Desmonte da lei e tragédia anunciada – causas e impactos das inundações no sul do país
O verdadeiro valor do prejuízo só poderá ser avaliado quando as águas baixarem. As pontes de ontem não aguentam a vazão dos rios de hoje. O mesmo vale para barragens.
A chuva deu uma trégua no começo da semana, mas a enchente não. Na terça-feira (14) abriu um sol, mas o frio castiga os flagelados e a previsão é que volte a chover na quinta-feira. No fim de semana, caíram mais 200 milímetros de água na cidade. O Guaíba pode superar o pico de 5,35 metros atingido em 5 de maio e chegar a 5,50m. O recorde anterior era de 4,76m na enchente de 1941. A cota de inundação é 3m.
A Defesa Civil do Rio Grande do Sul alerta os moradores das zonas Norte e Sul da capital, da região metropolitana e das ilhas de Porto Alegre, dos municípios de Guaíba, Eldorado do Sul, Estrela e Lajeado, e dos vales dos rios Caí, Taquari e Jacuí que as águas estão subindo. Quem quiser sair de casa deve sair logo porque a situação vai piorar. Outra recomendação é não voltar aos lugares alagados até que a água baixe.
Aos moradores de Bento Gonçalves, o centro da indústria do vinho, e de Pinto Bandeira, a Defesa Civil alerta para o risco de rompimento da Represa de São Miguel, em Bento Gonçalves. Também há risco iminente de ruptura na Barragem Salto, em São Francisco de Paula. Há uma orientação expressa para que moradores de áreas de risco deixem esses locais e procurem abrigos públicos ou outros lugares seguros.
Na noite de domingo, a ponte entre Nova Petrópolis e Caxias do Sul sobre o Rio Caí foi fechada depois da queda de uma pilastra.
De 1º a 7 de maio, o Guaíba recebeu 14,2 trilhões de litros de água, quase a metade do volume do lago da Hidrelétrica de Itaipu, a segunda maior do mundo, que é de 29 trilhões.
Até as 9h de 14 de maio, estavam confirmadas 147 mortes e 125 pessoas estavam desaparecidas e 806 feridas. Foram resgatadas 76.483 pessoas e 11.002 animais. Dos 497 municípios gaúchos, 450 foram atingidos.
Ao todo, 2.124.203 pessoas foram afetadas, 538.743 desalojadas e 76.883 estão em abrigos. Num dos maiores, em Canoas, a terceira maior cidade do estado, com dois terços embaixo d’água, há 6 mil pessoas e 2,5 mil cachorros. Houve crimes sexuais nos abrigos. A polícia afirma que todos os suspeitos foram presos. Agora, abriram abrigos exclusivos para mulheres e crianças.
Num estado que nasceu quando tropeiros saíam de uma feira de gado em Sorocaba para laçar o boi no pasto nos Campos da Vacaria (no Rio Grande do Sul e no Uruguai, o gado chegou antes do colono), o gaúcho é uma espécie de centauro dos pampas. Quando a gurizada convida um amigo para uma visita, diz: “Passa na minha baia.” Baia é a casa do cavalo.
Assim, o resgate de um cavalo virou símbolo da pior catástrofe natural desta terra que foi o Continente de São Pedro ou a Capitania d’El-Rei (1737-60), Capitania do Rio Grande de São Pedro (1760-1807), a Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul (1807-21) e a Província de São Pedro do Rio Grande Sul (1821-89) até virar estado com a Proclamação da República. Caramelo resistiu durante dias em cima de um telhado. Agora, passa bem.
Domingo faltou água corrente no edifício onde estou. O zelador captou água da chuva para serviços pesados. O administrador do condomínio tentou comprar água de carro-pipa. Pediram R$ 800 por metro cúbico ou R$ 13 mil, o que o administrador considerou “um roubo” e não pagou.
A água mineral voltou aos supermercados, mas está racionada. No máximo, dois galões por compra. Das seis hidráulicas que abastecem a cidade, cinco estão funcionando. Falta a do antes aristocrático bairro dos Moinhos de Vento, que serve esta área. A expectativa é que a água volte amanhã. Mas tudo é meio incerto.
Tragédia anunciada
Esta é uma tragédia mais do que anunciada. O pesquisador Rualdo Menegat, professor titular do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e vice-presidente científico do Foro Latino-Americano de Ciências Ambientais, aponta cinco fatores que levaram a esta catástrofe:
- 1. A mudança do clima com o aquecimento global causa um aumento enorme da umidade na atmosfera. A cidade fica no paralelo 30º Sul, no encontro de duas massas de ar, uma fria que vem do Sul e uma quente que vem do Norte. Essa situação é agravada pelo fenômeno El Niño.
