01 julho 2009

G-20, uma Oportunidade de Mudança

O ano de 2009 começou com o mundo afundado na maior recessão do pós-guerra, depois de sete anos de prosperidade. Os maiores bancos do mundo capitalista haviam perdido várias dezenas de bilhões de dólares, alguns haviam quebrado e outros só se mantinham graças à ajuda oficial. O desastre confirmou a urgência de uma ampla reforma da ordem financeira internacional. O desenho de uma “nova arquitetura”, segundo a linguagem da moda, incluiria maior regulação dos mercados, um novo papel para velhas instituições, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), e uma recomposição dos mecanismos de poder. A economia global não poderia continuar sujeita às decisões do pequeno comitê executivo composto pelas autoridades do Grupo dos 7 – Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá, as maiores potências do mundo capitalista. Seria preciso ampliar o centro de poder. Isso seria conseguido, segundo os pregadores da reforma, com o fortalecimento do G-20, um foro com representantes das maiores economias desenvolvidas e emergentes.

 
Um papel mais importante seria atribuído a governantes de países como Brasil, China, Índia, México, Argentina e África do Sul. No jargão adotado, seria o começo de uma nova governança (outra palavra mágica do novo jargão). Além dos sete grandes capitalistas e dessa meia dúzia de emergentes, o grupo inclui Arábia Saudita, Austrália, Coreia do Sul, Indonésia, Rússia, Turquia e União Europeia.

Os novos atores, candidatos a uma participação relevante nas decisões de alcance global, testaram seu peso político na reunião de chefes de governo realizada em Londres no dia 2 de abril deste ano. O resultado parece ter sido positivo, embora as decisões mais importantes, como o reforço financeiro das instituições multilaterais, tenham dependido exclusivamente das negociações entre os líderes do G-7 e os dirigentes do FMI e do Banco Mundial (Bird). Mas o novo foro ganhou destaque na imprensa e reconhecimento na retórica diplomática. Se houvesse alguma dúvida quanto a esse reconhecimento, teria sido afastada na reunião de primavera do FMI, na terceira semana de abril.

Toda reunião de governadores do Fundo, tanto a de abril quanto a assembleia anual, em setembro ou outubro, é acompanhada de eventos paralelos. A tradição inclui um encontro de ministros de finanças e presidentes de bancos centrais (BCs) do G-7, realizado no Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. O evento mais importante dos encontros do FMI não é a reunião plenária, essencialmente simbólica, mas a discussão entre os ministros do Comitê Monetário e Financeiro Internacional, formado por 24 representantes das áreas desenvolvidas e em desenvolvimento. O comunicado emitido depois desse encontro resume as avaliações, decisões e recomendações políticas negociadas pelos ministros.

Na assembleia de outubro do ano passado, o primeiro parágrafo do comunicado conteve uma referência formal à reunião de ministros e um agradecimento por serviços prestados à comunidade internacional. A parte substantiva começou no parágrafo seguinte, com uma enumeração das decisões tomadas no dia anterior pelo G-7. O Comitê, segundo o documento, “endossou firmemente aqueles compromissos” a respeito da crise financeira global. A partir do parágrafo terceiro foram expostas as conclusões e recomendações dos 24 ministros.

Seis meses depois os membros do Comitê usaram outra referência. Na reunião de primavera deste ano, os autores do comunicado citaram as decisões e recomendações dos líderes do G-20, formuladas em Londres no começo de abril. Os ministros do G-7, depois da reunião no Tesouro, quase se limitaram, em sua manifestação pública, a repetir as ideias apresentadas na conferência de seus chefes no início do mês. Na conversa fechada, no entanto, os europeus cobraram dos americanos medidas mais fortes para restabelecer a ordem no sistema bancário. Nesse encontro, como no de Londres, as autoridades de Washington mostraram resistência à estatização de bancos como solução para a crise.

Na véspera da reunião do Comitê Monetário e Financeiro, o ministro Guido Mantega havia conversado com a imprensa no saguão do Fundo. Nessa ocasião, falando sobre a nova ordem supostamente consagrada em Londres, havia mencionado quase com desprezo a reforma do sistema de cotas e votos no FMI. Segundo ele, o Fundo passara a ser pautado pelo G-20. Em outras palavras, as grandes decisões haviam sido transferidas para um novo centro de poder. Ao diretor-gerente e aos demais burocratas da instituição competia simplesmente obedecer. A redistribuição de poder havia-se tornado menos dependente da reorganização das entidades multilaterais.

