos multilaterais e regionais de financiamento. O sistema é limitado – ainda que o Brasil tenha comprometido recursos bem mais amplos do que a sua parte de 70% nos muitos milhões oferecidos – e não reduzirá de modo significativo grandes assimetrias, que são de política econômica, não de natureza geográfica ou a dotação de fatores.
Essa incorporação acrítica de um modelo europeu, transpondo ao cenário do Mercosul, um modelo que se acredita similar (ou funcionalmente equivalente) ao do conceito europeu de “coesão social”, foi feita sem que se aferisse economicamente sua necessidade ou sem que os fundamentos técnicos dessa posição fossem devidamente assentados. A “diplomacia da generosidade” dos companheiros simplesmente dobrou-se aos “argumentos” dos demais sócios de que o bloco não poderia avançar na presença das “profundas assimetrias” que supostamente separavam os países membros. O Focem acabou duplicando o trabalho de entidades multilaterais de financiamento, com base numa seleção basicamente política dos projetos. Não existe qualquer evidência de que o Focem conseguirá atenuar as “assimetrias estruturais” – que são o resultado de condições existentes nos mercados de forma quase permanente ou de vetores ainda mais resistentes a ações governamentais de reduzido escopo transformador ou de impacto financeiro modesto – e pode, ao contrário, introduzir novas deformações nos sistemas de financiamento a projetos de desenvolvimento.
O Focem, portanto, é um erro, que foi cometido voluntariamente pelo Brasil dos companheiros. Como os demais países se aproveitam disso para colocar seus projetos pouco vendáveis ao BID, ao Bird, ou à CAF, é evidente que eles não vão querer se desfazer de tão generosa fonte de financiamento, além de pouco exigente, sem maior expertise técnica na análise de projetos ou sem uma rigorosa análise de custo-benefício.
A Unasul, teoricamente sucessora da Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana (sabotada pelos companheiros), deveria se ocupar de integração física, nas estruturas existentes ou em outras a serem propostas pelo Brasil, com o que se poderia encerrar mais um episódio de trapalhadas companheiras, com custos voluntariamente assumidos pelo Brasil. A rigor, se o Mercosul deixou de ser exclusivamente econômico e comercial, e também passou a ser político e social, cabe traduzir essa imensa revolução na prática e eliminar mais esse monstro metafísico que faz parte da herança maldita dos companheiros.
A integração regional na América do Sul
A América do Sul se encontra hoje mais fragmentada do que em qualquer época anterior, quando os poucos esquemas existentes de integração estavam restritos aos esquemas de comércio preferencial no âmbito da Aladi, ou se pretendiam mais profundos, como o Grupo Andino e o próprio Mercosul, alegadamente tendentes ao mercado comum. O Grupo Andino (1969) se enquadrava no sistema multilateral de comércio regido pelo Gatt, em seu artigo 24 (para os esquemas de livre comércio), ao passo que a própria Aladi (1980) e o Mercosul (1991) têm sua cobertura legal dada pela cláusula de habilitação, instituída no âmbito da Rodada Tóquio do Gatt (1979).
Não se pode dizer que a integração sul-americana tenha avançado ao longo dos anos; ao contrário, ela recuou, na prática, ainda que a retórica da integração tenha se disseminado em todos os países, com escassos resultados efetivos. Onde estão, por exemplo, os processos de desmantelamento de barreiras alfandegárias e de abertura econômica recíproca? A integração efetiva é inversamente proporcional à retórica da integração: se os países pagassem multas cada vez que se referissem indevidamente ao processo haveria, certamente, maior comedimento na sua reiteração vazia.
Com exceção da Aliança do Pacífico, que é integrada por um país da América do Norte, o México, e que conformou mecanismos automáticos de abertura recíproca, todos os demais países recuaram nos processos de abertura econômica e de liberalização comercial, inclusive o Brasil, que por sinal denunciou, poucos anos atrás, um acordo de livre comércio de automóveis com o México, pois os saldos bilaterais se tinham tornado negativos, num sinal preocupante de que acordos de liberalização comercial só podem ser justificados se eles se conformam ao velho padrão mercantilista.
