01 janeiro 2011

A Ficha Limpa no Contexto da Governança Eleitoral Brasileira

A lei que definiu que a vida pregressa de um cidadão deveria ser considerada elemento importante para garantir preventivamente certa moralidade nas relações políticas, impedindo-o de participar do jogo eleitoral, foi sem dúvida a grande protagonista nas eleições de 2010. A proposta aqui é fazer uma reconstrução histórica do debate para que seja possível construir uma espécie de registro da memória institucional desta regra. Feito isso, serão destacadas, ao final, duas reflexões críticas que são reveladas e estão imbricadas com esta mais recente alteração legal. 

O resgate histórico do debate sobre o tema da “vida pregressa” do candidato como elemento a ser considerado para sua (in)elegibilidade não deve ser interpretado como uma rota tortuosa e prolixa para chegar ao núcleo central do argumento. Será antes uma forma de enxergar a questão com horizontes um pouco mais largos e, por isso, um pouco mais protegidos do açodamento que a premência do debate possa suscitar. Está na Constituição Federal de 1967 o primeiro registro legal de que uma vida pregressa incompatível com a moralidade do cargo público ensejaria a inelegibilidade do cidadão. Na verdade, a Constituição incorporou essa exigência após a Emenda Constitucional no 1/1969 . Aquele era um momento de avanço do regime autoritário no País, o que pode ser interpretado pelas leis e decretos aprovados no mesmo período: Ato Institucional no 5, Lei da Segurança Nacional e Lei de Imprensa.


A moralidade pública naquele momento estava claramente vinculada ao potencial ofensivo do candidato à ordem institucional do regime. Esse espírito da Constituição, de proteger o regime de uma ação política oposicionista mais acentuada, foi explicitado pela Lei Complementar no 5 de 1970 (Lei de Inelegibilidades). Art. 1º – São inelegíveis:
I – para qualquer cargo eletivo: […] n) os que tenham sido condenados ou respondam a processo judicial, instaurado por denúncia do Ministério Público recebida pela autoridade judiciária competente, por crime contra a segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública e a administração pública, o patrimônio ou pelo direito previsto no art. 22 desta Lei Complementar, enquanto não absolvidos ou penalmente reabilitados. Interessante notar que a LC no 5/1970 definia o potencial ofensivo do candidato à moralidade pública pelo simples fato de ser ele réu em processo judicial. Não haveria a necessidade, portanto, de condenação transitada em julgado.


Em 1977, no chamado “pacote de abril”, que veio para garantir o controle político do Executivo sobre o Legislativo, o tema voltou a ser alterado sem que o sentido original da determinação constitucional fosse alterado. Fato é que, com a abertura política e o longo caminho para a reconstrução das liberdades políticas, o critério da vida pregressa como impeditivo para a participação da competição eleitoral foi removido do texto constitucional sob o rótulo de entulho autoritário. E faz sentido que assim tenha sido. Já que moralidade pública estava ali interpretada como potencial ameaça à ordem institucional do regime, era natural que a retomada da competição política e da liberdade política para as oposições passava pela exclusão deste critério. Além disso, em regimes democrático-liberais, a presunção da inocência é basilar. Mesmo que fosse admitida, portanto, a exclusão da competição política dos condenados criminalmente, a admissão de candidatos que respondessem a processos judiciais sem condenação definitiva era uma bandeira ideológica das mais fortes. Ainda mais quando contrastada com o período anterior em que a atuação política tinha sido criminalizada.


Em seu art. 14, § 9º, a Constituição de 1988 tratou apenas de indicar que a futura lei de inelegibilidade deveria se orientar pela defesa da livre e igual competição política contra o abuso de poder econômico e político. Competição política na Constituição de 1988.