Em seu entusiasmo, o ministro brasileiro chegou, numa segunda entrevista, a enunciar regras para o funcionamento do G-20. Não se deveria, segundo ele, admitir a presença de autoridades de fora do grupo, como as espanholas. O ministro parece haver esquecido, naquele momento, a participação do Brasil, do México, da China e de outros emergentes, como convidados observadores, em reuniões do G-8 (G-7 mais a Rússia). Seus comentários foram postos no ar imediatamente pelas agências de notícias. A ministra de Finanças da Espanha atravessou a sala para pedir explicações a Mantega na reunião do Comitê Monetário e Financeiro. O ministro brasileiro teve de chamar a imprensa, de novo, para tentar desfazer o mal-estar.

Trapalhadas à parte, sobra uma questão substantiva: será o G-20, de fato, o novo comitê político da economia e das finanças mundiais, em condições de reduzir o G-7 e outros Gs a uma posição subalterna? Parece precipitado, neste momento, decidir se a exibição de entusiasmo do ministro brasileiro e de seu chefe, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é justificável ou exagerada. Não há dúvida quanto ao peso dos novos emergentes na economia global, nem quanto à maior resistência de vários deles à crise gerada nos chamados países centrais. Mas sua real influência nas decisões de alcance internacional ainda é uma questão aberta.

A multiplicação dos Gs

A valorização do G-20 como comitê de negociação e deliberação é muito recente. É um subproduto do estouro da bolha imobiliária criada nas economias mais avançadas. A bolha explodiu no meio de 2007 e sua destruição criou, em pouco tempo, ondas de instabilidade. Mas as consequências mais graves foram percebidas um ano depois, quando as primeiras operações de socorro aos bancos americanos se revelaram insuficientes para estabilizar os mercados. A partir daí o discurso a respeito de “soluções globais para uma crise global” ganhou volume e repercussão.

Antes de se agravar a crise das hipotecas imobiliárias, o centro indiscutível do poder financeiro internacional era o G-7. O comunicado emitido pelo Comitê Monetário e Financeiro do FMI, em outubro do ano passado, ainda refletiu essa concepção, embora já ocorresse, naquela semana, uma reunião de ministros do G-20, com a presença do presidente George W. Bush como convidado. A primeira reunião de chefes de governo seria celebrada no dia 15 de novembro, em Washington.

O G-20 havia sido criado em 1999, no fim de uma década marcada por grandes crises financeiras internacionais. Dele participavam ministros de Finanças e presidentes de bancos centrais de 19 países de grande peso econômico, além de representantes da União Europeia. Esse conjunto, com aproximadamente dois terços da população do mundo, gerava cerca de 90% do produto bruto global.

Dois outros grandes foros haviam sido criados na mesma década, o G-22, em 1998, e o G-33, no primeiro semestre de 1999. Ambos foram convocados por iniciativa do G-7 e nenhum deixou rastros importantes.

O G-20 dos ministros e presidentes de BCs conseguiu sobreviver e estabelecer uma rotina, sem ter jamais uma burocracia estável. Seus presidentes, com mandato de um ano, têm trabalhado com secretarias temporárias e também rotativas. O ministro da Fazenda do Brasil, Guido Mantega, exerceu a presidência em 2008. Seu sucessor é o ministro do Tesouro do Reino Unido.

O G-20 ministerial, no entanto, jamais teve a influência do G-7. Funcionou como foro de debates, sempre com a presença de funcionários do FMI e do Bird, mas nunca chegou a operar como um centro de decisões ou de orientações. Suas atividades quase nunca repercutiram na imprensa internacional, enquanto os encontros do G-7, em nível ministerial ou de cúpula, eram geralmente acompanhados com interesse em todo o mundo.

