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Interesse Nacional
01 outubro 2014

Mal-Estar, Medo e Mortes entre Jovens das Favelas e Periferias

A vida dos jovens, nos dias de hoje, combina processos formativos, possibilidades de experimentação e sentimentos de insegurança. Novos padrões de sexualidade, entradas e saídas do sistema educacional e no mundo do trabalho produzem múltiplas trajetórias juvenis intermitentes e reversíveis.
Para compreender estas mudanças, que caracterizam a atual condição juvenil, é preciso compreender as mudanças do mundo globalizado que atingem particularmente os jovens. Por um lado, os jovens de hoje são seres digitais, cresceram em um ambiente de rápidas e grandes transformações tecnológicas. Por outro lado, em tempos de capitalismo flexível, vivem as inseguranças de um mercado de trabalho restritivo e mutante. Assim, compartilham um “medo de sobrar”, de não encontrar seu lugar na sociedade competitiva e volátil.
Tecnologias e inseguranças – em diferentes graus – fazem parte da vida de todos os 51,3 milhões de jovens brasileiros de 15 a 29 anos. Desta ótica, é possível falar em experiências geracionais comuns. Porém, ao mesmo tempo, é importante perceber diferenças, enfatizar urgências e situações de maior vulnerabilidade entre os jovens. Tais diferenças e desigualdades no interior de uma mesma geração têm levado os estudiosos a falar em juventudes, no plural. Mas, as situações vivenciadas por nossas juventudes são desiguais e diferenciadas. Nas cidades, vivem 84,8% deles e 15,2% no campo (Censo de 2010, IBGE). Os jovens do meio rural têm, de maneira geral, menor acesso à educação e a outras políticas públicas. Também as disparidades regionais se refletem na renda e na escolaridade dos jovens brasileiros.
Em termos de escolaridade, apenas 13% chegam ao nível superior, 59% chegam ao ensino médio e – entre estes – 39% concluem esta etapa. O ensino fundamental (completo e incompleto) é o nível atingido por 25% dos jovens. Ainda assim, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), a evolução da escolaridade média no segmento de jovens entre 15 anos e 29 anos no Brasil passou de sete anos para nove anos, entre 1999 e 2011.
Entretanto, mesmo tendo mais escolaridade que seus pais, os jovens de hoje têm mais dificuldades de conseguir um emprego e de se manter no trabalho. Entre os jovens, 53,5% estão trabalhando e 36%, estudando. A proporção daqueles que trabalham e estudam é de 22,8% (IBGE). As transformações recentes fazem com que existam jovens que se empregam em postos que exigem menos escolaridade do que eles conseguiram atingir. Assim como para outros são as “metas” de produtividade das empresas que produzem angústias e contribuem para uma constante circulação de jovens no mundo do trabalho.
A juventude brasileira espelha a sociedade brasileira. Com relação à cor, o Censo identificou a seguinte proporção de pretos, pardos e brancos: 7,9%, 45,9% e 44,7%, respectivamente. As dívidas históricas de nossa sociedade se revelam na juventude negra em termos de escolaridade, de condições de trabalho, de acesso a equipamentos de saúde, à cultura e, particularmente, na questão da violência.
Segundo o Mapa da Violência de 2013, os homicídios são a principal causa de morte no Brasil e atingem especialmente jovens negros do sexo masculino, moradores de periferia e áreas metropolitanas dos centros urbanos. Esta situação produz uma “discriminação por endereço”: ao dizer onde moram, os jovens das favelas e periferias brasileiras são estigmatizados e para eles se fecham portas de oportunidades.
Em outras palavras, a criminalização destes territórios acarreta a morte de jovens que se tornam vítimas de ações policiais de combate ao uso de drogas e ao tráfico e de disputas entre facções criminosas. Enfim, são os jovens os que mais sofrem as consequências do fracasso do atual sistema de controle de drogas e de legislação que realmente iniba a proliferação de armas de fogo.
Pesquisas mostram que uma parcela significativa dos jovens de hoje tem “medo de morrer” precocemente e de forma violenta. Evidencia-se, assim, um persistente “mal-estar social” no Brasil. Até quando o mapa da violência repetirá as mesmas correlações entre violência letal, cor, renda e território? Esta é a pergunta que motiva o presente artigo.
Mesmo sem a pretensão de apresentar conclusões definitivas, buscarei reunir informações que contribuam para a reflexão sobre ações públicas que possam interromper o ciclo vicioso das violências físicas e simbólicas que atingem jovens brasileiros.