É possível dizer que, enquanto a Constituição de 1967 restringia a competição política pelo critério da moralidade pública, a Constituição de 1988 a liberalizava pelo critério da igualdade de condições. É claro que antes de 1988 não era a questão da moralidade, medida pela vida pregressa, o principal elemento restritivo da competição política, mas era parte integrante de uma vasta estrutura restritiva. A democratização, para lembrar Santos (1998), não envolve apenas os eixos dahlsianos de inclusividade e competitividade. É fundamental que também envolva uma terceira dimensão, a elegibilidade. A definição das condições impostas aos indivíduos para participarem ativamente na política é central na definição da natureza dos regimes representativos. Afinal, o controle da oferta de candidatos pode servir como instrumento para a manutenção de regimes oligárquicos mesmo em contextos de elevada participação.
Ao eliminar os critérios da moralidade e vida pregressa como condições de inelegibilidade, os constituintes de 1988 não apenas ampliaram as bases para a competição eleitoral como também sinalizaram para a importância do restabelecimento da ordem legal liberal. Isso fica claro quando da publicação da nova Lei de Inelegibilidades (Lei Complementar no 64 de 1990). Ela é categórica ao definir que a condição de inelegível será apenas daquele que cumpre alguma sentença transitada em julgado. Ou seja, apenas com a decisão final, quando já não há mais possibilidade de recurso, é que o cidadão estará temporariamente impossibilitado de fazer uso de seu direito de se candidatar a algum cargo eletivo.


Ao combinarmos o texto constitucional com a Lei das Inelegibilidades fica claro que o objetivo do legislador constituinte era o de resgatar o império da lei. Por um lado, buscou democratizar a competição ao protegê-la do abuso do poder econômico e político; por outro, buscou proteger o indivíduo, garantindo-lhe não cessar com seus direitos políticos sem a oferta de uma ampla possibilidade de defesa. Poucos anos depois da aprovação e promulgação da Lei de Inelegibilidades veio o período da Revisão Constitucional, período este já previsto pela própria Constituição. Não entrarei aqui em detalhes sobre os acontecimentos políticos daquele momento; basta dizer que havia muito mais incertezas do que certezas em relação à consolidação da democracia no País. Tínhamos acabado de interromper o mandato do primeiro presidente eleito diretamente pelo voto popular depois de décadas e dávamos os primeiros passos para “mais um” plano econômico com o objetivo de estabilizar nossa economia.


Não é preciso muito esforço para concluir que não havia ambiente adequado para uma revisão constitucional que se debruçasse cautelosamente sobre os impactos efetivos do desenho institucional de 1988. O resultado é que este momento é visto como um grande fracasso . Dado revelador desse fracasso é que, depois de oito meses de trabalho, conduzido e relatado pelo então deputado Nelson Jobim, apenas seis emendas de revisão foram aprovadas. E não se trata apenas de uma questão quantitativa, as emendas aprovadas alteraram muito pouco o funcionamento institucional anterior. Até agora, a emenda considerada mais relevante daquele processo era a de número cinco, que alterou de cinco para quatro anos o mandato do presidente da República. Digo até agora porque uma mudança, na verdade um acréscimo, no § 9º do art. 14 da Constituição Federal, acabou elevando a Emenda Constitucional de Revisão (ECR) no 4 ao mesmo nível – para não dizer acima dela – da ECR que alterou a duração do mandato presidencial.


Com a ECR no 4 três expressões foram acrescentadas ao parágrafo constitucional que rege a inelegibilidade: “probidade administrativa”, “moralidade para o exercício do mandato” e “vida pregressa do candidato”. Ou seja, o texto constitucional que tinha abandonado aqueles critérios ao longo da redemocratização os reabsorve em meio a uma malograda Revisão Constitucional. E assim ficou o texto constitucional, Art. 14 – A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: […] § 9º – Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.


Na preparação para a eleição seguinte à introdução destas expressões na Constituição – eleições municipais de 1996 – deu-se início a um debate sobre como fazer valer a exigência de que a vida pregressa do candidato fosse critério para definir sua elegibilidade. Entrou em cena a questão da autoaplicabilidade dos novos termos constitucionais. Em outras palavras, dado que a lei complementar que definia as regras da inelegibilidade já tinha sido promulgada, seria necessário que a nova lei fosse votada ou estes novos princípios já produziriam efeitos mesmo sem ela?


