08 dezembro 2021

A Palavra convence e o exemplo arrasta

O autor sobressai nova versão de um fenômeno sociohistórico presente na formação do Estado nacional desde o Império, que se imaginava superado ao longo das últimas décadas. Tal fenômeno compõe-se de três elementos que interagem e se integram, produzindo resultados, legados e percepções, evidentes a todos que compreendem o cenário político, e os distingue: a politização dos militares e das Forças Armadas; a militarização da política e da sociedade; e a ação do grupo informal, coeso, com características autoritárias e pretensões de poder político, dirigido por oficiais-generais formados durante os anos 1970, período mais duro do regime autoritário. Considerando que a geração de jovens oficiais mira seus chefes, avaliando posturas e interpretando suas decisões, o autor questiona: o que fará o tenente de hoje quando for general em 2050? Comandará uma divisão de exército ou região militar, ou chefiará uma Casa Civil ou ministério formulando e executando políticas governamentais excêntricas ao dever militar?

Há três anos, o brasileiro não discute política sem menção às Forças Armadas, aos militares e, até mesmo, à ditadura inaugurada pelo golpe de 1964, anualmente celebrados em ‘ordem do dia’ assinada pela cúpula militar, que a eles se refere como ‘marcos da democracia’. Não deveria ser assim em país que vive sob o Estado Democrático de Direito fundado pela Constituição de 1988 e entendesse as lições de sua História.

Hoje, vive-se nova versão de fenômeno sociohistórico presente na formação do Estado nacional desde o Império e que se imaginava superado ao longo das últimas décadas.

Tal fenômeno é composto de três elementos dinâmicos que interagem e se integram, produzindo resultados, legados, efeitos e percepções evidentes aos que compreendem cenários políticos além da cobertura jornalística diária ou de ‘conversas de internet’.

O primeiro elemento do fenômeno é a politização dos militares e das Forças Armadas, caracterizada pelo ativismo militar de natureza política, partidária ou não, em proporção extravagante ao mero exercício de direitos políticos individuais pelo militar.

O segundo, espécie de corolário do anterior, é a militarização da política e da sociedade, que vêm adotando práticas, códigos, semiótica e valores militares, de modo deliberado ou espontâneo, em caráter individual ou coletivo, mas sempre em medidas que vão além do contato funcional entre os ‘mundos’ civil e militar.

Como agente dinamizador de ambos os processos, dando-lhes direção, sentido e intensidade como ‘vetor’, o último elemento do fenômeno: a ação do grupo informal, coeso, hierarquizado, disciplinado, com características autoritárias e pretensões de poder político – até de natureza hegemônica –, dirigido por oficiais-generais formados durante o período mais duro do regime autoritário – os anos 1970. Embora não sejam as Forças Armadas, o ‘partido militar’ as instrumentaliza como principal referência para expressão de seu poder.

Partido militar

O emprego da designação advém da leitura de autores que utilizam a expressão ou termos similares. A observação do comportamento público e privado de inúmeros militares com os quais mantenho ou mantive contato regular também contribuiu para a formulação do conceito de ‘partido militar’, mas foi numa situação trivial que percebi a pertinência da expressão.

Certo dia, no início de 2019, após descrever a jovem tenente na ativa o posicionamento de dezenas de oficiais-generais e superiores na administração direta e indireta do governo, ouvi dele observação bastante sincera: “entendi, parece ter havido um verdadeiro aparelhamento, mas o ‘outro lado’ também fazia o mesmo quando governava”.

O jovem militar sentia-se ‘parte’ do grupo político ocupante da maioria dos cargos de primeiro escalão no Planalto, na Esplanada, nas repartições e, claro, na presidência e vice-presidência da República. Simplesmente, não lhe causava a mesma estranheza que a mim o fato de dezenas de generais e centenas de coronéis participarem de governo como se fossem dirigentes ou militantes partidários.

