Por Que e Como os Bancos Multilaterais de Desenvolvimento Podem Ajudar
Para além dos impactos sanitários, a pandemia da Covid-19 também tem tido impactos econômicos extensos, profundos e sem precedentes. Os desafios da crise de emergência sanitária já estão mapeados, com necessidades de equipamentos médicos e hospitalares, testes, novos leitos, equipes especializadas, dentre outros. Do lado econômico, os desafios emergenciais envolvem recursos de apoio à liquidez das empresas e dos mercados financeiros, apoio para governos locais e para trabalhadores que perderam empregos, apoio para trabalhadores por conta própria cujas rendas contraíram, dentre outros. Esta é a realidade de praticamente todas as regiões afetadas e, também, a da América Latina.
Porém, a crise econômica associada à pandemia chegou num momento já bastante delicado para a nossa região, que já enfrentava desaceleração econômica, queda das exportações, aumento da informalidade, da pobreza e da desigualdade, crises fiscais e perspectivas de crescimento econômico modesto. Este também é o caso do Brasil. Em dezembro de 2019, a Cepal projetava crescimento de 1,3% para a região em 2020; hoje, estimativas de fontes distintas apontam contração entre 5% e 7,5%. Para o Brasil, estima-se contração de 8%. As consequências para o PIB per capita da região poderão, portanto, ser devastadoras.
Ainda que os custos econômicos e fiscais das medidas de emergência sejam muito elevados, parece cada vez mais provável que os custos da fase de recuperação da economia possam ser ainda maiores. Isto porque há crescente consenso de que a retomada econômica por aqui não será em “V”. Há, isto sim, crescente consenso de que a trajetória da recuperação será caracterizada por algo semelhante ao logotipo da Nike, ou seja, uma forte queda da atividade econômica acompanhada por lenta recuperação.
As causas da lenta recuperação seriam muitas, incluindo debilidades econômicas pretéritas à crise, deterioração das condições fiscais com poucos espaços para novas ações públicas, destruição de ativos produtivos tangíveis e intangíveis, queda da produtividade, provável forte elevação do desemprego estrutural e da informalidade, preços deprimidos das commodities, crescente protecionismo em nível global, baixas taxas de poupança e de investimento e incertezas políticas.
A quarentena provavelmente cobrará o seu preço na fase de recuperação em razão dos seus impactos nas cadeias de produção e de pagamentos, nos sistemas logísticos, na provisão e manutenção de serviços públicos essenciais, na manutenção de infraestruturas e investimentos críticos, nos serviços públicos administrativos, dentre tantos outros serviços necessários para o pleno funcionamento dos sistemas econômicos e dos mercados. Também parece razoável assumir que a fase de recuperação poderá ser caracterizada por uma espécie de “congestionamento” de necessidades simultâneas e complexas, com poucos espaços de tempo para sequenciamento de ações e de reformas. De outra forma, os gestores de política econômica estão sendo confrontados com desafios sem precedentes e estão tendo que “aprender fazendo”.
Reformas estruturais, instrumentos de estímulo cuidadosamente desenhados e calibrados e focados em áreas de mais alto impacto na economia real, recursos humanos capacitados, capacidade de execução, capacidade de gestão e de coordenação e alinhamento dos atores envolvidos estão entre os requerimentos necessários não apenas para que a recuperação seja abreviada e bem-sucedida, mas para que possa ser aproveitada como oportunidade para a promoção de ajustes e reformas que contribuam para aumentar a resiliência da economia, a produtividade, a competitividade e o emprego formal de forma sustentada.
Em vista das novas tendências globais, dever-se-ia aproveitar a fase de recuperação para realçar esforços em ao menos quatro direções: primeiro, reformar as regras fiscais com a orientação de proteger o investimento público como variável fundamental para reduzir a desigualdade e aumentar a eficiência; segundo, enfrentar de uma vez por todas os desafios de alcançar uma integração regional pragmática com base em corredores logísticos e cadeias de valor; terceiro, enfrentar o desafio de fechar o fosso digital em nossos países que, infelizmente, continua a se expandir e; em quarto lugar, buscar um novo pacto social que reduza as altas desigualdades na distribuição de renda, reconhecendo, ao mesmo tempo, a necessidade de formalizar economias e promover investimentos e o trabalho.
Num contexto de forte pressão por resultados, os gestores de políticas econômicas poderão se beneficiar do apoio de distintas instituições técnicas especializadas, ali incluídos antigos aliados: os Bancos Multilaterais de Desenvolvimento (BMD). Esta nota tem como objetivo discutir brevemente por que e como os BMD podem colaborar para a fase de recuperação, com ênfase em temas do setor privado.
Por que os BMD podem ajudar?
Os BMD estão preparados para adotar ações coordenadas com governos e apoiá-los na mitigação dos efeitos da pandemia e nos programas de recuperação econômica. De fato, os BMD estão bem posicionados para aquelas tarefas, e razões para isto não faltam. Primeiro, os BMDs são conhecidos pela sua elevada governança interna, reputação, capacidade técnica e neutralidade política.