1. Violência e direito à vida segura: atualizações na pauta das políticas públicas de juventudeA partir da segunda metade da década de 1990, o desemprego e a violência entre jovens se tornaram grandes preocupações sociais no Brasil e em distintas partes do mundo. Agências de cooperação internacional, ONGs e fundações empresariais se envolveram e passaram a trabalhar com o tema da juventude. Assim, nasceram os projetos sociais voltados para “jovens em situação de risco”.
Em boa parte, estes projetos foram levados adiante por meio de parcerias que envolviam instâncias governamentais e não governamentais. Neste âmbito, destacaram-se ações voltadas para preparação/inserção no mundo do trabalho, assim como ações de contenção e prevenção da violência.
Na mesma ocasião, multiplicaram-se os projetos culturais, os espaços institucionais estaduais e municipais de juventude (coordenadorias e secretarias); os primeiros Centros de Referência de Juventude; as primeiras Conferências Municipais, bem como os festivais na área cultural, com destaque para a valorização da cultura hip hop (rap, break, grafite).
Em nível federal, em 2005, foi criada a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), o Conselho Nacional da Juventude (Conjuve), o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem)1, ligados à Secretaria Geral da Presidência da República. Essas iniciativas do governo federal repercutiram em estados e municípios, onde foram sendo criados espaços institucionais e conselhos de juventude.
Neste cenário, por meio da ação de redes, grupos e movimentos, as demandas da juventude entraram na pauta pública. Entre estas demandas, a questão do combate à violência passou a ocupar um lugar de destaque.
Como resposta à demanda de vida segura, em 2007, Tarso Genro, então ministro da Justiça, lançou o Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci). Esse programa representou um marco nas políticas de segurança pública no Brasil, pois preconizava a prevenção no lugar da repressão. Voltado para os direitos humanos e para a cidadania, previa atividades que integravam os âmbitos federal, estadual e municipal e envolvia 14 ministérios.
Entre os principais eixos do Pronasci destacavam-se: a) ações estruturais, tais como a formação e a valorização dos profissionais de segurança púbica; a reestruturação do sistema penitenciário; o combate à corrupção policial e b) ações locais, em “territórios da paz”, que pressupõem o envolvimento da comunidade na prevenção da violência. Entre as inovações, estava o Projeto Para Jovens em Território Vulnerável (Protejo).
O Protejo é dirigido a jovens de 15 a 24 anos em situação de risco ou de vulnerabilidade familiar e social, egressos do sistema prisional ou cumprindo medidas socioeducativas, com vistas a desenvolver percursos formativos para promoção de cidadania, direitos humanos, qualificação profissional e inclusão social, para a prevenção da violência, da criminalidade e do envolvimento com drogas” (BRASIL/ME, 2008).
As formulações do Protejo incorporaram contribuições da sociedade civil, de Conselhos, movimentos de juventude e de especialistas na área de segurança. Seu desenho incorporou informações de pesquisas qualitativas, estatísticas disponíveis e aparato conceitual (território, transversalidade e integração) considerada “de ponta”.
Como funcionou? Em 2008, durante a I Conferência Nacional de Políticas Públicas de Juventude, os participantes recomendaram a consolidação e ampliação do Protejo. Avaliação realizada pela Fundação Getulio Vargas, em 2009, indicou a melhora da sensação de segurança entre jovens nas áreas pesquisadas.
No entanto, avaliação do Instituto de Estudos Econômicos (Inesc), em junho de 2012, já detectou um distanciamento do Pronasci das diretrizes propostas pela lei que o criou. Segundo esta avaliação, a pesar de o governo federal persistir na intenção de interlocução com estados e municípios, não houve redução significativa das taxas de homicídios entre jovens.
Dados do orçamento anual do Programa – publicado no Portal da Transparência – mostram que os recursos do Programa foram sendo (de 2010 a 2013) majoritariamente destinados à concessão de bolsa-formação aos policiais, o que significou menor execução orçamentária para as ações entre jovens. Outras avaliações disponíveis (Motta, 2013), ao explicar as dificuldades específicas do Protejo, apontam causas conhecidas no âmbito das políticas públicas, a saber: dificuldade de contratação de oficineiros; demora do pagamento da bolsa de R$ 100 para os jovens participantes; territórios controlados por facções criminosas; dificuldades com as licitações para compra de material. Ou seja, vida real.
