Onde Está o Fio Terra?
Em 1o de janeiro de 2003, o ministro das Relações Exteriores Celso Amorim emitiu um claro sinal de como a política externa brasileira seria conduzida no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, empossado horas antes no Palácio do Planalto. No auditório Wladimir Murtinho, no Itamaraty, Amorim ouviu Celso Lafer, que lhe passava a chancela da República com um discurso pausado e elogioso, mas tomou a palavra com uma retórica incomum em atos cerimoniosos da casa. Amorim iniciou sua primeira declaração como ministro de Estado com, “antes de mais nada”, a nomeação do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães para o posto de secretário-geral das Relações Exteriores. A plateia emitiu um longo suspiro, como se lhe faltasse o ar.
O simbolismo desse ato repercutiu durante os sete anos e meio da política externa do governo Lula, que atravessa neste momento o seu ocaso e o inevitável balanço de seus feitos. A parceria Amorim-Samuel no comando do Itamaraty arrematou a equipe que desenhou e conduziu as relações internacionais do Brasil no período, composta pelo assessor de Assuntos Internacionais do Planalto, Marco Aurélio Garcia, e pela figura carismática, intuitiva e messiânica do presidente Lula. Naquele dia, tanto no auditório do Itamaraty quanto entre observadores da política externa distantes de Brasília, não houve dúvidas de que o caminho a ser trilhado envolveria a retomada de princípios superados no final da década de 1970.
O nacionalismo destemperado, a priorização das relações com o mundo em desenvolvimento, o antiamericanismo e a cordialidade com regimes autoritários, sobretudo os de suposta esquerda, marcariam o ritmo das ações do Itamaraty dali por diante. O que não se esperava era que, no curso das ações, esse quarteto fosse tão longe em suas estratégias e se afastasse tanto da busca de um consenso em torno do interesse nacional.
Se as eleições presidenciais são tradicionalmente períodos de reflexão sobre os anos da administração que termina, desta vez não poderia passar incólume a uma avaliação dos acertos e erros, dos descompassos e avanços da gestão do presidente Lula em relação à defesa do interesse nacional nas relações exteriores. Desde 1o de janeiro de 2003, entretanto, a expressão “interesse nacional” escudou cálculos estratégicos controversos, assim como a “não-ingerência em assuntos internos” permitiu a omissão e a tolerância para com a destruição de valores e instituições democráticas e o desrespeito aos direitos humanos nos países vizinhos.
Recentemente, o “interesse nacional” foi a justificativa para a aproximação do Brasil com o Irã, que resultou em largos custos para a relação entre Brasília e Washington. No passado, foi o argumento para os laços mais intensos entre o Brasil e a Líbia, para a operação de aborto da negociação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), para a adoção de uma política brasileira de generosidade com os vizinhos da América do Sul, para a estratégia de criação de várias correntes de países emergentes, lideradas pelo Brasil, em clara oposição ao Norte desenvolvido.
O que jamais aconteceu ao longo desses sete anos e meio foi a busca pelo consenso em torno do que deveria e poderia ter sido o “interesse nacional”. O interesse nacional não foi colhido, medido, escutado, avaliado, depurado a partir de consultas a setores representativos da sociedade brasileira, fato que tornava muitas vezes patético o uso dessa justificativa pelos protagonistas da política exterior. A definição restringiu-se ao quarteto Lula-Garcia-Amorim-Samuel e, em raras ocasiões, foi tangenciada pelos ex-ministros José Dirceu, da Casa Civil, e Antônio Palocci, da Fazenda, e pelo atual ministro da Defesa, Nelson Jobim. Ao contrário do que seria razoável, o presidente Lula e o chanceler Amorim sistematicamente reagiram às críticas à política externa – legítimas e bem-vindas em uma sociedade democrática – como se tratassem de ataques pessoais, sem dar a chance a uma reflexão sobre o fundamento delas.