Talvez lhe parecesse natural porque tenha visto na Academia Militar das Agulhas Negras em 2014, por ocasião da solenidade de declaração de aspirantes, o então deputado federal Jair Bolsonaro, acompanhado de oficiais do corpo docente da academia, dirigir-se às centenas de aspirantes prontos para a última e simbólica passagem pelo ‘portão das armas’.

Num discurso claramente político-eleitoral, impróprio para um quartel, o capitão da reserva praticamente lançou sua candidatura presidencial, transmitindo linha ideológica de seu programa e vaticinando que muitos iriam “morrer pelo caminho” (sic) na sua intenção de “levar esse país para a direita” (sic). Ouviu-se coro entre os oficiais – “Líder, líder, líder!”. O vídeo, postado pelo próprio capitão, está disponível na Internet e pode ser acessado facilmente.

Iniciava-se ali, na celula mater da oficialidade do exército brasileiro, a criação de um ‘mito’ e de seu séquito.

Quatro anos depois, garantida a simpatia dos militares pela deliberada construção de ‘pontes’ entre as Forças Armadas e o candidato, o ‘mito’ ganhou também os votos da ‘família militar’ e de milhões de eleitores que o viam como ‘salvador da Pátria’, mesmo nunca tendo exercido cargo executivo durante sua longa e polêmica carreira política.

Famoso general na reserva, no mesmo dia do atentado sofrido pelo ‘mito’ em 2018, foi às redes sociais atribuir ao partido do principal candidato de oposição a ‘autoria’ do ato criminoso, chegando a qualificar de ‘nazista’ e ‘fascista’ (sic) o próprio candidato opositor – ‘viralizou’. Imagine-se quantos milhões de militares e civis votaram no capitão por confiar no conhecido general que, claro, acabou exercendo cargo político relevante no governo eleito.

Como entender um oficial que deixara o exército brasileiro pela ‘porta dos fundos’ em 1988, com a carreira degradada em episódios de ‘faltas à verdade’ e ‘deslealdades’ (segundo registros oficiais da instituição), ter o voto da esmagadora maioria dos militares das Forças Armadas?

‘Exemplo’ é a chave para esse entendimento – não o do capitão, mas o daquele e de dezenas de outros generais.

A presença de 14 dos 17 generais-de-exército que integravam o alto comando do exército brasileiro em 2016 no governo, em cargos políticos, é apenas uma de inúmeras situações que podem balizar o entendimento do fenômeno, a sua explicação e, principalmente, a postura que a sociedade civil, as instituições de Estado e a política podem e devem adotar diante do ‘partido militar’. Para entendê-lo, é necessário percebê-lo.

Assim como um partido político formal, apresenta características que o identificam como ‘grupo político’, ainda que não seja registrado. A informalidade e o fato de ter chegado ao poder sem rupturas políticas violentas como nas ocasiões anteriores contribui para dificultar sua percepção.

O ‘partido militar’ tampouco pode ser confundido com mera ‘ala militar’ em oposição a uma ‘ala ideológica’ no governo de capitão com general de vice. É bem mais que isso. Há dois anos e meio, o Brasil possui, de fato, um governo militar controlado por ‘partido’ que manobra os processos narrativos para ocultar a operação de seu mais evidente agente – o capitão.

Embora assuma papel central-catalisador nos processos de politização/militarização que integram o fenômeno, o presidente não é figura dirigente e deliberante no ‘partido’. A direção é composta por núcleo restrito que controla, dirige, orienta e gerencia o governo, o presidente e as próprias narrativas, sempre no sentido da facilitação do objetivo comum a todo partido: a conquista do poder (já alcançado) e sua manutenção (em processo).

 Geração 70

Generais da ‘geração 70’ reabilitaram a imagem do capitão Bolsonaro nos quartéis. Eleito o colega, ingressaram por vontade própria, em massa, na ativa e na reserva, no governo mais militarizado desde a ditadura 64-85.

É apressado e equivocado considerar camadas intermediárias e subalternas da oficialidade ou praças como os principais ‘alvos’ ou ‘vítimas’ da ação política imprópria do presidente sobre as Forças Armadas. É improcedente e até
ficcional apontar risco dessas camadas hierárquicas, desbordando a cadeia funcional de comando, agirem para uma ruptura institucional promovida pelo capitão-presidente.