Qualquer diagnóstico que indique que a integração na América do Sul avançou – simplesmente porque os discursos oficiais registram que se criou a Unasul, a Aliança do Pacífico, que o Mercosul incorporou, alegremente e sem pensar, todo e qualquer candidato que se apresentou, ou porque existem diversos organismos de coordenação regional (Calc, Celac e toda uma fauna de pretensos mecanismos de “integração”) – não reflete a realidade da região. E por que isso ocorreu? Porque a maior parte dos países empreende caminhos próprios em suas políticas econômicas sem qualquer atenção efetiva aos processos de integração, que de resto possuem baixa densidade política e econômica. Mesmo o grupo supostamente mais avançado em matéria de integração comercial – e praticamente apenas comercial –, a Aliança do Pacífico não pretende, de fato, realizar a integração entre eles: podem até eliminar completamente as barreiras tarifárias e não tarifárias, que o comércio recíproco permanecerá limitado e parcial. Eles não se uniram para fazer isso, e sim para dispor de uma plataforma de homogeneização de ofertas para se inserir na integração produtiva da bacia do Pacífico.
O Brasil, como maior economia da região, e a mais avançada, poderia ser o livre-cambista universal, ou seja, o país que se abre aos demais, sem exigir maiores contrapartidas. Com isso, ele estaria conformando um amplo espaço econômico integrado na região, oferecendo seu grande mercado aos vizinhos e amarrando investimentos estrangeiros, da região e fora dela, à sua própria economia.
A integração é feita, justamente, para estimular a competição e os ganhos de bem-estar. Se o Brasil deseja iniciar a construção de um espaço econômico integrado na América do Sul, ele deveria começar por um simples exemplo, abrindo-se aos demais. Apenas isso: ao abrir-se, ele deslancharia um processo de negociação aberto, com base em cláusulas NMF e suficientemente flexível para acomodar as sensibilidades setoriais dos demais países. Por ser o maior país, o Brasil não precisa ter, e não deve ter, qualquer “sensibilidade”. A rigor, com isso, o Itamaraty nem precisaria convocar qualquer conferência diplomática, dessas intermináveis, para constituir uma zona de livre comércio na região: ela se faria praticamente sozinha.
Relações com países mais avançados, não necessariamente todos da OCDE
Existem muitos desafios nas relações com os países desenvolvidos, quaisquer que sejam eles; mas as oportunidades são ainda maiores. Os companheiros passaram anos enfatizando a diplomacia Sul-Sul: os que escolhem usar tal viseira só podem fazê-lo por preconceito ideológico ou por discriminação política, ambas prejudiciais. Todo determinismo geográfico é, por natureza, contraproducente. Não se poderia esperar, por exemplo, obter o estado da arte em ciência e tecnologia quando se restringem as escolhas a determinados parceiros do globo, ainda que eles sejam “parceiros estratégicos”. Considerar que os países desenvolvidos só tenham interesse na “exploração” dos países menos desenvolvidos é de uma estupidez digna de um fundamentalista político, desses que ainda existem espalhados por aí, infelizmente dominantes em certos círculos acadêmicos e políticos.
A primeira estupidez é justamente a de dividir o mundo entre desenvolvidos e em desenvolvimento, como se duas únicas categorias mentais, dois universos puramente conceituais, fossem capazes de resumir e abranger toda a complexidade e multiplicidade das situações humanas e sociais, num planeta variado que exibe todos os tipos de avanços civilizatórios, um continuum histórico que vai de tribos primitivas a sociedades do conhecimento, baseadas em inteligência artificial. O capital humano nunca teve pátria, apenas os governos é que limitam a liberdade do capital humano. As grandes descobertas, as maiores invenções acabam beneficiando o conjunto da humanidade.
Mas, alguns espíritos tacanhos consideram que, em virtude do fato estabelecido de que a maior parte das invenções, descobertas e inovações ocorrem bem mais nos países já avançados, isso consagraria algum monopólio natural, uma tendência à concentração do conhecimento, e do seu desfrute, e que os países menos avançados só poderiam ser “explorados” pelos primeiros. Assim, passam a recomendar esquemas de cooperação no âmbito Sul-Sul, como se duas ignorâncias pudessem criar uma grande sabedoria. A Constituição brasileira já caiu nessa estupidez, ao consagrar no texto de 1988 a proibição de que universidades brasileiras contratassem docentes estrangeiros, boçalidade felizmente eliminada alguns anos depois. Mas, aparentemente continuamos a praticar outras discriminações, ao preferir fazer intercâmbios com alguns países, em lugar de se abrir a todos os demais, sem qualquer tipo de preconceito.
Não se pode dispor de uma fórmula mágica para impulsionar o processo de desenvolvimento brasileiro contando apenas com a cooperação internacional, seja ela com países avançados ou com “parceiros estratégicos” do Sul maravilha. Os desafios principais estão mesmo no próprio país, pois as evidências relativas aos ganhos de escala permitidos por uma educação de qualidade são tão notórias que não seria preciso insistir neste ponto. O Brasil precisa empreender uma revolução educacional, em todos os níveis. De onde sairão os ensinamentos adequados para esse empreendimento monumental? Ora, as respostas são tão evidentes que sequer me concedo o direito de expressar qualquer preferência geográfica. Se alguém aí pensou em Xangai, não na China, mas Xangai, como exemplo e modelo de uma educação de qualidade, tal como refletido nos exames do Pisa, estou inteiramente de acordo: façam como Xangai, que já é, para todos os efeitos práticos, mais avançada do que qualquer país desenvolvido em matéria de educação de qualidade. O resto é baboseira geográfica.