Segundo, a solidez e a prudência na gestão fiduciária e de riscos e o status de credores preferenciais permitem que os bancos tenham acesso a funding a custos relativamente baixos, o que lhes permite transferir aquele benefício para as suas operações.
Terceiro, os BMD normalmente oferecem uma gama de instrumentos e soluções com condições atraentes e prazos longos, bem como têm apetite a risco para apoiar e fomentar operações que, de outra forma, teriam mais dificuldades para serem financiadas – ali incluem-se projetos com elevado impacto social e econômico, como as infraestruturas. Da mesma forma, apoiam projetos de clientes com menor acesso a mercado de crédito, como instituições microfinanceiras e empresas públicas de governos subnacionais.
Quarto, os BMD funcionam como catalisadores de recursos de terceiros, com amplo histórico de atração de outros bancos, fundos de pensão, fundos soberanos e outros para financiar infraestruturas e outros projetos.
Quinto, os BMD têm reconhecida capacidade de articulação de atores relevantes, públicos, privados, academia e terceiro setor, o que pode contribuir para o desenho de soluções, colaborações e parcerias para o enfrentamento de crises.
Sexto, os BMD têm quadros funcionais altamente capacitados e experientes e com grande conhecimento do terreno, o que contribui de forma decisiva para que possam dar respostas adequadas e prontas às distintas realidades e necessidades, lançando mão de instrumentos e soluções financeiras e não financeiras inovadoras ou já testadas e comprovadas em outros países.
Sétimo, os BMD têm equipes especializadas em áreas pertinentes à recuperação da economia, incluindo assessoramento e estruturação financeira, cooperação técnica especializada e apoio na estruturação de projetos.
Esses atributos posicionam os BMD como aliados naturais na fase de recuperação da crise econômica da Covid-19.
Como os BMD podem ajudar?
Em resposta aos primeiros impactos da Covid-19, foram levadas a cabo uma série de iniciativas, públicas e privadas, que visaram mitigar os seus impactos sanitários e nas economias. Do lado público, apesar das restrições orçamentárias, foram tomadas, e ainda estão sendo implementadas, medidas tanto em nível fiscal como monetário para prover liquidez e evitar dificuldades e falências nos sistemas produtivos. Do lado privado, as empresas têm feito enormes esforços de adaptação e adequação ao novo cenário e estão adotando de forma acelerada novas práticas operacionais, de gestão e tecnológicas.
Os BMD, por sua vez, estruturaram programas para apoiar os países membros e clientes privados na fase mais aguda da pandemia; agora, estão trabalhando para apoiá-los na fase de recuperação. De fato, os bancos mobilizaram vultosos recursos e os colocaram à disposição dos governos em operações de avaliação e desembolso rápidos a taxas atrativas.
O Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), por exemplo, aprovou linhas de crédito emergencial de apoio orçamentário e operações de rápido desembolso que somaram quase US$ 4 bilhões, além da aprovação de fundos não reembolsáveis. Outros BMD também avançaram com ações importantes e, dentre eles, o Banco Mundial comprometeu-se a disponibilizar linha emergencial de financiamento para todas as regiões em que opera, que poderá chegar a US$ 160 bilhões; o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) mobilizou US$ 3,2 bilhões e outros recursos e instrumentos para a nossa região; e o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) disponibilizou ao menos US$ 1 bilhão para o Brasil. Estima-se que o Brasil terá acesso a, ao menos, US$ 4,2 bilhões em novos recursos financeiros em operações soberanas e a outros tantos recursos em operações não soberanas para apoiar a recuperação econômica.
Vale ressaltar que aqueles recursos contam com algum grau de concessionalidade, dado que as taxas de emissões no mercado de capitais internacional subiram em razão da crise. Não obstante, embora alguns bancos também tenham sido impactados pelo aumento do prêmio de risco, não houve majoração nas condições de financiamento ou houve majorações pontuais nos casos de operações não soberanas, reforçando o papel anticíclico dos BMD.
Com o início da fase de relaxamento das medidas de confinamento e a entrada em execução de planos de reabertura da economia, faz-se, agora, necessário o planejamento de medidas e intervenções específicas de apoio à recuperação econômica.
Se a fase emergencial requereu providências razoavelmente bem identificadas, distintos países requererão providências de recuperação adequadas às suas realidades econômicas, sociais e mesmo locais. Uma cidade como São Paulo, por exemplo, com o seu imenso parque industrial castigado pela crise, requer medidas de reativação distintas daquelas do Rio de Janeiro, com forte influência do setor de óleo e gás, ou de Goiânia, influenciada pelo agronegócio. Mas, tão ou mais importantes que o perfil setorial são temas demográficos e de renda e a composição das empresas nacionais e locais. De fato, tamanho, estágio tecnológico, acesso a crédito, acesso a cadeias de suprimentos e serviços especializados, estágio de internacionalização, dentre outros, ajudam a determinar os contornos dos desafios e as necessidades específicas para uma recuperação econômica sustentada.