Prevendo uma enxurrada de ações judiciais diante da indefinição dos critérios de moralidade pela vida pregressa, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) publicou a Súmula no 13 visando pacificar o entendimento na Justiça Eleitoral. Em termos bastante diretos, os ministros definiram que aqueles princípios constitucionais não são autoaplicáveis, ou seja, só poderiam produzir efeitos caso uma nova lei complementar viesse regulamentá-los . É possível afirmar que a súmula do TSE obteve sucesso, uma vez que rapidamente firmou entendimento sobre a questão e, de modo geral, fez com que as instâncias inferiores acatassem o entendimento – foram raros os casos envolvendo o dispositivo constitucional que chegaram ao TSE depois da súmula. E como uma nova lei complementar não tinha sido aprovada regulamentando os novos critérios, a moralidade medida pela vida pregressa não constituía parâmetro legal para definir a inelegibilidade de qualquer cidadão.


Este cenário é verdadeiro até as eleições de 2006. No período do calendário eleitoral em que é permitida a contestação do registro de uma candidatura, o Ministério Público Eleitoral (MPE) do Rio de Janeiro ingressou no Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do estado com pelo menos cinco ações. Quatro delas eram contra candidatos a deputado federal acusados de participação no esquema de corrupção conhecido como “máfia das ambulâncias” . A outra envolvia o candidato Eurico Miranda, à época candidato a deputado federal pelo PTB e uma figura pública tão conhecida como controversa. Em todas elas evoca-se o princípio da moralidade pela vida pregressa para negar o registro de suas candidaturas. A rigor, não há novidade no pedido do MPE, ainda que não fosse frequente esse tipo de ação. A novidade de caso ficou pelo acolhimento do TRE-RJ às ações, cancelando o registro de todos estes candidatos, divergindo assim da súmula da instância superior: o TSE. Efeitos das decisões do Tribunal carioca.


A partir do posicionamento do MPE e do TRE carioca, o tema volta com força ao debate público. O próprio presidente do Tribunal eleitoral carioca se empenhou para lançar o tema no centro do debate público, jurídico e político do País. Não foi apenas no Rio de Janeiro que o Ministério Público Eleitoral ingressou com este tipo de ação. Em Rondônia e em São Paulo, ações semelhantes acabaram chegando à justiça eleitoral. A diferença é que nesses estados os TREs não acolheram os argumentos. As decisões do TRE-RJ que cancelaram os registros das candidaturas com base no argumento da vida pregressa dos candidatos foram reformadas pelo TSE. Tal decisão, entretanto, foi tomada com muita divergência e bastante distante de um entendimento pacificado que se espera de um debate cujo tema central já esteja regido por uma súmula. O deferimento do registro da candidatura de Eurico Miranda, por exemplo, veio por um placar de 4 a 3. Estava ali o sinal definitivo de que a súmula já não tinha força para orientar a questão e de que havia espaço para a tese da autoaplicação dos termos constitucionais . Ficha limpa: bandeira de várias entidades
A questão da “ficha limpa” ganhou destaque e, desde então, foi tomada como bandeira por diversas entidades, como, por exemplo, a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) e a Associação dos Juí­zes Federais do Brasil (Ajufe). Essas entidades, e outras tantas associações da sociedade civil, formam o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) que se dedica com afinco à promoção de iniciativas que visem debater e reformar as regras do jogo competitivo. Depois destas decisões do Tribunal carioca, o tema não saiu mais da pauta do debate público. Nas eleições municipais seguintes, em 2008, foram várias as tentativas para que a tese da moralidade medida pela vida pregressa fosse aplicada sem que fosse necessária uma lei complementar para isso, bastando que as instâncias superiores acatassem o argumento da autoaplicabilidade dos termos constitucionais.