“Estamos há 11 meses com recordes de temperatura mensais”, observa o professor, que chama esses fenômenos climáticos extremos de “desnaturais” porque são resultado da ação do homem sobre a natureza, principalmente pela queima de combustíveis fósseis (carvão, gás e petróleo) e no Brasil também pelas grandes queimadas. Em 4 dias, caíram 400 a 500mm, a chuva prevista para todo o outono.
- 2. A destruição da natureza reduziu a capacidade de absorção do solo. “Se os serviços ecossistêmicos não funcionam, estou me referindo às florestas, aos banhados e aos rios, não dão conta, isso agrava a precipitação. No RS, nos últimos 20 anos, há uma mudança muito importante no uso do solo. As matas têm sido cortadas, os banhados têm sido secados e eliminados para um uso intensivo do solo para a produção de soja e outras monoculturas. Isto tudo então muda o ciclo das águas”, argumenta Menegat. Quando temos uma precipitação muito grande e o solo não tem capacidade de absorção, esse grande volume de água corre rapidamente para os rios. Não há mais banhados e florestas ribeirinhas.
- 3. Esses cursos d’água assoreados enchem rapidamente nas cabeceiras rios, que em muitos casos estão a 900, mil metros de altura. A água então desce do Planalto Meridional com a velocidade de um tobogã de água e alcança os baixios. Como os vales por onde a água desce são estreitos, o nível da água sobe até 14 metros com uma velocidade impressionante e se abre quando chega na planície, em cidades como Lajeado e inunda tudo o que tem pela frente. Em Porto Alegre, temos quatro rios desta natureza que afluem para o Lago Guaíba: Jacuí, Taquari, Sinos e Gravataí. Tudo isso na região metropolitana, onde vivem 4,9 milhões de pessoas. Como há uma tempestade também no mar, no porto do Rio Grande, por onde escoa a água da Lagoa dos Patos, uma laguna, a água não sai.
- 4. A infraestrutura social, a infraestrutura e a estrutura do Estado para enfrentar esses fenômenos têm sido sucateadas e desmontadas pelos últimos governos, inclusive a parte de inteligência, com o fim da Fundação de Economica e Estatística (FEE), da Fundação Zoobotânica (FZB), da Fundação de Ciência e Tecnologia (Cientec), da transformação do Departamento de Portos, Rios e Canais (Deprec) em superintendência e do esvaziamento da Fundação de Planejamento da Região Metropolitana (Metroplan). “Não há mais órgãos que pensem estratégias e desenvolvam políticas públicas”.
Isso acontece tanto no governo do estado como na Prefeitura de Porto Alegre, explica o professor: “A Secretaria Municipal do Meio Ambiente foi simplesmente suprimida. O sistema de proteção, de diques da cidade de Porto Alegre, não funcionou. Houve ruptura de um dique onde está o maior cruzamento de rodovias, onde a cidade se conecta com o mundo. Não há estrutura para abrigos. A Defesa Civil do município ganhou neste ano um orçamento pífio de R$ 50 mil. Há uma política de privatização generalizada no momento em que o mundo enfrenta a mudança climática, o que exige uma capacidade social de resposta e o Estado tem um papel fundamental como galvanizador da inteligência social.”
- 5. Por fim, Menegat destaca a necessidade de educação ambiental: “Temos uma sociedade desinformada, que diante de uma catástrofe desta ordem não sabe o que fazer. Isto tudo faz com que não tenhamos capacidade social, inteligência social para enfrentar a situação dentro dos marcos civilizatórios”, critica o professor. “Isso implica educação ambiental e uma defesa civil organizada. As comunidades precisam estar ligadas com a defesa civil e saber o que fazer. Temos conhecimento acumulado. É função do Estado acumular essa inteligência.”
Desmonte da lei
O Código Ambiental do RS era um dos mais avançados do país. Foi aprovado no ano 2000 depois de nove anos de debate. Teve a influência do ex-ministro do Meio Ambiente José Lutzenberger, um dos maiores ecologistas do país.
Em 2019, o atual governador, Eduardo Leite (PSDB) eliminou ou alterou 480 pontos da legislação ambiental em apenas 75 dias sob o argumento de que precisava “colocar o estado para crescer” e adequar a lei estadual à legislação federal durante o governo Jair Bolsonaro (2017-21), cujo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, promoveu o maior desmonte da proteção ambiental da história.
Na campanha de 2018, Bolsonaro prometeu “tirar os fiscais do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) das costas dos fazendeiros.” Incentivou o desmatamento, a mineração em áreas de preservação e desistiu de realizar a Conferência do Clima da ONU de 2019, abrindo mão da liderança internacional do Brasil em questões ambientais.