Em seu último período no Itamaraty, o ex-chanceler Celso Lafer costumava explicar pacientemente à imprensa que cada negociação do Brasil no exterior correspondia a uma negociação doméstica. Essa premissa tornou-
-se estéril desde 2003. Em uma simplificação desse raciocínio, deixo aberta ao leitor a pergunta: a qual interesse genuinamente nacional correspondeu o intento de mediar o conflito entre o Irã e os Estados Unidos no âmbito nuclear?
Essa omissão do governo Lula deixa um rastro de problemas a serem dirimidos – ou não – pelo presidente a ser eleito em outubro. Relega ainda o desafio de buscar a essência do que é o interesse nacional nesta segunda década do século XXI, antes de qualquer formulação estratégica ou decisão tática nas relações exteriores. A legitimidade da política externa do sucessor do presidente Lula dependerá do grau de conexão com o que a sociedade brasileira considera que seja de seu interesse no plano internacional.
Não se trata de propor plebiscitos ou de abrir consultas populares a cada desafio apresentado. Mas de ouvir setores que concordam ou divergem, grupos diretamente interessados e/ou afetados, formadores de opinião, especialistas nas universidades. Também se trata de estimular a formação de think-tanks, a especialização acadêmica em temas de política externa, a criação de células universitárias dedicadas a estudos e debates. Em uma expressão: abrir a política externa à diversidade de pensamento e gerar capital intelectual sobre o tema no País para fundamentar a inserção do Brasil na cena mundial.
A ausência desse “fio terra”, o interesse nacional, deu vazão a um estilo personalista de formular e executar a política exterior brasileira nos anos de governo do presidente Lula que, com as eleições de outubro, há enorme chance de ser corrigido, dados os estilos pessoais e a experiência dos principais candidatos. Em uma esfera, a área foi contaminada pela figura carismática e impulsiva do presidente Lula, que temporariamente hasteou bandeiras de forte apelo no cenário internacional e que imprimiu um ponto de vista intuitivo e muitas vezes ingênuo às relações entre os Estados e ao ordenamento político e econômico mundial.
Os três pilares da política externa
Na raia mais operacional, a política externa foi impregnada pelo raciocínio arguto e pela movimentação incessante do chanceler Amorim que, escudado pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, mobilizou o Itamaraty em função de três pilares. O primeiro, a obtenção da cadeira permanente ao Brasil em um Conselho de Segurança das Nações Unidas devidamente reformado. O segundo, a conclusão da Rodada Multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC), com respeito fidedigno ao Mandato de Doha (2001). O terceiro pilar, altamente conectado aos outros dois, dizia respeito à adoção de estratégias e de práticas destinadas a reforçar o caráter independente da política externa brasileira. Para os três pilares, a retomada do conceito da Cooperação Sul-Sul foi uma ferramenta útil.
Contratação de mil diplomatas
Para levar adiante esse projeto, embalado na ideia de inserção do Brasil como uma nova potência capaz de estimular uma mudança na ordem internacional, o Itamaraty sofreu uma acomodação custosa. Mais de mil diplomatas foram contratados, ao final de concursos nos quais o parco domínio da língua inglesa já não tinha mais caráter eliminatório. Cerca de 35 embaixadas foram abertas mundo afora, das quais quinze na África. As regras de promoção na carreira e de permanência em postos no exterior foram reajustadas para beneficiar os diplomatas dispostos a servir em países de maior risco e de menor conforto, sobretudo os africanos, com uma ascensão mais rápida. Boa parte das vagas nessas embaixadas, entretanto, continua sem ocupantes, para o desespero dos chefes de missão.
O pior dos custos internos, para o Itamaraty, adveio de uma norma extraoficial imposta pelo embaixador Celso Amorim ainda em 2003. Durante uma cerimônia de posse de novos subsecretários-gerais (o terceiro grau na hierarquia da Casa), na Sala dos Tratados, Amorim conclamou os diplomatas a se “engajarem” na política exterior do presidente Lula. A nova regra foi aplicada literalmente por seu gabinete, em um indisfarçável caráter de expurgo.