Além disto, embora o Pronasci tenha sido pensado como uma política de Estado, que deveria ultrapassar trocas de gestores e tempos de governos, em 2013, dentro do Ministério da Justiça, o programa não ocupava mais um lugar de destaque. Ao contrário, falava-se (à boca pequena) em sua extinção. Este aspecto nos leva a refletir sobre a descontinuidade das políticas públicas resultantes das trocas de gestores e de governos. Evidenciam-se, assim, as contradições entre o ciclo eleitoral e o tempo de maturação das políticas públicas.
Voltaremos a este ponto mais adiante. Agora, é importante indagar como a questão da violência e a demanda da segurança têm sido encaminhadas por redes, coletivos e movimentos juvenis.
2. Repercussões das manifestações de 2013: ações entre jovens das favelas e periferias
Desde os anos de 1990, têm surgido entre jovens iniciativas de resistência cultural e política, com base territorial. Questionando a situação de segregação espacial, redes, grupos e movimentos juvenis afirmam o pertencimento local, denunciam injustiças e se tornam novos canais de participação.
Aqui, cabe destacar os grupos culturais (com destaque para o movimento hip hop, funk, capoeira, grafite, dança, saraus de literatura) e a importância do “midiativismo” (ou midialivrismo) que transforma a web em um canal de informação e denúncia. Também nos “rolezinhos” – ida programada aos shoppings em grupos – podemos ver uma forma de questionar a segregação espacial.
Vejamos agora como alguns destes grupos, redes e movimentos – auto-intitulados como “da periferia” – se expressaram em uma conjuntura recente: as manifestações de junho de 2013. Foi o Movimento Passe Livre (MPL) que fez as primeiras convocações. O transporte se apresentou como a primeira causa. O preço e a sofrível qualidade e distribuição desigual do transporte pelas áreas da cidade afetam o cotidiano de diferentes segmentos juvenis, que circulam pela cidade para estudar, trabalhar e se encontrar.
No proceso das manifestações, o transporte funcionou como um disparador de outras demandas e, em um movimento espiral, foi puxando a corrupção, a educação, a saúde e a segurança. Para tanto, muito contribuíram as redes de comunicação independentes. Transmissões por fluxo de mídia (streaming) – feitas a partir de dispositivos móveis para redes sociais – criaram uma nova relação entre a presença nas ruas e no ciberespaço. Interferências mútuas fizeram surgir diferentes níveis e formas de participação.
Talvez, as manifestações não tivessem o mesmo nível de adesão se – através destas mídias – não tivessem circulado impactantes imagens sobre a violência usada pela polícia. Neste cenário, a pergunta “onde está Amarildo?” fez o percurso das redes às ruas e vice-versa. Ao se denunciar o desaparecimento do pedreiro da Rocinha – favela do Rio de Janeiro –, criticava-se os métodos violentos da polícia em outras tantas periferias brasileiras. Assim, Amarildo se tornou um símbolo nacional de luta contra a violência policial.
Quais foram os jovens que participaram das manifestações? Nas reportagens de jornais e das mídias alternativas foram identificados: jovens do Movimento Passe Livre, estudantes universitários, alunos do ensino médio, jovens de redes de mídia independente, de pastorais católicas, membros da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), grupos feministas, coletivos culturais e jovens ligados ao Movimento Mobilidade Urbana. Além disto, houve um grande grupo de “estreantes”: jovens que participavam, pela primeira vez, atendendo a convocações virtuais. Também se agregavam às manifestações, no fim do expediente, jovens trabalhadores. E, o que nos interessa destacar aqui, jovens moradores de favelas e periferias.
Estratégias de resistência
No Rio de Janeiro, o dia 25 de junho ficou marcado pela presença de cerca de 2.500 pessoas, na maioria jovens, que saíram da Rocinha e do Vidigal (favelas cariocas) em passeata até a casa do governador Sérgio Cabral. Seus cartazes diziam: “Nós não precisamos de teleférico”; “queremos saneamento básico”, “precisamos de vagas em creches públicas”, “fora a Resolução 013”2. Na mesma ocasião, jovens da periferia de São Paulo também fizeram uma manifestação, e o Movimento Passe Livre apoiou as manifestações dos Sem Teto.
E isto não foi tudo. Naqueles dias de 2013, jovens das favelas e periferias também chegaram ao Palácio do Planalto. Como foi divulgado pela imprensa, durante aqueles dias, aconteceram várias reuniões com a presidente Dilma. Ministros, governadores e prefeitos foram chamados para definir ações para melhorar os serviços públicos.
