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Interesse Nacional
28 setembro 2020

Transformação ESG: O Papel das Grandes Empresas e de Cadeias Produtivas Integradas

A sigla ESG (Environment, Social and Corporate Governance) incorpora um conjunto de princípios que refletem uma governança corporativa comprometida não apenas em monitorar impactos do negócio, mas também em promover ampla preservação ambiental e desenvolvimento social. O conceito advém da ideia do Triple Bottom Line, introduzido por Elkington na década de 90, que propunha adicionar à ótica econômica de entendimento dos negócios também as dimensões ambientais e sociais. O termo ESG resultou da publicação do relatório Who Cares Wins, Connecting Financial Markets to a Changing World, uma iniciativa conjunta desenvolvida pelo Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU), juntamente com diversas instituições financeiras, nos anos 2000.
O relatório Who Cares Wins, originado do Pacto Global, não é um instrumento regulatório, um código de conduta obrigatório ou um fórum para policiar as políticas e práticas gerenciais. É uma iniciativa voluntária que fornece diretrizes para a promoção do crescimento sustentável e da cidadania por meio de lideranças corporativas comprometidas e inovadoras. Esse documento destaca o papel essencial do setor financeiro como articulador e facilitador de práticas de ESG de forma propositiva para a sociedade como um todo. Já no início de 2005, as Nações Unidas juntamente com um grupo dos maiores investidores institucionais do mundo se juntaram para desenvolver algumas premissas para balizar as atividades financeiras em prol de um desenvolvimento corporativo sustentável. Como resultado, foram desenvolvidos os Princípios para o Investimento Responsável (PRI). Os Princípios foram lançados em abril de 2006, na Bolsa de Valores de Nova York, e, desde então, o número de signatários cresceu de 100 para mais de 3.000, que representam mais de US$ 100 trilhões de ativos. De acordo com a Morningstar, até o primeiro semestre de 2020, os ingressos líquidos em fundos ESG alcançavam U$ 21 bilhões.
Apesar de o termo e o conceito ESG já circularem há algumas décadas entre acadêmicos e lideranças de vários tipos de instituições, o atual contexto de fragilidade econômica e social provocado pela pandemia da Covid-19, somado à pressão de grandes investidores internacionais fez com que novos holofotes se voltassem com intensidade ao tema.
As tendências mundiais indicam que a sustentabilidade está no foco de empresas, do mercado financeiro, dos consumidores e de muitos governos. Por exemplo, BlackRock e Storebrand anunciaram revisões significativas em seus portfólios de investimento, punindo empresas detentoras de passivos ambientais e sociais. Mesmo que esse movimento dos investidores seja polêmico, ora pela dificuldade de aferição e coerência nos critérios de exclusão de empresas do portfólio, ora porque a transição das excluídas para modelos de operação mais “verde” seja lenta e custosa (e, portanto, uma retirada abrupta de acesso ao capital também lesa o ecossistema atual), o fato é que gerou uma ampla agenda de discussão e mobilização ESG: quais dados, quais critérios, como rastrear/monitorar, como selecionar e avaliar, onde investir, etc. Movimentos assim ilustram o poder que investidores juntamente com consumidores têm de pressionar grandes empresas a modificar o modus operandi dos negócios.
Brasil poderia ser referência agroclimática
No Brasil, temos acompanhado um movimento significativo de lideranças empresariais e políticas com compromissos e demandas para reposicionar o país em um patamar de destaque em relação ao desenvolvimento ambiental e social. Pela importância estratégica na produção de alimentos e na regulação global do clima, existe um potencial subexplorado que pode, no futuro, fortalecer a posição do país como referência agroclimática. São poucos os países que podem desempenhar um papel tão estratégico na produção de alimentos com reduzida emissão de carbono e ao mesmo tempo mitigar efeitos do aquecimento global.
Há debates mais ou menos extremados sobre como a transição para modelos de negócios mais sustentáveis, em uma economia de baixo carbono, pode ocorrer. De um lado, há um gigante passivo de transição, como relatado em um recente relatório do World Economic Forum (The future of the nature and business, 2020), que afirma que o passivo ambiental acumulado no mundo até o momento ultrapassa US$ 44 trilhões. O relatório projeta custos de US$ 2,7 trilhões/ano até 2030 para transição para nova economia, o que inclui a necessidade de novas tecnologias que são críticas para 80% das novas oportunidades de negócios. Por outro lado, há outras estimativas, como do World Resource Institute Brasil (2020), que aponta para ganhos de R$ 2,8 trilhões no PIB na próxima década com economia de baixo carbono orientada às cadeias de infraestrutura inteligente, inovação industrial e agricultura sustentável. Somente na agricultura, poderia haver um incremento de R$ 19 bilhões em receitas, a restauração de 120 mil km² de pastagens degradadas e a redução em 42% das emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE). Se isso acontecer, em 10 anos, o país poderá ser mais competitivo e livre do desmatamento. A adoção de melhores práticas ESG poderá valorizar a marca Brasil no mundo e fortalecer a posição do país como potência agroclimática.