Ao longo dos últimos sete anos e meio, o Itamaraty de Amorim e de Samuel “exilou” alguns dos diplomatas mais experientes e cônscios de sua missão no serviço público do País em postos de menor relevância ou desconectados de suas experiências profissionais. Outros não tiveram outra saída senão o afastamento temporário da casa. Houve ainda os que recorreram a postos nos demais ministérios da Esplanada, no Congresso ou nos Tribunais. Qualquer alternativa, enfim, para evitar o vazio de não ser designado para nenhuma função pelo gabinete do chanceler – um purgatório jocosamente chamado entre os diplomatas de Departamento de Escadas e Corredores.
Os tabuleiros da política externa do governo Lula da Silva foram armados sob a premissa de que o Brasil já alcançara um grau de desenvolvimento econômico e de expressão regional suficiente para sustentar seu papel de potência emergente no cenário internacional. A essa percepção somou-se uma verdadeira ansiedade em tornar o País presente em todo e qualquer fórum, nem sempre com posições ponderadas, e em explorar cada aproximação bilateral com parceiros em desenvolvimento. Tudo em prol dos três objetivos básicos – a cadeira permanente no Conselho de Segurança, a conclusão da Rodada Doha e o reforço do binômio independência/antiamericanismo.
Antigas ou não, legítimas ou não, as reivindicações por um espaço maior para o Brasil nos sistemas decisórios mundiais tornaram-se recorrentes. Em paralelo, a diplomacia procurou criar os espaços de diálogo internacional nos quais o País pudesse transitar com maior desenvoltura, quando não com uma indisfarçável propensão à liderança. No primeiro segmento esteve a criação do G-4, a associação entre os países que havia muito pretendiam compor o Conselho de Segurança da ONU como membros permanentes – além do Brasil, a Índia, a Alemanha e o Japão. Todos, sem exceção, sujeitos a imensa rejeição de seus vizinhos, e apenas o Japão munido da bênção dos Estados Unidos.
Também fez parte dessa empreitada a construção do G-20 na OMC, grupo de economias em desenvolvimento sob a liderança compartilhada do Brasil e da Índia, em 2003. Como uma espécie de tropa de choque, a aliança do G-20 evitou que se repetisse na Rodada Doha a conclusão de um acordo prévio entre os Estados Unidos e os países europeus, para a posterior imposição de seus termos às demais nações. Essa fórmula repetira-se nas rodadas anteriores e, desta vez, novamente tenderia a desconsiderar os interesses de países, como o Brasil, em obter a abertura agrícola, a eliminação de subsídios à exportação do setor e a redução das subvenções domésticas. Entretanto, a atuação do G-20 em 2007, quando a Rodada Doha foi suspensa, desnudou a incompatibilidade dos interesses de seus dois subgrupos: os exportadores agrícolas, liderados pelo Brasil, e os importadores de alimentos, representados pela Índia, eram como água e óleo nas discussões sobre abertura de seus mercados no setor.
Aliança do Brasil com emergentes
Nessa seara surgiu também a ansiedade do governo do presidente Lula de aliar o Brasil aos emergentes mais proeminentes do globo, com a expectativa de formular consensos sobre os grandes temas da pauta internacional e de alçar a própria imagem do País. A criação do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) foi uma sacada oportuna, derivada do acrônimo inventado em 2001 pelo economista Jim O’Neill, chefe de pesquisa em economia mundial do Goldman Sachs, para descrever os emergentes com potencial de se tornarem as maiores economias do mundo em 2050. Diante do público médio, o BRIC rendeu ao Brasil do presidente Lula o dividendo de se mostrar conectado – e em igualdade de posição – com dois parceiros emergentes em rota de crescimento econômico muito mais expressiva do que a brasileira, a Índia e a China, e a três potências nucleares e líderes regionais de fato.