Uma reunião foi com o Movimento Passe Livre. Em carta aberta, o MPL declarou que essa reunião “foi arrancada pela força das ruas, que avançou sobre bombas, balas e prisões”. Depois da reunião, o MPL declarou que embora reconhecesse uma “abertura para o diálogo”, o governo federal não havia apresentado qualquer “proposta concreta para mudar a realidade do transporte.” As observações do MPL deixavam claro que a mudança no “sistema de transporte coletivo” dependeria de gestões partilhadas entre os três níveis de governo.
Quatro dias depois, em 28 de junho de 2013, com a presença da secretária nacional da Juventude, Severine Macedo, e do presidente do Conselho Nacional da Juventude, Alexandre Melchior, Dilma recebeu 24 jovens. Na lista dos participantes daquela reunião, vale à pena prestar atenção na diversidade das representações juvenis.
Os jovens ali presentes representavam: alguns partidos, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a União Nacional dos Estudantes (UNE), a União Brasileira da Juventude (Ubes), o Movimento Sem Terra (MST), a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), juventudes religiosas (Rede Fale e Pastoral da Juventude), a Marcha Mundial de Mulheres, a Marcha das Vadias do Distrito Federal e a Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen). Também estiveram presentes outros coletivos, tais como: Levante Popular da Juventude, Fora do Eixo, Movimentos Enraizados, Fórum das Juventudes de Belo Horizonte e Agência Solano Trindade.
Muitos destes jovens tinham participado das manifestações e, na ocasião, fizeram intervenções sobre suas pautas e reivindicações. Entre todas intervenções, uma se destacou. Sobre o assunto, Aurea Carolina de Freitas, militante do Fórum das Juventudes de Belo Horizonte, publicou, em seu blog, um reflexivo relato do qual destaco o trecho abaixo:
“Eu não falei, mas me senti bem representada na voz de Thiago (militante de cultura periférica de Capão Redondo, São Paulo), que trouxe sua própria narrativa e me emocionou ao lembrar a luta da juventude negra e pobre para escapar das estatísticas macabras do genocídio. Ele mencionou as estratégias de resistência nas comunidades, os saraus como tecnologias sociais que estão se espalhando pelo país, a urgência da desmilitarização das polícias, a centralidade da cultura. Thiago falou com o coração e foi o único a arrancar aplausos”. (Aurea Carolina)
O relato de Aurea Carolina recuperou a combinação de duas demandas: “desmilitarização das polícias” e “centralidade da cultura”. Ao mesmo tempo, destacou o sarau – parte de uma “tecnologia social” – como “estratégias de resistência”. Segundo Aurea Carolina, Thiago foi o único a arrancar aplausos, porque falou com o coração.
No mesmo sentido, ainda lembrando as manifestações, gostaria de comentar uma entrevista publicada na Revista Caros Amigos, de novembro de 2013. O jovem entrevistado participou das manifestações e foi identificado como Beto pela repórter Lena Azevedo. Beto diz que se considera um “midialivrista de favela”. Contou que trabalha para “descontruir a imagem que a grande imprensa passa das comunidades”. Durante as manifestações do mês de junho de 2013, após o trabalho, Beto ia aos acampamentos em frente à Assembleia Legislativa e à Câmara Municipal (Ocupa Alerj; Ocupa Câmara) e fazia parte daqueles que gritavam “sem violência”.
Ações contra os símbolos do capitalismo
Porém, segundo relatou Beto, a repressão policial contra os professores no dia 15 de outubro motivou sua adesão ao black bloc. Diz ele: “eu não sei quem são os outros. Eu sei o que eu sou e o que o black bloc significa para mim. A compreensão dessa tática é que me fez, como morador da favela, participar de um movimento. Participar desta tática é poder extravasar o sentimento de aprisionamento, de segregação que o Estado causa, mas também, como resistência para mostrar para quem está do outro lado – os oligopólios, os detentores do capital – que há uma população que está consciente”.
Este depoimento reafirma a ideia de que o black bloc – tática de luta e coletivo de ação direta – pode ser constituído por agrupamentos livremente organizados por grupos de afinidades, mas também por indivíduos independentes que, via de regra, se dispersam ao fim das manifestações. Como se sabe, estas ações contra os “símbolos do capitalismo” têm ocorrido em diferentes lugares do mundo e já possuem inúmeras versões locais. Não se sabe ainda quantas serão as diferentes versões e histórias de adesão no Brasil. Mas, do ponto de vista deste “midialivrista” da favela, esta “tática” performática serviu para “extravasar o sentimento de aprisionamento, de segregação que o Estado causa.”