Generais e coronéis ‘politizaram’ os militares e ‘politizam’ as Forças Armadas, dessa vez, sem ‘provocações das vivandeiras’. Foram eles, não capitães, que se colocaram em profusão como protagonistas políticos dentro e fora do governo. São generais, não sargentos, que pontuam as principais crises governamentais e, até mesmo, atos de indisciplina. Mesmo que ocorresse instabilidade entre capitães, ou venha a ocorrer, seria antes por mau exemplo da alta oficialidade do que pela alegada penetração do presidente naquelas camadas. A juventude militar tem noção muito clara da disciplina e do espaço institucional que deve ocupar, por enquanto.

Também é falho argumentar que por estarem majoritariamente na reserva os militares ocupantes de cargos políticos, não ficariam caraterizados a forte associação da imagem das Forças Armadas à de governo nem o próprio processo de politização das instituições militares de Estado. Militares inativos não são como quaisquer outros profissionais aposentados, mas servidores ainda sujeitos às normas éticas estatutárias e a situações que os fazem exemplo e referência para militares na ativa, como no já citado caso do general inativo em comportamento típico de ‘cabo eleitoral’.

Há diversos oficiais na ativa nomeados para cargos políticos por ação do comando das Forças. Tal impropriedade estabeleceu perigosos precedentes para eles próprios e para seus sucessores que, certamente, ficariam no mínimo constrangidos em negar autorização para nomeação de um general na ativa se solicitado por qualquer outro presidente.

Os casos do porta-voz presidencial e dos ministros da Casa Civil, da Secretaria de Governo e da Saúde são ‘emblemas’ da insensatez que, apesar de muito clara, ainda é tratada com incompreensível indiferença pela sociedade em geral. Se tais generais na ativa – ainda mais ‘exemplos’ que os na reserva – assumiram cargos políticos, foi pelo ‘querer’ do comando da Força (e deles mesmos), já que o Decreto 8.798, de 4 de julho de 2016, no inciso XVII de seu art. 1º, determina textualmente caber a tais comandantes a “autorização de oficial para ser nomeado ou admitido para cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, inclusive da administração indireta” (sic).

As inúmeras evidências que caracterizam a existência do ‘partido militar’ podem ser apresentadas segundo categorias presentes em qualquer partido político formal e estruturado: memória histórica e vocação institucional; base ideológica; pautas corporativas e de interesse específico; direção partidária encarregada da distribuição de poder; controle do governo em direção, sentido e intensidade; quadros partidários e formação de lideranças; e base eleitoral e militante.

No livro Os Militares e a crise brasileira (Alameda, 2021, org. João Roberto Martins Filho), em capítulo de título similar ao do presente artigo, foi possível detalhar cada uma das categorias por fatos que materializam a postura e a ação do ‘partido militar’.

A politização dos militares não se confunde com mera expressão pessoal de opiniões políticas, que sempre houve, nem com a ocupação de alguns poucos cargos por militares na reserva em administrações governamentais, absolutamente normal se relacionada às funções e tarefas afins à profissão.


 Protagonismo político

A caracterização do fenômeno se dá pela postura da grande maioria dos integrantes das Forças Armadas diante do quadro político. Sob o exemplo de generais, militares parecem comportar-se como membros militantes de um verdadeiro partido político.

No estudo sobre sua recidiva, há oportunidades de aprofundamento a partir de considerações sobre origem, motivações e dinâmicas do ‘partido militar’. Além da ascensão profissional da ‘geração 70’ ao generalato a partir dos anos 2000 – e ao alto comando a partir da década seguinte –, merecem destaque cinco situações que podem balizar tentativas de estudo: as eleições presidenciais de 2010 e 2014; a Comissão Nacional da Verdade; a participação das Forças Armadas na missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti; e o excessivo emprego dos militares em Operações de Garantia da Lei e da Ordem. Em diferentes medidas, enfoques e proporções, tais eventos, integrados, explicam muito sobre o fenômeno.