Uma economia de baixo carbono passou a ser foco não apenas da agenda ambientalista, mas de todos aqueles que lidam com mapeamento dos riscos climáticos e ambientais, uma vez que afeta significativamente setores produtivos de alto impacto econômico. Não à toa, o tema Amazônia, e o risco de devastação (caso desmatamento criminoso não seja contido), ganhou ampla evidência dado o impacto que esse bioma tem no equilíbrio climático do mundo.
A Amazônia ocupa uma área correspondente a cerca de 40% da América do Sul. A região, de densa floresta tropical, espalha-se por nove países, mas 60% de sua extensão situa-se no Brasil. Na Amazônia legal brasileira, vivem 27 milhões de pessoas. A floresta desempenha papel crucial no ciclo da água e no regime de chuvas e tem extrema importância na regulação do clima global e na mitigação do aquecimento do planeta. Segundo dados da Universidade de Maryland (EUA), lançados no Global Forest Watch, o Brasil é o país que mais perdeu área de florestas no mundo. De janeiro a dezembro de 2019, registrou a maior taxa de desmatamento anual em uma década, acumulando quase 1,4 milhão km² destruídos — o que corresponde a um terço do que foi desmatado em todo o planeta nesse período. No primeiro semestre de 2020, a conversão de vegetação nativa na Amazônia Legal foi 26% superior em relação ao mesmo período de 2019, com perda de 3 mil km². Isso representa o pior resultado do primeiro semestre nos últimos cinco anos.
No mapa mundial de produção de gases de efeito estufa (GEE), o Brasil contribui com menos de 3% das emissões globais. Isso se deve em grande parte ao uso de uma matriz energética majoritariamente advinda de fontes renováveis. Seu maior passivo ambiental, porém, está no uso indevido (desmatamento) de terras e florestas (45%) e nas atividades de agropecuária (25%). Ou seja, há muitas oportunidades para o Brasil se tornar um polo de geração de créditos de carbono. Se o país optar por expandir sua produção agropecuária livre de desmatamento, utilizando meios de produção e uso da terra mais eficientes e intensivos, poderá dar um salto em direção à sustentabilidade, produtividade e competitividade. Boas práticas atreladas à produção atraem investimentos. De acordo com relatório recente (2020) do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), créditos de carbono advindos da preservação da Amazônia poderiam render US$ 10 bilhões/ano. À medida que o mercado de crédito de carbono avance para maior regulamentação e consolidação, o setor privado brasileiro que operar na geração desses créditos poderá se beneficiar significativamente do mercado global de comercialização desses ativos. Vale destacar que há 46 países já trabalhando com algum formato de indução de mercado de carbono. Algumas grandes empresas já têm contabilizado e precificado créditos de redução de GEE em suas atividades internas e podem se tornar atores altamente relevantes para a indução desse mercado global.
Assistência técnica em projetos de redução de carbono
Nessa direção, há um grande potencial para pilotos e projetos de redução de carbono nas cadeias de suprimentos de grandes empresas. Nesses projetos, o papel da assistência técnica é altamente relevante para apoiar no desenvolvimento de mecanismos de redução e mensuração de resultados ao longo dessas cadeias. Na agropecuária, há casos bem-sucedidos de redução de carbono através da integração entre lavoura, pecuária e floresta em sistemas silvipastoris e agrossilvipastoris.
Um desses casos é o projeto Territórios Inclusivos e Sustentáveis na Amazônia realizado no assentamento rural Tuerê, em Novo Repartimento, no Pará – um dos maiores assentamentos rurais do mundo, com 170 mil hectares e mais de 3 mil famílias. Concilia floresta, cacau e pecuária. Iniciado em 2015, atualmente mais de 225 pequenas e pequenos produtores recebem assistência técnica da Solidaridad para implementar práticas de baixo carbono, como intensificação produtiva e restauração produtiva de pastagens degradadas, aliando a melhoria da produção à conservação das florestas e à geração de renda. Agricultores familiares demonstraram que recuperar áreas de pastagens degradadas pela criação extensiva de gado com o cultivo do cacau em Sistemas Agroflorestais (SAFs) é mais rentável do que desmatar para abrir novas áreas de pastagem. O aumento de produtividade e rentabilidade, ligado às práticas de baixa emissão de carbono, pode ajudar a mudar a mentalidade de outros produtores que ainda enxergam as florestas como elementos meramente passivos. O objetivo é assegurar que a criação de gado não avance sobre novas áreas florestais e que o cacau, nativo da Amazônia, converta-se em fonte de renda em sistema de produção integrado cacau/pecuária.