Na mesma perspectiva, pouco tempo depois, uma performance teatral foi registrada pelo jornal O Globo nos seguintes termos: “Em frente à Assembleia Legislativa, no centro do Rio de Janeiro, pintados de vermelho, simbolizando o sangue de pessoas mortas, jovens atores deitaram-se no chão, sendo cobertos por lençóis brancos. No ato, pneus simbolizavam o “forno de micro-ondas”, usado por traficantes para queimar suas vítimas” ( O Globo, 14.8.2013).
Passados vários meses das chamadas Jornadas de Junho, em 10 de abril de 2014, houve outra reunião da presidente Dilma com jovens de diferentes redes, coletivos e movimentos. Mais uma vez, recorro à blogueira Aurea Carolina, para destacar um trecho de seu relato:
“Entre as mais de 30 pessoas da sociedade civil que participaram do encontro, destacou-se o jovem MC Chaveirinho, cantor de funk e organizador de rolezinhos em São Paulo. Ele falou sobre o histórico dos rolezinhos, que existem desde 2007, o crescimento da adesão de rolezeiros com a multiplicação das redes sociais, os ataques e agressões que sofreram por parte da mídia convencional e a falta de políticas culturais e de lazer na periferia. Explicou que a opção pelos shoppings foi, sobretudo, por uma questão de segurança e que os jovens têm medo de ficar nas suas quebradas. Sem alternativas seguras nos lugares onde moram, preferem se encontrar nos shoppings para tirar fotos, comer e beber, curtir um funk, namorar e se divertir. Enfatizou que as políticas para a juventude não chegam dentro da favela e que ações para jovens devem ser feitas com os próprios jovens, respeitando as suas linguagens: sem essa de “caros companheiros, caras companheiras”, porque o jovem desconfia desse papo de político. A presidenta riu. MC Chaveirinho fechou sua intervenção defendendo a valorização do funk e relembrando a morte do MC Daleste, assassinado em julho do ano passado”.
São vários os aspectos levantados por MC Chaveirinho que mereceriam comentários. Por um lado, a expressão de sentimentos: a falta de segurança, medo e morte. Por outro lado, constatações e demandas: falta de políticas culturais e de lazer na periferia; políticas de juventude que não chegam dentro da favela; as redes sociais fizeram crescer os rolezeiros e as ações deveriam ser feitas pelos próprios jovens, respeitando suas linguagens.
Além do relato de Aurea Carolina, ouvi também vários outros jovens presentes na reunião que destacaram a presença de MC Chaveirinho. Ou seja, mais uma vez,falou-se sobre violências físicas e simbólicas que atingem jovens das favelas e periferias e na urgência de políticas públicas adequadas.
3. Políticas Públicas: como quebrar o círculo vicioso da violência física e simbólica que atinge os jovens?
Com efeito, a geografia da violência revela desigualdades sociais, disparidades regionais e segregações urbanas. Estes problemas estão ligados a demandas de distribuição de renda, de acesso à educação de qualidade, de oportunidades de trabalho, de acesso a equipamentos urbanos no local de moradia dos jovens, assim como de acesso a aparato policial constante e bem preparado.
Pesquisas têm registrado a experiência negativa dos jovens brasileiros com a polícia. Os jovens sempre têm histórias (pessoais ou de amigos) para contar sobre a polícia que “achaca” os jovens de classe média, exigindo propinas, bem como humilha e agride fisicamente jovens moradores de áreas pobres e criminalizadas.
Ao mesmo tempo, as situações de violência vivenciadas pelos jovens geram também demandas de reconhecimento da diversidade. Isto por que tais situações são retroalimentadas por preconceitos e discriminações relativas à cor da pele, à orientação sexual, à aparência, ao local de moradia e ao simples fato de ser jovem.
Diferentes experiências de discriminação podem se somar na vida de um mesmo jovem:ser estudante, ser trabalhador, ser jovem, ser negro, ser favelado, ser homossexual, ser mulher, ser da área rural. Estas identidades são acionadas de acordo com as disputas em questão.
Por fim, a participação juvenil é considerada fundamental tanto para um mapeamento de medos e inseguranças identificados por jovens desta geração, quanto na elaboração de projetos e ações que possam reverter situações de violência. A participação de jovens é importante tanto para qualificar as informações e desenhar programas e ações, quanto para promover o controle social de tais políticas.