No segundo movimento, que correspondeu à criação de ambientes diplomáticos nos quais o Brasil poderia exercer mais à vontade a sua liderança, estão a criação do Fórum Ibas (Índia, Brasil e África do Sul), da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), do grupo América do Sul-Países Árabes (Aspa) e, por fim, da Cúpu-la da América Latina e do Caribe (Calc). O Ibas pouco evoluiu além dos acordos de cooperação e de preferências tarifárias para uma série limitada de bens. A Aspa igualmente mostra uma vocação para o estreitamento da cooperação entre os países e a prospecção de negócios. A Unasul e a Calc, entretanto, têm propósitos que vão muito além.
A integração sul-americana havia surgido como projeto de conexão física, comercial e energética em 2000, durante a gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso. No governo Lula, ganhou uma nova dimensão política, derivada da ideia da autonomia regional para solução de seus próprios dilemas, com o descarte da influência dos Estados Unidos. Apesar de ter mantido os objetivos estratégicos de integração comercial e de infraestrutura entre os países da América do Sul, a Unasul é conduzida como uma construção capaz de acomodar – e até mesmo de legitimar – regimes que se afastam da democracia e que pendem com força para o autoritarismo, como são os casos da Venezuela, do Equador e da Bolívia e, em escala menor, da Argentina. O pilar mais construtivo dessa aliança, a integração de infraestrutura, caminha sem pressa.
Já a criação da Calc, em um encontro de líderes latino-americanos e caribenhos no balneá-rio Costa do Sauípe, na Bahia, em dezembro de 2008, foi um passo calculado para engrossar a confrontação com os Estados Unidos.
Realizado apenas cinco semanas antes da posse de Barack Obama na presidência dos Estados Unidos, o encontro na Costa do Sauípe teve o claro propósito de orquestrar um uníssono recado a Washington de que a hegemonia americana na região ao sul do Rio Grande não era mais nem possível nem desejada. “Vamos ter uma boa relação com os Estados Unidos? Queremos (isso)? Sim, queremos. Mas é bom que eles vejam que temos mecanismos de integração e de desenvolvimento que não dependem da tutela externa”, resumiu o chanceler Amorim, dias antes do evento. A despeito das reservas dos países que mantêm relações mais próximas com Washington, o encontro foi marcado pela apresentação de ideias mirabolantes – a criação de uma moeda comum latino-americana, o sucre, proposta pelo presidente da Bolívia Evo Morales – e por máximas altamente questionáveis, como “o capitalismo é o diabo”, de autoria do presidente Hugo Chávez, da Venezuela.
Mas, de uma proposta do presidente mexicano, Felipe Calderón, nasceu a ideia de converter a Calc em uma versão sem Estados Unidos da Organização dos Estados Americanos, logo batizada informalmente de OEA do B. Entre discursos antiamericanos, o encontro terminou com uma posição de condenação ao embargo dos Estados Unidos a Cuba, vigente desde 1962, e em favor da reintegração do país ao sistema interamericano, mesmo diante da completa impossibilidade de a ilha cumprir a Cláusula Democrática da OEA.
Desgaste nas relações Brasil-EUA
O desgaste e o estresse nas relações entre o Brasil, anfitrião do encontro da Costa do Sauípe, e os Estados Unidos em um momento de transição na política americana deixou uma marca indelével. Cinco meses depois, na 5a Cúpula das Américas, em Port of Spain, Trinidad e Tobago, o presidente Obama encontrou-se com os líderes sul-americanos com o claro objetivo de estender uma bandeira branca e de aceitar a reincorporação de Cuba à OEA.