Xangai, atualmente, em matéria de performance educacional, é o mais perfeito exemplo da Finlândia educacional num país outrora atrasado educacionalmente, e que ainda permanece atrasado politicamente. Em todo caso, a China está, provavelmente, registrando mais patentes, sozinha, do que os outros quatro Brics conjuntamente. Talvez tenhamos de aprender algo com ela, o que será obviamente impossível. O Brasil não tem condições de imitar padrões educacionais finlandeses ou os de Xangai, como ele tampouco vai conseguir construir a boa escola republicana da hoje decadente França, mas que já foi exemplo de educação no mundo. Acho que se ele conseguir reproduzir a mediocridade da escola americana já terá sido um progresso. Esse é o grande símbolo que eu vejo da cooperação do Brasil com países desenvolvidos. Chegar perto da mediocridade educacional americana já terá sido um imenso progresso para o Brasil.
A extensa geografia do Itamaraty
A falta de medida sempre foi uma característica da diplomacia do “Nunca Antes”. Dominado pela obsessão de superar seu antecessor, e também pela ideia de conquistar para o Brasil uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, o demiurgo simplesmente ordenou ao seu chanceler que abrisse embaixadas em todos os países da América Latina e do Caribe e em quantos países fosse possível na África e na Ásia. Em consequência, de 2003 a 2009, dezenas de novas representações foram criadas nos lugares mais exóticos, acarretando enormes despesas e gerando ainda maior estresse para a política de pessoal do Itamaraty, ao ter de gerir uma rede desmesurada, com gastos inúteis – uma vez que o retorno é insignificante – e efeitos políticos mínimos.
O Brasil exibe hoje uma rede de representações no exterior superior à de vários países desenvolvidos, inclusive ex-potências coloniais. Sem qualquer estudo técnico que precedesse a tal tomada de decisão, simplesmente baseado na vontade pessoal do ex-chefe de Estado, o Itamaraty se dobrou a essas pretensões megalomaníacas e passou a abrir postos sem qualquer reciprocidade, apenas baseado numa vontade ingênua de mostrar presença. Impossível estimar o impacto financeiro – e o custo-oportunidade – dessas iniciativas, mas ele é provavelmente muito maior do que a simples soma nominal dos valores envolvidos, pois significa uma extensão indevida de um orçamento que conheceu um aumento no divisor sem necessariamente a ampliação do numerador. Essa rede desvia não só dinheiro escasso, mas a atenção dos funcionários diplomáticos e de vários outros servidores em funções administrativas, sem qualquer correspondência quanto aos fins. Existem embaixadas em países de população inferior à do Lago Sul de Brasília, bem como consulados criados apenas para acomodar conveniências familiares de amigos do chanceler da era do “Nunca Antes”.
Nunca se ofereceu uma rationale para essa extensão desmesurada do serviço exterior brasileiro na era Lula. Segundo uma contagem não definitiva, foram quase 50 novos postos (entre embaixadas e consulados). Aparentemente, o ex-presidente contava com algum aporte adicional de votos em favor do Brasil no processo de criação de eventuais cadeiras adicionais no Conselho de Segurança da ONU, como se uma decisão desse porte pudesse ser tomada apenas pelo número de votos na AGNU.
Olhando para a frente
A política externa precisa retornar aos padrões habituais de profissionalismo e de isenção na análise técnica dos problemas que sempre estiveram afetos ao Itamaraty. Ambas, a política e a instituição, foram bastante deformadas nos anos de lulopetismo diplomático, quando uma e outra foram submetidas e ficaram ao sabor das preferências e alucinações partidárias, quando não a serviço de outras causas que não o interesse nacional. O Itamaraty não terá qualquer problema em cumprir uma nova pauta na política externa, pois sempre foi muito disciplinado no cumprimento das diretrizes do chefe do executivo, mas ele necessita passar por reformas organizacionais, depois de mais de uma década de uma nefasta deformação em seus métodos de trabalho e de inversão vertical no processo decisório que sempre o caracterizou.
Brasília, 25 de maio de 2016.

Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, licenciado em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). Atua como professor de economia política no Programa de Pós-Graduação em direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional. Site: www.pralmeida.org; blog: http://diplomatizzando.blogspot.com

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