Uma das mais importantes destas tentativas foi a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) impetrada pela AMB junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Como no TSE a questão estava sumulada – apesar de indícios de que a súmula vinha perdendo força – a estratégia foi acionar o STF para que, por força da interpretação constitucional, a posição majoritária na Justiça Eleitoral fosse reformada.


Aplicando o princípio da “presunção constitucional da inocência”, a maioria dos ministros decidiu pela improcedência dos argumentos da ADPF e apenas dois dos onze ministros acataram os argumentos: Carlos Ayres Britto (presidente do TSE à época) e Joaquim Barbosa (vice-presidente do TSE). Aliás, foi sob a liderança de Ayres Britto, em 2006, que o plenário do TSE começou a formar um entendimento de que a Súmula no 13 deveria ser derrubada – ainda que não fosse o entendimento majoritário. Proposta de lei de iniciativa popular.

Todo este movimento resultou em uma proposta de lei de iniciativa popular, que foi entregue em setembro de 2009 para o então presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer (PMDB-SP). O projeto contava com mais de 1,5 milhão de assinaturas – pouco mais de 1% do eleitorado, como exige a legislação. Entre as várias sugestões de alteração da Lei de Inelegibilidades, como o alargamento do prazo e das situações geradoras de inelegibilidades, o projeto visava impedir a candidatura de cidadãos contra os quais existisse alguma denúncia recebida por órgão judicial colegiado. Essa indisponibilidade de direito político viria, portanto, ainda que não existisse decisão judicial sobre o caso, bastando o acolhimento da denúncia. Nas palavras do próprio movimento, seria a adoção de uma “postura preventiva para a proteção da sociedade”.


Com a adesão de várias entidades da sociedade civil e de boa parte da imprensa, o projeto foi transformado em lei pelo Congresso Nacional em maio de 2010 – Lei Complementar no 135 . Importante frisar que a lei é publicada em ano eleitoral, o que gerou uma pressão política extra sobre o Parlamento e adicionou alguns elementos importantes à polêmica de sua entrada no mundo jurídico, que tratarei mais à frente. O que mudou nos dez anos que separam a súmula do TSE de 1996 – firmando entendimento contra a aplicação do princípio da vida pregressa – e as decisões do TRE-RJ em 2006 – que contrariaram a súmula e cancelaram alguns registros de candidaturas? Pergunta complexa e possivelmente com inúmeras respostas insatisfatórias e incompletas. Certamente, muita coisa mudou. O que merece destaque aqui, entretanto, é que o somatório dos diversos escândalos de corrupção política que marcaram o período parece ter servido como importante combustível para alimentar um diagnóstico de que uma necessária e urgente reforma política não poderia vir das arenas tradicionais. Em outras palavras, se o Legislativo e o Executivo encontravam-se no epicentro de boa parte dos escândalos de corrupção, as reformas das leis eleitorais deveriam ser gestadas fora dessas arenas . Proteção da sociedade contra os corruptos.


Se em 1969 a moralidade incorporada no texto constitucional visava proteger a segurança nacional do potencial ofensivo dos subversivos, o movimento de quase quarenta anos depois levantou a bandeira da moralização para proteger a sociedade e o erário público do potencial ofensivo dos corruptos. Direções muito diferentes que têm em comum apenas a defesa de que a vida pregressa deveria ser considerada como elemento legal para o impedimento de candidaturas. A “ficha limpa” é mais um episódio do complexo debate sobre a reforma política. É possível dizer que nos meios políticos e acadêmicos não há um consenso em relação à necessidade da rea¬lização de reformas. Quanto mais em relação a que tipo de reforma deve ser realizado . Parece haver indícios, entretanto, de que as incertezas que regem o debate nestes meios não estão presentes em outros espaços de debate público. A “ficha limpa” seria então mais uma peça de um quadro reformista mais amplo que tem sido desenhado fora da arena política tradicional e com apoio expressivo de instituições judiciais.