Em uma espécie de mea-culpa, Barack Obama reconheceu que os Estados Unidos mostraram-se desengajados da América Latina “em alguns momentos” e que, em outros, “tentaram impor” os seus termos. Para completar seu raciocínio, o presidente americano propôs uma parceria em condições de igualdade e argumentou que o hemisfério não podia mais ser “prisioneiro dos desacordos do passado”. “Estou aqui para lançar um novo capítulo de engajamento, que será sustentável em minha administração”, declarou.
O discurso de Barack Obama não foi suficiente para contornar a inércia em que a relação Brasil-Estados Unidos recaíra desde o início de 2003. Para o governo do presidente Lula, esse foi apenas mais um exercício de retórica de um novo chefe de Estado americano mergulhado nos mesmos e graves dilemas da administração anterior. Mesmo que a boa vontade do presidente Obama efetivamente pudesse se converter em ações reais de aproximação e em um “diálogo entre iguais”, a resposta defensiva de Brasília estaria pronta para ser disparada nos mais diversos campos da ação diplomática. O desconforto diante de qualquer sinal de real aproximação com Washington fora uma das heranças que Amorim e Samuel trouxeram ao Itamaraty ao resgatar o ideário da política externa independente do embaixador Azeredo da Silveira, chanceler do general Ernesto Geisel (1974-1979).
Em junho de 2003, o presidente Lula embarcou para Washington, liderando uma caravana de dez ministros. Oficialmente, a reunião de governos trazia o alegado objetivo de ampliar e aprofundar o escopo das relações bilaterais. Mas acabou por reforçar um laço antes inimaginável de amizade entre o líder sul-americano de esquerda e o conservador George W. Bush. O deslumbramento com o diálogo fluido e fácil entre os dois chefes de Estado deu vazão a uma aliança oportuna para ambos os países – uma espécie de aval de Bush a Lula para resolver os dilemas e conflitos regionais, de forma a desincumbir Washington dessa tarefa e permitir a concentração da Casa Branca no combate ao terror. Essa licença permitiu ao Itamaraty, e, sobretudo, ao assessor Marco Aurélio Garcia, montar uma estratégia hegemônica para o Brasil na América do Sul, da qual a Unasul tem sido uma ferramenta útil.
No âmbito bilateral, a área que mais aproveitou o empurrão de 2003 e levou adiante a cooperação foi a de energia que, no Brasil, era comandada pela então ministra Dilma Rousseff, hoje candidata de Lula a sua sucessão pelo PT. Com a prioridade voltada às alianças com o mundo em desenvolvimento, o governo Lula praticamente relegou as relações entre Brasil e Estados Unidos à esfera empresarial. Os resultados não foram modestos. Tampouco deixaram de ser usados como conquistas da ação diplomática.
Comércio Brasil-EUA
Na última década, empresas brasileiras estabeleceram-se como produtoras no mercado americano, sobretudo, de setores que vinham enfrentando barreiras tarifárias e não-tarifárias às exportações de seus produtos nos Estados Unidos, como o siderúrgico, de produtos cítricos e de carnes. Dados recentes da Embaixada do Brasil em Washington mostram que os investimentos produtivos brasileiros nos Estados Unidos saltaram de us$ 1,6 bilhão, em 2000, para us$ 7,4 bilhões, em 2009. No mesmo período, o investimento americano acumulado no setor produtivo do Brasil cresceu 54,5%, de us$ 36,7 bilhões para us$ 56,7 bilhões.
As exportações brasileiras para os Estados Unidos aumentaram 107,6% em valor, entre 2003 e 2008, passando de us$ 13,2 bilhões para us$ 27,4 bilhões. As importações de produtos americanos saltaram 98,4%, de us$ 12,9 bilhões para us$ 25,6 bilhões. Mas, embora impressionantes, esses porcentuais foram magros em relação à evolução total do comércio do Brasil com o exterior, estimulada pelas oportunidades de diversificação de mercados em um ambiente de crescimento da economia mundial. O total de exportações brasileiras saltou 259,1% na mesma comparação, enquanto o de importações aumentou 210,0%. No mercado americano, o Brasil continuou a ser o 16o maior provedor em 2009. A China, primeira do ranking, exportou quinze vezes mais para os Estados Unidos, simplesmente o maior país importador de bens do mundo.