Governantes de economias emergentes, incluído o presidente brasileiro, reclamaram durante anos uma participação mais efetiva nas discussões e decisões de alcance global. Algumas autoridades do mundo rico incorporaram esse discurso, passando a defender, embora sem consequências práticas, a criação de um G-12 ou algum outro G maior que o velho G-7, ocasionalmente ampliado com a participação da Rússia.

Quando o governo russo assumiu a presidência rotativa do G-8, uma de suas primeiras providências foi anunciar uma alteração nos costumes: durante sua gestão, autoridades de países emergentes não seriam convidadas como observadoras. Os convites só continua¬ram ocorrendo porque os americanos insistiram. A atitude do ministro Mantega teve portanto um precedente naquela tentativa do oitavo membro do G-8.

O discurso de ampliação do núcleo de poder ganhou força com a crise. Segundo a retórica pós-bolha, o novo desastre capitalista marcava a falência do famigerado Consenso de Washington e o começo de uma nova era de ampliação de valorização do Estado. A revisão do papel do Estado teve diferentes sentidos para os envolvidos no debate. Para alguns, tratava-se apenas de cuidar mais seriamente da regulação dos mercados e de conter os comportamentos mais perigosos. Para outros, a função estatal deveria ser muito mais ampla, com maior intervencionismo.

Também voltou à ordem do dia a noção da política fiscal como instrumento de sustentação da demanda agregada. Essa ideia nunca havia sido inteiramente esquecida, mas isso não impediu alguns economistas e políticos mais entusiasmados, ou mais ingênuos, de alardear seu keynesianismo como se houvessem achado o Santo Graal. O presidente Lula explorou esse mote em vários discursos no Brasil e no exterior: havia chegado, segundo ele, a hora da política, depois de anos de culto irrestrito ao mercado. Em seus arroubos, ele chegou mais de uma vez a apontar o Proer, o programa brasileiro de recuperação dos bancos, adotado nos anos 1990, como exemplo para os Estados Unidos. Se dependesse de seu partido, no entanto, os criadores do Proer teriam sido presos e sua memória execrada até o fim dos tempos.

Promessas, promessas

Em novembro de 2008, na primeira reunião de cúpula do G-20, com o presidente George W. Bush como anfitrião, os governantes comprometeram-se a tomar medidas para reativar a economia, a apoiar a ação das instituições multilaterais, a elevar a disciplina do sistema financeiro internacional e a evitar medidas protecionistas nos doze meses seguintes. Além disso, tentariam retomar as negociações da Rodada Doha de liberalização comercial.

Nos meses seguintes, os vários governos continuaram liberando bilhões de dólares e de euros para impedir a quebra de bancos “sistemicamente importantes” (ou grandes demais para falir) e anunciando incentivos fiscais ao consumo e à produção. Não foram propriamente medidas coordenadas entre os vários países. Mesmo na União Europeia a maior parte das iniciativas foi tomada de forma independente, pelos diferentes governos, em alguns casos com risco de conflito de interesses entre os membros do bloco.

Estímulos fiscais adotados pelo governo francês foram condicionados à criação de empregos apenas na França. Foram acompanhados, portanto, de um veto a investimentos no exterior. A iniciativa desagradou principalmente às autoridades do Leste europeu. Economias egressas do socialismo dependem amplamente de investimentos originários dos países mais desenvolvidos da Europa, como Alemanha, França e Itália. Duramente afetados pela crise e forçados a buscar o auxílio do FMI, esses países foram tratados, de repente, como aquelas nações em desenvolvimento habitualmente acusadas de subtrair empregos do mundo rico. As juras de solidariedade formuladas na reunião de novembro foram rapidamente esquecidas, nesse caso como em vários outros.

Medidas protecionistas multiplicaram-se em pouco tempo, tanto no comércio quanto nas finanças. No começo de 2009, segundo levantamento do Banco Mundial, 17 membros do G-20 já haviam adotado restrições ao comércio. Nenhuma das novas barreiras era muito importante, mas todas confirmavam as previsões mais fáceis: com a recessão e o consequente encolhimento do mercado internacional, os governos tenderiam a adotar políticas mais defensivas. Provavelmente nem todas as novas limitações eram incompatíveis com as normas internacionais, mas todas apontavam na mesma direção.