O argumento de que a moralidade medida pela vida pregressa devesse ser critério de inelegibilidade ganhou corpo da mesma maneira que outras alterações profundas em nosso jogo competitivo no passado recente. Refiro-me, principalmente, às decisões sobre “verticalização das coligações”, “redução do número de vereadores”, “queda da cláusula de barreira” e “fidelidade partidária”. Todas estas foram decisões judiciais que levaram as instituições políticas tradicionais a reboque ao reformarem o jogo político por meio de interpretações criativas, inovadoras e arrojadas das leis . Claro que há peculiaridades em relação ao caso “ficha limpa”, pois ela alterou o quadro normativo somente após a promulgação de uma lei pelo Congresso Nacional. Distinto, portanto, do caso da “verticalização” e da “fidelidade partidária”, casos em que o mundo jurídico foi completamente alterado por interpretações judiciais de normas que já figuravam há tempos no quadro normativo . Há, porém, convergência. A principal se refere ao fato de que foi predominantemente na arena judicial que a questão ganhou forma, força e foi debatida. Ficha limpa ganhou força na arena judicial.


A “ficha limpa” foi, antes de ser objeto de debate público e político, uma decisão tomada na justiça eleitoral regional. E, apesar de não ter recebido decisão favorável no TSE naquele primeiro momento, o fato de que três dentre sete ministros (sendo que dois deles eram também ministros do STF) terem dado abrigo à tese da moralidade pela vida pregressa permitiu que o tema fosse inflado e levado ao debate público. A sociedade civil e as instituições políticas clássicas, contudo, chegaram depois neste debate. Fato revelador dessa disposição da Justiça Eleitoral está ligado aos primeiros acontecimentos logo após a aprovação da LC no 135. A lei foi aprovada em 4 de junho de 2010, ano das eleições para presidente, governadores, senadores, deputados federais e estaduais. A promulgação da lei veio a menos de um mês do final do prazo legal para a realização das convenções partidárias e a quase quatro meses do primeiro turno das eleições. Efeitos já nas eleições de 2010.


Uma questão a ser enfrentada dizia respeito à validade ou não daquela lei para aquele pleito; afinal, a Constituição em seu art. 16 estabelece o princípio da anualidade das leis eleitorais. Ainda em junho, o TSE respondeu à Consulta no 1 120 do senador Arthur Virgílio (PSDB-AM), afirmando que a lei poderia produzir efeitos para as eleições de 2010. O argumento central foi sustentado por duas interpretações: a primeira, de que o processo eleitoral começaria apenas após as convenções partidárias – portanto, a lei foi promulgada respeitando a anterioridade necessária – e, a segunda, de que a LC não alterou a lei eleitoral; simplesmente garantiu a aplicação de uma antiga exigência constitucional.
Outro ponto polêmico e essencial para os efeitos imediatos da lei era a extensão de seus efeitos. A nova lei alcançaria situações do passado? Em outras palavras, o cidadão que recebeu no passado uma decisão judicial colegiada que o condenou por algum crime seria afetado pela inelegibilidade ou ela se aplicaria apenas às condenações judiciais que vieram após a promulgação da lei? Em outra consulta, a de no 1 147, feita pelo deputado federal Ilderlei Cordeiro (PPS-AC), o TSE respondeu que, por não se constituir pena, a nova situação de inelegibilidade poderia alcançar os fatos ocorridos anteriormente a sua vigência . Sem a combinação destas duas decisões a Lei da Ficha Limpa não teria produzido o impacto sobre o jogo competitivo, como acabou produzindo. Impactos da lei em termos qualitativos
O impacto da lei deve ser medido menos em termos quantitativos e mais em termos qualitativos. Nas eleições de 2010, inscreveram-se pouco mais de 22 500 candidatos em todo o Brasil. Desses, apenas 242 registros foram cancelados pelos TREs com base na “ficha limpa”, próximo de 1% das candidaturas. O destaque, entretanto, não é necessariamente para o número de candidatos atingidos pela lei, mas o seu potencial para alterar a competição eleitoral, por exemplo, cancelando o registro de um candidato a governador ou senador com chances de se eleger, ou de um deputado federal normalmente bem votado. Duas reflexões críticas.