Se o esforço de ampliação de negócios entre Brasil e Estados Unidos deve ser creditado ao empresariado brasileiro, também é certo dizer que apenas recentemente a indústria e o agronegócio do País acordaram para o fato de que a abertura do mercado americano não é decisão de seu Executivo, mas de seu Congresso. Sem um mandato do Congresso ao Executivo, como o Trade Promotion Authority ou fast-track dos anos 1990, não há segurança de que os acordos fechados em negociações comerciais sejam integralmente sancionado
s pelo Legislativo americano. A abertura de mercados, nos Estados Unidos, depende sempre do trabalho insistente e minucioso nas entranhas do Congresso. Mas, somente há poucos anos, o setor industrial brasileiro estabeleceu uma célula de lobby em Washington, o Brazil Industries Coalition (BIC), seguido pela União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). Na embaixada brasileira em Washington, apenas dois diplomatas são responsáveis pelo trabalho direto com o Congresso.
Aproximação com o Irã: irritação em Washington
Contaminada nos últimos meses pela insistência do governo do presidente Lula em aproximar o Brasil do Irã e, ainda mais grave, pela ambição de intermediar um acordo entre Teerã e a comunidade internacional na área nuclear, a relação entre Brasília e Washington será o maior passivo – para não usar a expressão “herança maldita” – a ser deixado ao vencedor das eleições de outubro. A irritação mútua fechou as portas para uma aproximação almejada, no discurso oficial, e colocou em risco interesses legítimos, como o esforço do lobby da Unica pela abertura do mercado americano de etanol e pela prorrogação do acesso de médias empresas brasileiras ao benefício do sistema de preferências tarifárias dos Estados Unidos. As consequências não foram piores porque Washington, definitivamente, não tem no Brasil uma prioridade. Suas preocupações estão nos fronts afegão e iraquiano, na sua fronteira viva com o México e na recuperação da economia doméstica.
Em abril passado, um mês antes do encontro em Teerã entre os presidentes Lula e Mahmoud Ahmadinejad, do Irã, o Departamento de Estado e a Casa Branca descartaram a primeira visita do presidente Obama ao Brasil, inicialmente programada para o final de junho. O repúdio de Washington ao Acordo de Teerã, celebrado entre o Brasil, a Turquia e o Irã, no dia seguinte à sua assinatura, em Teerã, afastou completamente a alternativa mantida pela Casa Branca de uma visita do presidente Obama ao Brasil depois das eleições brasileiras, como um gesto de cordial despedida a Lula e de primeira aproximação ao candidato vencedor.
A insistência do Brasil e da Turquia em perseguir um acordo que, a rigor, reconheceria e enfatizaria o direito do Irã de enriquecer urânio em baixos teores, recebeu uma resposta que surpreendeu o governo brasileiro. A secretária de Estado, Hillary Clinton, anunciou ter obtido o apoio de todos os membros permanentes do Conselho de Segurança à resolução com novas sanções contra o Irã, que acabou aprovada no último 9 de junho. O voto contrário do Brasil engrossou a irritação de Washington.
A reação à jogada diplomática brasileira extrapolou o terreno da Casa Branca e aflorou no Congresso americano, onde a bancada pró-Israel mantém presença expressiva nas comissões que tratam de comércio exterior e de relações internacionais. As perspectivas de diluição da mútua irritação nas relações bilaterais, por enquanto, estão anotadas para o início de 2011, depois da posse do novo governo em Brasília. Em princípio, a Casa Branca deve agendar um encontro entre o sucessor de Lula e o presidente americano, no Brasil, entre fevereiro e março de 2011.