As novas ações de restrição ao comércio evidenciaram, mais uma vez, a importância de retomar a Rodada Doha. A negociação, lançada no fim de 2001, no Catar, havia sido interrompida várias vezes, mas vários pontos importantes haviam sido acordados até o segundo semestre de 2008, quando ocorreu o novo impasse. Se pelo menos esses pontos estivessem já em vigor, a margem para manobras defensivas seria menor. Também haveria menor espaço para subvenções com potencial para afetar seriamente a operação dos mercados.

Em maio deste ano – depois, portanto, da segunda cúpula do G-20 – a reintrodução de subsídios a produtos lácteos, pelo governo americano, provocou reações dos governos brasileiro, argentino, uruguaio e de outros países emergentes. Essa medida, semelhante a uma já adotada pela União Europeia, não viola as normas da OMC, mas vai na direção contrária à dos pontos já acordados na Rodada Doha. Se a negociação global estivesse concluída, os países comprometidos com o acordo teriam de eliminar todos os subsídios à exportação até 2013. Um recuo como esse, verificado nas políticas americana e europeia, seria menos provável, segundo diplomatas envolvidos nas questões comerciais.

Todos pareciam ter consciência desse dado, quando ocorreu a primeira reunião de cúpula do G-20, mas, naquela altura, o compromisso de retomar as discussões não poderia ser mais que retórico. O presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama, só tomaria posse em janeiro e ainda havia dúvida sobre quem poderia assumir a negociação, papel desempenhado pelo chefe do escritório do Representante dos Estados Unidos para o Comércio Internacional (USTR).

Quando o novo negociador, Ron Kirk, se apresentou pela primeira vez em Genebra, na sede da OMC, sua mensagem foi pouco animadora. Ele não só cobrou mais concessões dos emergentes (um lance previsível), mas, além disso, propôs um novo esquema de trabalho, baseado na troca bilateral de ofertas. Isso equivalia a abandonar, de fato, discussões multilaterais, para converter a Rodada numa sequência de confrontos marcados pela desigualdade entre as partes. Houve reações contrárias, inicialmente, mas no fim de maio já se comentava a possibilidade de uma solução mista. Não se abandonaria o modelo original de fórmulas de redução de tarifas, mas haveria alguma inovação nas negociações de ofertas entre os vários parceiros.

No fim de maio, a Rodada continuava paralisada, embora as comissões negociadoras desenvolvessem algum trabalho técnico. O diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, no entanto, exibia otimismo. Num depoimento perante os colegas do Conselho Geral, falou sobre sua atuação no encontro de cúpula do G-20, em 2 de abril.

Ele pediu apoio, naquela conferência, ao trabalho da OMC de monitoramento das condições de comércio. Esse trabalho, com apresentação de relatórios periódicos, pode ser especialmente útil num período de crise, quando os governos sofrem maiores pressões protecionistas. Além disso, defendeu a conclusão da Rodada Doha, tomando-se como base os acordos parciais já alcançados, insistiu na mobilização de recursos para o financiamento do comércio e lembrou os compromissos de ajuda aos países pobres, para aumentar sua participação nos mercados. Os menos desenvolvidos não têm sequer condições técnicas de implementar várias das mudanças em discussão.

Na conferência de Londres, assim como na reunião de primavera do FMI, lembrou o diretor-geral da OMC, o retorno às negociações globais de comércio foi incluído na lista de recomendações. “Se há uma mensagem consistente que eu posso extrair de meus encontros nos últimos três meses”, disse Lamy ao Conselho Geral, “é que os governos estão olhando para o sistema de regras da OMC em busca de previsibilidade, transparência e estabilidade e como fonte de confiança para os operadores econômicos. Todos os envolvidos concordam em que a importância do comércio aberto continua central para a recuperação econômica do globo”. A volta às negociações havia sido, em 2 de abril, mais uma vez incluída, formalmente, entre os compromissos do G-20.

Em relação ao comércio, os membros do grupo assumiram, tanto em novembro quanto em abril, compromissos mais vistosos no papel do que promissores em termos práticos. Repetiram em Londres a promessa de se absterem de medidas protecionistas, mas não a cumpriram. A ideia de retomar as discussões da Rodada Doha a partir do ponto alcançado com o último pacote proposto pela OMC parecia, no fim de maio, muito menos provável do que alguns meses antes.