Como chamei a atenção no início deste artigo, trataríamos, ao final, de duas reflexões críticas. A primeira é mais conjuntural, por isso mesmo mais datada. A segunda é mais estrutural e, portanto, menos vinculada aos efeitos de um momento específico. A questão conjuntural será reveladora da questão estrutural, ou, ainda, a questão estrutural é evidenciada pela questão conjuntural. A questão conjuntural diz respeito àquele momento em que se debate o ingresso da LC no mundo jurídico, ou, melhor, a validade da lei para as eleições de 2010 e seu alcance sobre o passado. Não se trata aqui de analisar as diferentes interpretações sobre os princípios constitucionais da anterioridade (art. 16 da CF) e da irretroatividade (art. 5º, inc. XL, da CF). O ponto aqui é que os efeitos da lei sobre a competição eleitoral dependiam de interpretações de princípios constitucionais basilares para regimes de democracia liberal. Punição é retroativa.


Tanto foi assim que o candidato ao governo do Distrito Federal, Joaquim Roriz (PSC), recorreu ao STF ao ter o cancelamento de seu registro mantido pelo TSE. Roriz foi atingido pela nova lei porque renunciou ao mandato de senador em 2007 para escapar de um processo de cassação de mandato. A antiga Lei de Inelegibilidades não previa restrição eleitoral para esse tipo de situação; portanto, o candidato somente seria afetado pela nova norma se confirmada a interpretação de que a punição retroagiria. Depois de dois dias de debates, o plenário do Supremo não conseguiu formar um entendimento majoritário: o julgamento terminou em empate com cinco ministros reformando a decisão do TSE e cinco ministros mantendo o cancelamento do registro . No caso concreto seguinte, no julgamento de Jader Barbalho (PMDB), candidato ao senado pelo Pará, o empate persistiu e várias propostas foram colocadas para que o caso encontrasse solução definitiva; afinal, o primeiro turno das eleições já tinha passado e a segurança jurídica já estava prejudicada.


Diante de um leque de cinco opções , a maioria dos ministros preferiu pela solução que colocava a decisão do TSE como a interpretação válida para os casos que envolvessem a constitucionalidade da “ficha limpa”, pelo argumento de que teria ferido os princípios constitucionais da irretroatividade e anterioridade. É importante destacar e melhor analisar esta decisão. Primeiro, porque não era a única possível; por isso, devemos entendê-la como a preferível diante de outras. Segundo, porque ela nos serve para desnudar uma característica importante do status institucional do TSE. A rigor, o efeito da decisão do STF foi o de aceitar que o organismo responsável pela governança eleitoral tenha proferido a última interpretação sobre dois valores constitucionais fundamentais.


É importante clarearmos que o TSE é a última instância da Justiça Eleitoral e que, portanto, tem suas prerrogativas definidas para uma atuação na regulação e administração da competição eleitoral. O momento inaugural da “ficha limpa” exigiu decisões que envolviam uma interpretação do texto constitucional. E é do STF, essencialmente, essa prerrogativa; por isso, foi provocado. Como o plenário do Supremo não conseguiu produzir uma interpretação majoritária, a decisão majoritária foi a de considerar a decisão do TSE como a interpretação constitucional válida. Este momento conjuntural revelou uma característica estrutural da governança eleitoral brasileira: o TSE é um organismo do STF para matérias eleitorais.


Claro que a afirmação não está sustentada apenas nesta decisão pontual; ao contrário, a decisão pontual apenas aponta para algo mais profundo do modelo de governança eleitoral que adotamos. A solução encontrada refletiu algumas características de nossa administração da competição eleitoral debatida em outros trabalhos sobre governança eleitoral (Marchetti, 2008b). O TSE já aplicou outras normas com base em interpretações constitucionais inéditas – no caso da “verticalização das coligações” e no da “fidelidade partidária”, por exemplo. O bem maior para as instituições reguladoras da competição política é a garantia da lisura do processo eleitoral. A legitimidade do resultado das urnas é condição sine qua non para que as forças políticas aceitem os resultados eleitorais. Vale ressaltar que o tamanho da oferta (requisitos para a elegibilidade) é variável-chave no que diz respeito às oportunidades de grupos políticos relevantes vencerem as eleições. Só há chance de disputa na medida em que os grupos políticos estão aptos a disputar eleições.