O episódio da aproximação Brasil-Irã elevou ao máximo um passivo nada promissor acumulado desde 2003. À inércia nas relações entre o Brasil e os Estados Unidos somou-se uma sucessão de ataques verbais gratuitos do presidente Lula a Washington e a iniciativas que, aos olhos da Casa Branca, mais pareciam rebeldia juvenil. Entre 2003 e 2004, as críticas do presidente Lula aos Estados Unidos foram tão recorrentes e agressivas que a então embaixadora americana em Brasília, Donna Hrinak, declarou à imprensa que o Brasil estava passando dos limites.
Os ataques, entretanto, nunca pararam e tornaram-se ainda mais duros e ferinos nos momentos em que o governo sentia o maior desconforto das bases petistas com a condução da política econômica. Em 2005, a operação conjunta montada pelo Brasil, Argentina e Venezuela para acabar com as negociações da Alca, durante a Cúpula das Américas em Mar del Plata, Argentina, aprofundou o mal-estar nas relações bilaterais. Não tanto pelo resultado, mas pela forma como foi orquestrada. No dia seguinte, Lula recebeu o então presidente americano, George W. Bush, para um churrasco na Granja do Torto, em Brasília, como se o Itamaraty não tivesse se mobilizado para que o acordo de Mar del Plata abortasse definitivamente a Alca.
A tentativa de reanimar as relações em março de 2007, quando Bush e Lula se encontraram duas vezes, em São Paulo e em Washington, resultou em um protocolo de cooperação na única área em que realmente o diálogo evoluiu, a de energias renováveis. Nos últimos dois anos, o palanque antiamericano no primeiro encontro da Calc, a reação do governo do presidente Lula ao acordo firmado entre Estados Unidos e Colômbia para o uso de bases colombianas por soldados e civis americanos e o comportamento do Brasil no episódio do golpe de Estado em Honduras prenunciavam que algo pior estava por acontecer. A impossibilidade de diálogo fluido de Lula com Obama, ao contrário do que acontecera com Bush, tirou a última máscara que encobria a desgastada relação bilateral.
Mercosul não é prioritário
Herança do governo Fernando Henrique Cardoso que o presidente Lula prometeu consolidar e aprofundar, o Mercosul tornou-se refém do desastre econômico da Argentina e da incapacidade de o Brasil efetivamente desempenhar sua liderança. Tratado como “destino”, e não como “opção” do Brasil até o final de 2002, o Mercosul deixou de ser a alavanca natural da inserção internacional do Brasil, preterido entre os novos arranjos costurados pelo Itamaraty no mundo em desenvolvimento. Apesar de seus discursos entusiásticos sobre o bloco, o presidente Lula deixou o Mercosul se esvair, a ponto de hoje essa construção estrategicamente engenhosa para o Brasil correr risco de perda de sua condição de união aduaneira por um período indeterminado.
Em julho de 2004, o então presidente da Argentina, Néstor Kirchner, anfitrião da reunião de cúpula do Mercosul em Puerto Iguazú, pôs fim ao encontro ao confirmar a imposição de barreiras tarifárias contra produtos brasileiros. Essa foi apenas a primeira de uma série de medidas protecionistas adotadas pela Casa Rosada durante o governo do presidente Lula, em clara transgressão ao livre comércio entre os sócios do bloco, que recebeu do governo do presidente Lula uma reação tão benevolente quanto as iniciativas argentinas de perfurar a Tarifa Externa Comum (TEC). A solução do imbróglio, recomendaram o Itamaraty e o Planalto, dependeria de acordos de preços entre empresários dos setores afetados. Os brasileiros, no caso, se comprometeriam a elevar os valores de seus produtos despachados à Argentina. Assim ocorre até hoje, a cada nova barreira anunciada por Buenos Aires, ao arrepio das regras da OMC.