A recuperação econômica requer a identificação de medidas críticas para o restabelecimento dos mercados. Neste sentido, ao menos dois conjuntos de medidas são necessárias. De um lado, novos recursos de liquidez para apoiar sistemas financeiros dirigidos à economia real, manutenção e investimentos pontuais em infraestruturas, serviços públicos e logística. De outro lado, planejamento e capacidade de execução, revisões e reformas regulatórias e desenvolvimento e implementação de produtos financeiros e não financeiros para apoiar a retomada das empresas e o investimento. Mirando naqueles conjuntos de medidas, várias ações estão em fase de preparação pelos BMD e, a seguir, compartilha-se de forma não exaustiva algumas daquelas iniciativas.
A CAF está focando em ações de apoio à produtividade. Neste sentido, estruturou um programa orientado ao apoio financeiro e técnico especializado aos bancos de desenvolvimento nacionais e subnacionais. Os recursos serão destinados prioritariamente às micro, pequenas e médias empresas. Um segundo programa visa apoiar empresas microfinanceiras, visando dar-lhes melhores condições de liquidez e beneficiando, desta forma, os seus clientes finais. Com vistas a encorajar a agenda de infraestruturas, a CAF também aumentará o apoio às concessões e projetos e parcerias público privadas.
Outros BMD também estão desenvolvendo programas ambiciosos de apoio à reativação do setor privado e do investimento. O IFC – International Finance Corporation, membro do grupo Banco Mundial, disponibilizou instrumentos de investimento patrimonial e financiamento focados em suporte a indústrias críticas, como manufatura, agronegócio e serviços; suporte ao comércio exterior de pequenas e médias empresas, provendo garantias às instituições financeiras que operam com este grupo de empresas; suporte para empresas acessarem capital de giro para cumprir com suas obrigações; e suporte aos bancos locais, tanto no fornecimento de recursos financeiros, quanto com instrumento de compartilhamento de riscos para que aquelas instituições sigam financiando empresas.
O BID, através do BID-LAB, que é o laboratório de inovação do grupo para apoiar projetos inovadores e empreendimentos em estágio inicial, está articulando ferramentas e soluções para ajudar a região a suavizar os efeitos colaterais e econômicos da crise. Entre as várias inciativas, estão o mapa do ecossistema de empreendedorismo, que identifica soluções e respostas de startups e empreendedores à Covid-19 na região. Nesta mesma toada, a CAF lançou um novo fundo de apoio a startups que estão desenvolvendo inovações e soluções úteis para acelerar a transformação digital de micro, pequenas e médias empresas e soluções para melhorar a gestão e a governança pública.
Os BMD estão desenvolvendo novos estudos técnicos para brindar conhecimento e apoio ao desenho e à implementação de reformas de políticas públicas essenciais para a fase de recuperação econômica. De fato, muito tem sido produzido com visão prática e executiva em temas como garantias, microfinanças, infraestrutura, apoio a micro, pequenas e médias empresas, melhoria dos serviços públicos, transformação digital, dentre outras áreas. Também foram disponibilizadas plataformas que funcionam como repositórios de materiais para orientar o setor privado, governos e a sociedade civil no avanço da compreensão dos impactos da pandemia e de medidas de recuperação econômica, além de oferecer estudos técnicos para ajudar a projetar e implementar políticas públicas eficazes e focadas em impacto.
Por fim, os BMD também estão desenvolvendo cooperações técnicas para complementar financiamentos e elevar a qualidade e o desenho de projetos, ajustes em regulações e outras medidas, de forma a criar o entorno propício para maximizar impactos.
Em conclusão
Os desafios de mitigar os efeitos da crise da Covid-19 são enormes e sem precedentes. Os BMD são aliados de primeira hora para apoiar os governos e o setor privado nos desafios de abreviar os custos e acelerar a recuperação das economias, bem como promover um crescimento econômico mais sustentado, sustentável e harmônico.
No Brasil, os BMD estão apoiando o governo federal, governos subnacionais, bancos de desenvolvimento locais, bancos comerciais e empresas estatais e privadas com recursos financeiros e não financeiros, assistência técnica e outros esforços contribuindo, desta forma, para que a economia retorne à normalidade no mais curto período e que saia da crise mais forte e resiliente.
Por fim, a contribuição dos BMD será tão mais proveitosa quanto mais e melhor o país souber trabalhar com estas instituições, identificando áreas de interesse e formas de otimizar e potencializar os seus aportes e soluções.
JORGE ARBACHE - vice-presidente de Setor Privado do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF). MARCELO DOS SANTOS - é executivo principal da vice-presidência de Países, representação no Brasil do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF).
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