Além de todas as outras dificuldades, era ainda preciso levar em conta as promessas de campanha do presidente Barack Obama. Ele se mostrou receptivo tanto a grupos protecionistas quanto a organizações defensoras de cláusulas sociais e ambientais em qualquer novo acordo global de comércio. Na busca pela indicação do Partido Democrata, em disputa com a hoje secretária de Estado, Hillary Clinton, chegou a prometer a revisão do Acordo Norte-americano de Livre Comércio (Nafta).

Se Obama for fiel aos interesses protecionistas cortejados durante sua campanha, a nova etapa das negociações poderá complicar-se notavelmente e a promessa inicial, uma rodada para o desenvolvimento, será abandonada. Tenderão a prevalecer, nesse caso, as políticas tradicionais das economias mais desenvolvidas, com barreiras elevadas para certos tipos de produtos e volumosos subsídios ao agronegócio. Até agora, nenhuma ação do G-20 garantiu a escolha de um caminho menos perigoso.

Um compromisso mais efetivo com o comércio aberto facilitaria a superação da crise e evitaria algumas de suas consequências mais dolorosas. Os piores efeitos sociais da recessão ainda não ocorreram, advertiu Pascal Lamy em seu discurso de maio perante o Conselho Geral. Ele se referia, nesse momento, às projeções da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo o diretor-geral da organização, Juan Somavia, 50 milhões poderão juntar-se ao contingente mundial de desempregados em 2009 e 2010. Essa expectativa, acrescentou, foi reforçada pelas projeções de contração econômica divulgadas em abril pelo FMI. Naquele momento, de acordo com Somavia, já apareciam sinais de aumento do trabalho de crianças e da mortalidade infantil nas áreas pobres.

Em seu discurso, apresentado em 25 de abril, na reunião do Comitê Monetário e Financeiro do FMI, ele citou quatro vezes as decisões e recomendações do G-20. “Saúdo o importante processo alcançado em muitas frentes pela Cúpula do G-20 em Londres, nas questões do crescimento, do emprego, da estabilidade e do combate à crise”, disse o diretor-geral da OIT. Recordou com palavras otimistas o compromisso dos governantes, naquele encontro, de situar as necessidades e os empregos das famílias trabalhadoras de todos os países – desenvolvidos, emergentes e pobres – “no coração” do plano global de recuperação econômica.

Como dado mais concreto, mencionou a disposição de aplicar boa parte do novo dinheiro à disposição do FMI e do Bird no fortalecimento ou na criação de redes de proteção social nos países pobres. Mas a maior parte de seu discurso foi sobretudo um esforço para chamar a atenção para o risco de um novo desastre social e para lembrar os compromissos anunciados pelo G-20. Até agora, no entanto, um esforço global para sustentação do emprego continua sendo apenas uma bela promessa. A decisão do FMI de apoiar, em seus programas de ajuda, políticas fiscais menos severas e mais voltadas para a sustentação da demanda é a única novidade importante, em escala internacional, no campo da proteção do emprego.

A conferência de Londres serviu tanto para um balanço das ações adotadas a partir da reunião de Washington, em novembro, quanto para a definição dos passos seguintes. Pela primeira vez o presidente Barack Obama participou de um grande evento internacional. Ele representou com eficiência o papel do recém-chegado disposto a ouvir e a aprender.

Obama distribuiu simpatia, chamou o presidente Lula de “o cara” (the guy) e procurou mostrar-se cooperador, mas não se afastou das posições americanas. Não endossou nenhuma proposta mais ambiciosa de regulação internacional dos mercados, limitando-se a apoiar uma supervisão mais eficiente e um novo sistema de alerta. Também não se dispôs a radicalizar a intervenção nos bancos americanos para apressar a recuperação do sistema financeiro. No G-20, como no G-7, nada se impõe a uma grande potência, e as decisões continuam dependentes de um consenso às vezes difícil. Isso se confirmou, em Londres, no tratamento da questão dos paraísos fiscais.