Brasil absorve custos da integração regional
No curso destes sete anos e meio, um movimento curioso ocorreu entre os parceiros do bloco. Antes considerada parceira maior, como o Brasil, a Argentina passou a reivindicar cada vez mais exceções às regras comerciais sob o argumento de sua assimetria em relação à economia brasileira. A maior parcela de custo da integração, antes razoavelmente dividido entre os dois sócios maiores, acabou recaindo sobre o Brasil. Ao mesmo tempo, as posições defensivas argentinas tornaram inviável a conclusão de acordos de livre comércio que, certamente, eram de interesse dos setores produtivos brasileiros.
Diante desse quadro de perda de relevância comercial do Mercosul, a política externa do presidente Lula adotou três caminhos. Primeiro, submeteu o bloco a um teste de expansão forçada, ao propor a adesão da Venezuela, mesmo diante da clara impossibilidade de cumprimento da Cláusula Democrática pelo atual regime de Caracas e de sua incompatibilidade com a vocação do Mercosul à economia de mercado. A iniciativa ainda depende apenas da aprovação do Congresso do Paraguai, uma vez que até mesmo o Legislativo brasileiro deu o seu aval.
O segundo caminho do governo Lula foi a adoção de uma estratégia bilateral de atuação, conduzida principalmente por Garcia e Samuel e defendida com acentuado ímpeto pelo presidente. Essa ação esteve calcada em reações generosas e tolerantes de Brasília a iniciativas nem sempre amistosas dos países vizinhos, como o Paraguai e a Bolívia. O terceiro caminho foi a omissão diante de disputas entre vizinhos, como se observou claramente no episódio do conflito entre Argentina e Uruguai em torno de investimentos de indústrias de celulose – a chamada Guerra de las Papeleras. Apesar dos recorrentes apelos de Montevidéu para que o presidente Lula mediasse a questão, a resposta sempre foi negativa.
A exposição do Brasil no cenário externo nos últimos anos teve, com certeza, o benefício do carisma de Lula em missões mundialmente aplaudidas e/ou do ativismo do Itamaraty, como foi observado nas negociações da Rodada Doha e da Conferência das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, a COP 15. Porém, mesmo nas ações mais justificáveis e amparadas por algum consenso interno no Brasil, o Palácio do Planalto e o Itamaraty desapegaram-se da noção de que a maior relevância do País no exterior era fruto de sua circunstância de economia em crescimento sustentável, munida de um amplo e diversificado mercado potencial, e de seu ordenamento democrático.
Pode-se entender que, em um governo que manteve uma política externa partidarizada como contraponto de sua política econômica, tal reconhecimento público seria desastroso, em especial diante da militância petista. Mas o apego à ideia de que a estratégia para as relações exteriores era fruto da imagem internacional melhorada do Brasil, repetida como um mantra pelo presidente Lula e pelo chanceler Amorim, deu vazão a iniciativas e a declarações públicas que nunca deveriam ter vindo à tona.
O sucessor do presidente Lula contribuirá imensamente se desbastar a política exterior dos seus excessos e, especialmente, do componente ideológico que a formatou desde 2003. Mas irá além se conseguir formular estratégias embasadas em expressões do real interesse nacional, e não apenas nas convicções de alguns poucos e grandes do Palácio do Planalto e do Itamaraty. A sorte está lançada. Desta vez, em um ambiente bem menos favorável que o dos cinco primeiros anos do governo do presidente Lula. A economia mundial já não se mostra tão exuberante, ainda machucada pela crise financeira que a debilitou em 2008. Os Estados Unidos padecem de uma recuperação muito mais lenta que a originalmente estimada. A China sinaliza com o arrefecimento de sua produção industrial e com mobilizações sociais antes impensáveis. Os direitos humanos e a democracia se esfacelam na América do Sul, enquanto o terrorismo se impõe cada vez mais como o inimigo onipresente das nações.
É correspondente do jornal O Estado de S. Paulo em Washington (eua).
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