O protagonismo político de militares das Forças Armadas, na ativa ou na reserva, é impróprio e arriscado. Divisões típicas do embate político podem refletir nas próprias instituições, gerando cisões internas e distúrbios que prejudicam o cumprimento das missões constitucionais. Não se resolvem ‘polarizações’, próprias da legítima luta política, aderindo-se a um dos polos nem agindo fora das atribuições institucionais. Ademais, o Estado confere arcabouço legal-institucional para o poder (político) civil – responsável pela supervisão do ‘poder militar’ – encaminhar soluções às crises conjunturais e aos graves problemas estruturais brasileiros. Também não há nenhum cabimento em interpretações superficiais ou equivocadas do texto constitucional para referir-se, por exemplo, a ‘poder moderador’ das Forças Armadas.

Se a sociedade identifica militares na direção política de um país, é possível que eventuais insatisfações com o governo e desaprovação popular possam comprometer o que é fundamental para as Forças Armadas de qualquer nação – a confiança e o respeito da sociedade independentemente de partidos políticos, crenças religiosas, visões ideológicas ou classes sociais.

Governar, constituir bases políticas, articular-se com parlamentos e governadores, tudo isso é problema do presidente, não dos militares e muito menos das Forças Armadas. O chefe de Estado-governo necessita de políticos para superar crises e implementar ações públicas, não de militares para lutar uma guerra ou de generais para comandar tropas em batalhas. Ao menos em tempo de paz.

É necessário reconhecer que as Forças Armadas empreenderam sensato, prudente e seguro movimento de afastamento da política e de governos ocupando os espaços institucionais que dão sentido à missão, onde os militares devem e querem ser valorizados e admirados pela sociedade a qual pertencem e servem.
Foram as lideranças que ‘arrastaram’ as Forças Armadas da política para o ‘quartel – pelo ‘exemplo’.

Entretanto, é preciso reconhecer, que algo vem mudando. Hoje, não é difícil perceber que militares voltaram a movimentar-se na direção da política e de governos, o que compromete a prática dos fundamentos das Forças Armadas de países livres e democráticos como o Brasil: neutralidade política; imparcialidade ideológica; isenção funcional; apartidarismo em sentido amplo; essencial profissionalismo; e estrita constitucionalidade.

Da mesma forma que foram as lideranças, pelo exemplo, que conduziram as Forças Armadas a seu lugar devido nos últimos trinta anos, tem sido as lideranças, também pelo exemplo, que vêm ‘arrastando’ milhares de militares para
política e governos.

A geração de jovens oficiais mira seus chefes, interpretando suas decisões, avaliando suas posturas e seguindo o exemplo de suas condutas, muito mais poderoso que meras palavras.

Do que fizerem os chefes na ativa e os ex-chefes na reserva agora dependerá o que tenente de hoje estará fazendo quando for general em 2050: comandará uma divisão de exército ou uma região militar dando exemplo a seus subordinados para o cumprimento do dever ou chefiará um Ministério da Saúde ou da
Casa Civil formulando e executando políticas governamentais excêntricas ao dever militar?

Osório, patrono da cavalaria e vitorioso comandante da força terrestre durante a Guerra da Tríplice Aliança,
seguramente pode ser inspiração para as atuais lideranças.

Guiando pessoalmente seus subordinados na operação de travessia do Passo da Pátria em abril de 1866, marco inicial da fase ofensiva, como exemplo que ‘arrastou’ seus comandados à vitória no combate, o general fez questão de consignar essas palavras em sua ‘ordem do dia’: “É fácil a missão de comandar homens livres, bastar mostrar-lhes o caminho do dever”.


É oficial do Exército na reserva. No Brasil, foi oficial no Comando da 12a Brigada de Infantaria (SP); comandante do 18o Grupo de Artilharia de Campanha (MT); oficial de Estado-Maior no Exército (DF). No exterior, foi adido de Defesa e do Exército na Guatemala

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