A regulação da competição geralmente ocorre no plano constitucional e na legislação específica, definindo desde o tamanho da constituency, a fórmula eleitoral, o número de vagas e a normatização das campanhas eleitorais. A administração dessa competição, bem como das regras que a orientam, são atividades típicas do que se convencionou chamar de “governança eleitoral” (Hartlyn; McCoy & Mustillo, 2009; Mozafar & Schedler, 2002). Modelo judicializado e constitucionalizado
Aqui vem, por fim, o elemento mais estrutural que acredito que deva ser debatido a partir da vigência da Lei da Ficha Limpa. O primeiro ponto que deve ser observado é que o modelo de governança eleitoral no Brasil é judicializado e constitucionalizado. É judicializado porque em todas as atividades relativas à governança há uma proeminência dos membros do Judiciário. Em nenhuma instância da Justiça Eleitoral há a participação de outras associações ou instituições de fora do universo jurídico, fato não raro na governança de outros países. Além do mais, a Justiça Eleitoral brasileira não conta com um corpo decisório permanente e exclusivo. Os juízes e/ou ministros que assumem funções na Justiça Eleitoral dividem seu tempo com suas atividades judiciais originais.


É constitucionalizado porque a última instância da Justiça Eleitoral – o TSE – é composta por uma “regra de intersecção” com a Corte Constitucional – o STF. O TSE é composto por sete membros: três ministros do STF, dois ministros do STJ e dois cidadãos com notório saber jurídico e idoneidade moral indicados pelo STF e selecionados pelo presidente da República. Além do mais, a presidência do TSE é de prerrogativa exclusiva de um ministro vindo do STF. A predominância institucional do STF sobre o TSE é flagrante – ainda mais quando consideramos que o ministro que decide no TSE continua a decidir simultaneamente no STF. Por fim, a Lei da Ficha Limpa pode amplificar estas características da governança eleitoral em sentido duplo. Por um lado, ao criar mais critérios legais para definir a inelegibilidade, aumenta as oportunidades para os Organismos Eleitorais interferirem no jogo competitivo. Por outro, pode ampliar a busca pela arena judicial como estratégia para a competição política. Afinal, uma decisão judicial pode minar uma candidatura, ainda que no ponto futuro decida-se pela sua inocência. De qualquer maneira, a Lei da Ficha Limpa amplia as possíveis vias para a judicialização da competição política no Brasil, seja porque pode aumentar a demanda pela Justiça Eleitoral, seja porque coloca a decisão judicial colegiada em um patamar estratégico para definir as oportunidades e as condições em que se jogará o jogo eleitoral.


A moralização da política, enfim, se traduziu em mais oportunidades para a sua judicialização. Se serão positivos ou negativos os efeitos destas mudanças para a consolidação de nossa democracia é o que ainda não temos condições de afirmar.


Bibliografia


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VITOR MARCHETTI é doutor em Ciências Sociais: Política pela PUC-SP e professor adjunto de Políticas Públicas na Universidade Federal do ABC (UFABC).
Seus trabalhos mais recentes têm focado a questão da governança eleitoral e o papel que as instituições judiciais têm assumido nas relações político-partidárias. E-mail: vitor.marchetti@ufabc.edu.br


É doutor em Ciências Sociais: Política pela puc-sp e professor adjunto de Políticas Públicas na Universidade Federal do abc (ufabc). Seus trabalhos mais recentes têm focado a questão da governança eleitoral e o papel que as instituições judiciais têm assumido nas relações político-partidárias. E-mail: vitor.marchetti@ufabc.edu.br

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