Mas não só o governo americano manteve suas posições quanto ao sistema de controle dos mercados. A maior parte dos europeus conservou-se fiel à proposta de supervisão supranacional apresentada em abril. Em maio, a Comissão Europeia apresentou um projeto de supervisão e regulação do mercado financeiro do bloco. O projeto previa a criação de um Conselho Europeu de Risco Sistêmico, subordinado ao Banco Central Europeu, e de um grupo de três autoridades encarregadas de garantir a aplicação coerente das normas em todos os países-membros. O governo britânico, segundo se previa, poderia resistir à ideia da regulação supranacional.

“Queremos que a Europa seja a primeira a aplicar os compromissos do G-20 sobre supervisão transfronteiriça”, disse o presidente da Comissão Europeia, o português José Manuel Durão Barroso. Sua declaração, no entanto, não foi apenas um desafio esportivo aos Estados Unidos, um convite para uma disputa de velocidade. Foi uma demonstração de insistência num ponto não-acordado pelo G-20. Todos haviam admitido a supervisão internacional dos mercados e atribuído as missões de acompanhamento e de alerta a duas entidades multilaterais. Mas nem todos haviam concordado com um sistema internacional de regras e de controles. União Europeia e Estados Unidos continuavam separados, quanto a esses detalhes, e mesmo entre os europeus o acordo era duvidoso.

Logo depois de apresentada a proposta da Comissão Europeia, o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Timothy Geithner, anunciou em Washington um plano de reorganização dos controles do mercado financeiro americano. Nada além de um esquema doméstico de regulação: o G-20, como o G-7, não poderia forçar uma decisão diferente.

Algo novo, portanto, além da encenação, da retórica e da tentativa de partilhar mais amplamente a responsabilidade pela superação da crise? Apesar das dúvidas, o grupo dos emergentes pôde contabilizar, de imediato, pelo menos quatro benefícios, depois da conferência de Londres:

    1.    Ampliação de recursos do Fundo Monetário Internacional (FMI) de US$ 250 bilhões para US$ 750 bilhões, destinada principalmente a facilitar o socorro a países pobres e em desenvolvimento;

    2.    Mobilização de US$ 250 bilhões para o financiamento de operações comerciais;

    3.    Reafirmação do apoio à revisão de cotas e de votos no FMI;

    4.    Expansão do Fórum de Estabilidade Financeira, agora denominado Conselho (Board), para incluir todos os membros do G-20.

A reformulação da linha de crédito preventiva, para uso de países com boa reputação em matéria de política econômica, já havia sido resolvida no âmbito do FMI, mas os participantes da reunião de 2 de abril julgaram adequado manifestar seu apoio à decisão. A criação dessa linha de crédito de fácil acesso e praticamente sem condicionalidade é atribuível em boa parte a esforços do governo brasileiro.

O trabalho começou quando Antônio Palocci era ministro da Fazenda. Houve, de início, oposição de alguns governos do mundo rico. Depois, quando um acordo se tornou mais próximo, houve divergências quanto à formatação do novo mecanismo financeiro. Chegou-se, afinal, a uma solução satisfatória para as economias em desenvolvimento, com um esquema de financiamento facilmente acessível, sem condições importantes e sem controle de desempenho. O México foi logo beneficiado com um programa de US$ 40 bilhões. Polônia e Colômbia logo entraram na fila e suas pretensões foram satisfeitas em pouco tempo, enquanto outros países se apresentavam como candidatos.

O ressurgimento do FMI

Algumas das principais decisões do G-20 foram costuradas pelo diretor-gerente do Fundo, o francês Dominique Strauss-Kahn, num belo trabalho diplomático. O fortalecimento do Fundo Monetário e do Banco Mundial, depois de alguns anos de prestígio reduzido, pode ser considerado um ganho duradouro para os países em desenvolvimento, embora essa ideia possa parecer estranha para muita gente.