A técnica denominada restauração produtiva, adotada pela Solidaridad Brasil na Amazônia, é baseada em Sistemas Agroflorestais (SAFs). A escolha do SAF, tendo o cacau — espécie nativa da região — como carro-chefe, atende simultaneamente às prioridades de recomposição florestal e geração de renda. Esta união garante a sustentabilidade do processo e promove a inclusão da agricultura familiar na cadeia produtiva, na regularização ambiental e na mitigação de efeitos do aquecimento global.
Uma das chaves para a sustentabilidade deste modelo de produção ao longo do tempo é a assistência técnica de impacto oferecida pela Solidaridad, que inclui o contato constante entre técnicos e produtores, com visitas individuais; treinamento coletivo e o intercâmbio de experiências através de grupos de aprendizagem; o uso de unidades-piloto demonstrativas e o uso de ferramentas digitais, como o Extension Solution, desenvolvido pela Solidaridad. Além da gestão agrícola, a iniciativa também promove a capacitação em gestão financeira, apoio na comercialização e governança ambiental, fomentando a articulação com atores públicos e privados, especialmente para a redução do desmatamento e a regularização ambiental.
O projeto Tuerê ajudou a reduzir em 61% o desmatamento nas áreas de influência do programa, ampliou em 20% a capacidade das propriedades no sequestro de carbono e contribuiu para o incremento de 56% na renda dos pequenos produtores. Nas unidades demonstrativas de pecuária sustentável, aumentou-se a produtividade livre de desmatamento em 200%. As boas práticas aumentam a taxa de fertilidade do gado e a taxa de produtividade do cacau em 34%. Os rendimentos do cacau, por sua vez, ajudam os produtores a recuperar o investimento realizado em restauração. Enquanto o preço de um quilo de cacau no mercado normal é de quase R$ 8, o preço dos grãos de alta qualidade no mercado bean to bar (da amêndoa à barra) é de R$ 33. Esses resultados apontam que é possível aliar a produção agrícola à conservação da natureza, trazendo benefícios para os produtores, para a sociedade e para o planeta. O futuro depende da produção de alimentos que reduza a emissão de carbono, esteja em equilíbrio com a natureza e ao mesmo tempo gere prosperidade e inclusão social.
Há diversas oportunidades para o Brasil trabalhar com transição para uma economia de baixo carbono e preservação da biomassa valendo-se de assistência técnica acoplada a novos modelos de financiamento que grandes empresas podem disponibilizar para suas cadeias de valor. Mas, como isso seria possível?  Ora, grandes empresas já “financiam” suas cadeias de valor, gerindo fluxo de pagamento a fornecedores e clientes.  Se hoje o passivo circulante das empresas gera recursos da ordem de R$ 310 bilhões em gestão de fornecedores, há capital abundante aguardando para uma gestão mais orientada à mitigação de riscos sociais e ambientais. Setores com capital de giro intensivo significam uma circulação de recursos da ordem de 40% do PIB, com receitas anuais de cerca de R$ 3 trilhões. As linhas de financiamento dos grandes bancos (via risco sacado) estão voltadas ao financiamento das próprias operações das empresas, sem, contudo, aplicar um olhar de sustentabilidade à cadeia de suprimentos ou clientes. São estruturas que operam a taxas anuais que variam entre CDI + 13%-15%, dando fôlego financeiro, mas retirando rentabilidade dos fornecedores das grandes empresas. Há, portanto, oportunidade para novos mecanismos de financiamento através desses players de grande porte que reduzam o custo do capital destinado à sua cadeia de valor e, ao mesmo tempo, acoplem indicadores ESG para concessão de crédito e para redução de taxas à medida que metas ESG são alcançadas. Sem necessidade da intermediação financeira de grandes bancos, empresas podem desenvolver, com ajuda de gestoras de recursos, mais fintechs, plataformas altamente customizadas para atender a seus objetivos específicos. É “financiar” ao mesmo tempo que educa sua cadeia de valor, atraindo parceiros técnicos na assistência para novas formas sustentáveis de operação. As grandes empresas mantêm seu fluxo, mitigando riscos e fortalecendo a agenda ESG; os fornecedores melhoram sua rentabilidade e eficiência, operando de maneira mais sustentável. É tempo de as empresas considerarem, além da rentabilidade e da redução de risco do investimento, também o olhar integrado para seu ecossistema, fortalecendo o propósito e a contribuição maior que querem deixar para o planeta. A sociedade e o meio ambiente agradecem.

CAROLINA DA COSTA é sócia da Mauá Capital e Conselheira Latam da Solidaridad. RODRIGO CASTRO é diretor de País da Solidaridad Brasil.

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