A nova lei estadual gaúcha acabou com a proteção às áreas adjacentes às unidades de conservação; áreas reconhecidas pela Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) como reservas da biosfera; os bens tombados pelo Poder Público; as ilhas fluviais e lacustres, as fontes hidrominerais, as áreas de interesse ecológico, cultural, turístico e científico, os estuários, as lagunas, os banhados e a planície costeira; as áreas de formação vegetal defensivas à erosão de encostas ou de ambientes de grande circulação biológica.
Acabaram todos os mecanismos de apoio financeiro do Estado, até mesmo para as pesquisas e centros de pesquisas, manutenção de ecossistemas e racionalização do aproveitamento da água e energia.
O licenciamento ambiental virou na prática autolicenciamento. Basta ao empreendedor uma declaração para iniciar a instalação e operação deu seu projeto, sem necessidade de relatório de impacto ambiental.
No Código Florestal, foram revogados artigos de proteção da floresta e da flora gaúchas, entre eles a proibição da coleta, o comércio e o transporte de plantas ornamentais oriundas de florestas nativas; a proibição da coleta, a industrialização, o comércio e o transporte do xaxim; a proibição “da supressão parcial ou total das matas ciliares e das vegetações de preservação”, e o veto ao corte de árvores, comercialização e venda de florestas nativas.
Caíram os artigos que reconheciam as florestas nativas e demais formas de vegetação natural como bens de interesse comum, a proibição ou limitação do corte de espécies sob ameaça de extinção e a proibição de uso do fogo ou queimadas nas florestas e demais formas de vegetação natural.
Fake news
Em meio ao caos, há uma enxurrada de notícias falsas sobre a tragédia divulgadas pela extrema direita com quatro eixos fundamentais: alegar que os governos não estão trabalhando; alegar que o Estado não serve para nada e que o socorro está sendo feito por agentes privados; desmoralizar as Forças Armadas, que na sua opinião “traíram o povo e o Brasil” ao não apoiar a tentativa de golpe de Bolsonaro; e criar o caos econômico, dizendo por exemplo que vai faltar arroz porque o RS responde por 70% da produção nacional para provocar uma corrida aos supermercados e desabastecimento, e assim prejudicar o governo federal.
Reconstrução
O governador Eduardo Leite declarou que o RS vai precisar de pelo menos R$ 19 bilhões para se recuperar. O governo Lula anunciou medidas com impacto de R$ 51 bilhões. E há estimativas que vão até R$ 90 bilhões. Mas a verdade é que ninguém sabe.
O verdadeiro valor do prejuízo só poderá ser avaliado quando as águas baixarem. E a conclusão inevitável é que a natureza mudou. Com a crise climática, a natureza está mais selvagem, violenta e inclemente. A infraestrutura de ontem não suporta as exigências do mundo de hoje. As pontes de ontem não aguentam a vazão dos rios de hoje. O mesmo vale para barragens.
Quando as águas baixarem, virão as doenças infecciosas, a diarreia, problemas respiratórios agravados pelo inverno, a leptospirose, a hepatite A e a dengue. Devem vir em ondas, dependendo do período de incubação de vírus e bactérias.
Testemunha da tragédia, o repórter André Trigueiro, da Globo News, um dos melhores jornalistas de meio ambiente do país, manifestou esperança de que desta vez as autoridades se conscientizam da necessidade de adotar medidas de adaptação e mitigação do aquecimento global e de transição energética para uma economia com menos emissões de gases carbônicos.
Se nunca houve uma tragédia destas dimensões no Brasil, as enchentes e avalanches de janeiro de 2011 na Serra do Rio de Janeiro mataram mais de mil pessoas. O desastre de Brumadinho, que não foi causado pelo aquecimento global, mas foi uma tragédia ambiental, matou 272 pessoas. E a mentalidade não mudou. O Congresso e vários legislativos estaduais continuam empenhados na tarefa de eliminar restrições ambientais.
O desafio está lançado desde que a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92) aprovou no Rio de Janeiro a Convenção da ONU sobre Mudança Climática. Em 2009, na Conferência do Clima de Copenhague, os países ricos prometeram US$ 100 bilhões por ano a partir de 2020. Não chegaram nem perto.
A estimativa é que os países em desenvolvimento precisem de US$ 1 trilhão por ano. No ano passado, a Conferência de Dubai aprovou a criação de um fundo de perdas e danos, mas o aporte inicial foi de apenas US$ 664 milhões.
Nelson Franco Jobim é jornalista e professor universitário, mestre em relações internacionais pela London School of Economics (LSE), ex-editor internacional do Jornal da Globo, ex-correspondente do Jornal do Brasil e ex-editor internacional da TV Brasil.
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