Nos dias de hoje, uma parcela de gestores públicos e de grupos de jovens ainda compartilham a compreensão de que o combate à violência engloba diferentes demandas (distributivas, de reconhecimento e de participação). Na prática, a questão está longe de ser equacionada em termos de políticas públicas.
Existem várias iniciativas estaduais em curso que esbarram nos mesmos problemas de “desvios de conduta” da tropa e no controle territorial do tráfico e das milícias. Em nível nacional, há uma aposta no Plano Juventude Viva, iniciativa da Secretaria de Políticas da Igualdade Racial (SEPPIR) e da Secretaria Nacional de Juventude (SNJ). Esse Plano, lançado em 2012, prioriza 142 municípios com maiores índices de homicídios de jovens e se propõe a criar oportunidades de inclusão e autonomia por meio da oferta de serviços públicos, promovendo os direitos da juventude, em especial da juventude negra.
Trata-se de um plano que pressupõe a parceria dos poderes públicos com a sociedade civil e que busca atuar – simultaneamente –, na opinião pública, nos territórios, na vida dos jovens e nas instituições. Suas ações estão estruturadas nesses quatro eixos, a saber: 1desconstrução da cultura da violência (articular atores e sensibilizar a opinião pública); 2transformação de territórios (ampliação de espaços de convivência; oferta de equipamentos; serviços públicos e atividades de cultura, esporte e lazer); 3inclusão, emancipação e garantia de direitos (levar para o território programas e ações que contribuam para que os jovens sejam reconhecidos e construam suas trajetórias de vida); 4aperfeiçoamento institucional (ações para enfrentar o racismo nas escolas, no sistema de saúde, na polícia, no sistema previdenciário e de justiça).
Não há dúvidas de que o Plano Juventude Viva incorporou as experiências e as demandas que têm sido levadas ao espaço público. Porém, se o acerto na formulação e no desenho já pode ser considerado uma conquista, isto, por si, não garante sua eficácia. Para os governos, ainda falta muito para criar vasos comunicantes entre as “caixinhas” das políticas setoriais que podem interferir positivamente nas trajetórias juvenis, bem como ainda falta muito para lograr uma real cooperação entre os três níveis de governo. Por outro lado, para o poder público e para a sociedade ainda falta a convicção de que somente reformas bem mais profundas podem promover a cidadania nos territorios onde vive a autointitulada “juventude periférica”.
Para tanto, algumas urgências se destacam. Para quebrar a violenta conjugação entre territórios /armas/drogas é urgente (re) questionar as legislações e mentalidades vigentes. No curso da discussão da reforma – e da mobilidade – urbana, deve haver lugar para estabelecer novas restrições sobre a circulação de armas de fogo e para avançar em direção a uma nova política de drogas que retire o consumo da esfera criminal e faça prevalecer uma abordagem de saúde pública e de redução de danos. Além disto, certamente, sem uma ampla e profunda reforma do sistema policial brasileiro, persistirá este “mal-estar” de viver em um país no qual a morte cotidiana de jovens negros não causa espanto e comoção. Só não enxerga quem não quer ver.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Princípios do Protejo. Proteção de jovens em território vulnerável, Folheto, 2008. BRASIL, Juventude Viva. Plano Juventude Viva: prevenção à violência contra a juventude negra. Folheto. www.juventude.gov.br/juventudeviva; www.sepir.gov.br, 2012.
Fundação Getulio Vargas. Pesquisa de percepção da população sobre o Pronasci, cidadania, seguran-
ça e suas instituições nos Territórios da Paz. Rio de Janeiro, 2009.
FREITAS, Aurea Carolina. Bastidores de uma audiência com a presidenta, junho de 2013, Blog da autora.
FREITAS, Aurea Carolina. Juventude negra pauta governo e sociedade. 10 de abril de 2014. Publicado no Blog da autora.
Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) Segurança Pública e Cidadania: uma analise orçamentária do Pronasci. Brasilia, 2010.
Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) Pronasci: um abando sem revisão, Brasília, 2012. MOTTA, Glaucia. Proposições e percepções a parir do Projeto PROTEJO no Município do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, PPGEdu, UNIRIO, Rio de Janeiro, 2014
WAISELFISZ, Julio J. Mapa da Violência 2013: homicídios e juventude no Brasil. Rio de Janeiro:
Flacso, 2013.

Regina Novaes é doutora em Antropologia pela USP, pesquisadora do CNPq e professora visitante do Pro- grama de Educação e Políticas Públicas da UNIRIO.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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