A recuperação do prestígio do FMI havia começado antes da crise, mas o agravamento da situação contribuiu para consolidá-la. O século xxi começou com o Fundo Monetário em busca de uma nova razão para existir. Seus clientes habituais, incluído o Brasil, pareciam haver criado juízo. Sem grandes programas de ajuda, seus negócios e sua receita de juros se reduziram. As operações de socorro estavam concentradas nas áreas mais pobres do mundo, por meio de programas sem retorno financeiro. A economia global prosperava. A maior parte dos governos parecia dar pouca importância a alguns sinais de perigo, em geral detectados por alguns economistas considerados agourentos, como Stephen Roach, e por técnicos do próprio Fundo. Mesmo a reforma da instituição, iniciada sob a direção do espanhol Rodrigo de Rato, pouco chamava a atenção da maioria das pessoas.

Os economistas do Fundo estiveram entre os primeiros a apontar os perigos do excesso de liquidez bancária e da valorização dos imóveis nos Estados Unidos. Suas opiniões foram publicadas, mas, assim como as de seus mais conhecidos colegas do setor privado, tiveram repercussão praticamente nula. A instituição foi acusada mais de uma vez de haver ignorado o perigo ou de haver silenciado em face das loucuras praticadas no sistema financeiro, mas injustamente. Em abril de 2006 o economista chefe do FMI, Raguran Rajan, chamou a atenção para o risco de turbulências financeiras nos Estados Unidos.

Duas discussões importantes, no entanto, avançaram já na fase de prosperidade. O tema da reforma de cotas e votos não era novo. Nos anos 1990 já se debatia a desproporção entre o tamanho de algumas economias emergentes e seu peso político no Fundo. A criação de uma linha de financiamento preventiva, para países com boas políticas econômicas, foi outro grande assunto levantado antes da crise. O Brasil teve participação importante nos dois debates, especialmente no segundo. O primeiro ministro da Fazenda do governo Lula, Antônio Palocci, teve papel relevante na defesa desta inovação.

A reforma do sistema de cotas e votos era um assunto maduro no segundo semestre de 2005. A primeira redistribuição oficial, a favor da China, do México, da Coreia do Sul e da Turquia, ocorreu na assembleia anual de 2006, em Cingapura. Os critérios ainda continuariam em discussão, mas o lance inicial já estava concretizado.

A recomendação do G-20 para o avanço na reforma política não impôs, portanto, uma nova tarefa ao FMI. Reforçou a importância de um trabalho já iniciado e o sentimento de urgência. A redistribuição deverá estar completa no próximo ano e talvez seja celebrada na reunião de primavera de 2010. A linha de financiamento preventivo, de acesso fácil e sem condicionalidade, também não foi criada por pressão do G-20. Já estava decidida em outubro de 2008. Também a adoção de critérios mais flexíveis para as linhas tradicionais era uma tendência já inscrita na política do diretor-gerente Dominique Strauss-Kahn.

Mas a redistribuição de cotas e votos, embora possa atribuir maior peso político a algumas economias emergentes, não modificará alguns dados fundamentais. União Europeia e Japão continuarão tendo mais poder que os emergentes e, além disso, os Estados Unidos manterão uma parcela de cotas e votos superior a 16%. O governo americano conservará, portanto, o poder de veto nas decisões mais importantes, aquelas dependentes de pelo menos 85% dos votos. Não há sinal, hoje, de alteração nesse quadro. Na prática, o G-20 poderá – para repetir uma palavra usada pelo ministro Guido Mantega – pautar o FMI de forma limitada, porque o poder, na instituição, mesmo com a reforma, continuará concentrado nos países do velho G-7.

Sem dúvida, a capacidade vocal dos líderes dos grandes emergentes aumentou nos últimos anos e a valorização do G-20 reflete esse fato. Mas também a influência desses governantes é diferenciada. Com quase US$ 2 trilhões de reservas e um grande estoque de títulos da dívida pública americana, os chineses são interlocutores muito especiais para os americanos e isso independe de sua participação no clube dos emergentes.

Depois, pautado ou não pelo G-20, o FMI continuará a ter um papel muito especial no sistema financeiro. Sem essa instituição, os países dependeriam diretamente do mercado – ou de outros países – para enfrentar seus desajustes. A negociação direta seria provavelmente muito mais dura que o entendimento com uma entidade multilateral. Apesar de tudo, o FMI, como emprestador de última instância, proporciona um espaço para o tratamento mais equilibrado dessas questões. Muitos críticos da instituição parecem desconhecer ou menosprezar esses detalhes. Esperariam do mercado, talvez, linhas de ajuda com taxas mais favoráveis e para financiar qualquer tipo de política?

Uma oportunidade

Enfim, é preciso dizer alguma coisa sobre conceitos como “países emergentes” e “paí¬ses em desenvolvimento”. Esses termos são usados, com frequência, como se designassem grupos de países com interesses comuns e governados de acordo com uma clara percepção dessa coincidência. O governo brasileiro vai além e age diplomaticamente como se a sigla BRIC, inventada pelo economista Jim O’Neill, do grupo Goldman Sachs, designasse um bloco de nações com objetivos claramente partilhados e estratégias comuns de ação internacional.

A experiência tem mostrado fatos muito diferentes dessas percepções. O G-20 comercial, criado em 2003 na OMC por iniciativa brasileira, funcionou durante algum tempo, na Rodada Doha, quando a prioridade dos países emergentes era cobrar concessões do mundo rico no comércio de produtos agrícolas. Deixou de funcionar – como era previsível – quando se tratou das obrigações aplicáveis aos membros do grupo.

Indianos, chineses e outros integrantes do “bloco” não tinham o mínimo interesse em participar de um comércio agrícola aberto e concorrencial. Isso ficou claro na reunião ministerial de Hong Kong, em 2005. A divergência de interesses entre Brasil, China e Índia, no comércio agrícola, foi uma das causas de impasse nas últimas etapas da negociação. Divergências semelhantes ocorreram quando foi preciso discutir as ofertas do Mercosul. Se nem entre os membros da união aduaneira há um comércio realmente aberto, como esperar desses países uma articulação eficiente na hora de apresentar concessões na rodada multilateral?

Seria muito otimismo esperar dos BRIC um comportamento mais articulado. As prioridades da China, da Rússia e da Índia não são, certamente, as mesmas do Brasil. Ao fixar cotas para os fornecedores de carnes, o governo russo tem dado prioridade aos Estados Unidos e à União Europeia. O Brasil tem ficado na categoria “outros”. Na prática, as exportações brasileiras acabam tendo um peso considerável, mas isso decorre de uma situação de fato e não de um tratamento comercial favorável: outros produtores não têm as mesmas condições para abastecer o mercado russo. Isso é apenas um exemplo da distância entre o conceito brasileiro de “aliança estratégica” e os fatos do dia-a-dia. Expressões com sentido coletivo, como “os emergentes”, podem ser perigosamente enganadoras.

Apesar de ressalvas tão numerosas, não se pode menosprezar a importância do G-20. Sua valorização implica o reconhecimento, pelos governos do mundo rico, da relevância econômica de um grupo de países classificados como “emergentes”. O destino da economia mundial, admite-se agora, não mais depende apenas dos chamados países centrais.

O antigo Terceiro Mundo tem peso suficiente, hoje, para alterar de forma significativa a média do crescimento global e para sustentar algum dinamismo no comércio. No primeiro quadrimestre de 2009, a China se tornou o principal mercado para os produtos exportados pelo Brasil. Poderá perder essa posição, quando Estados Unidos e União Europeia voltarem a crescer, mas continuará entre os principais destinos das exportações brasileiras.

Mais que uma alteração definitiva na configuração mundial de poder, a valorização do G-20 representa, neste momento, uma oportunidade política para o Brasil e para outros países. O reconhecimento da nova importância desses países não implica uma aceitação tranquila, por americanos, europeus e japoneses, de novos sócios no condomínio da economia global. Os novos participantes foram admitidos, até agora, não por causa de um reconhecimento de seus “direitos”, mas por causa da relevância de seus mercados e de sua produção. Essa mudança já havia sido caracterizada na OMC, quando os avanços da Rodada Doha passaram a depender de um grupo restrito de negociadores, incluídos os diplomatas brasileiros. Não se pode saber, por enquanto, como essa oportunidade será aproveitada pelos novos atores. Mas a consolidação das novas posições dependerá, certamente, da boa condução da política econômica interna e da competência na definição e na execução dos objetivos externos. Bravatas e ilusão ideológica nunca substituirão com êxito esses dois fatores.

É jornalista de O Estado de S. Paulo e professor de Filosofia Política da usp

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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