22 dezembro 2021

Na restauração da Mata Atlântica, a regeneração do Brasil

É inegável que a retomada do crescimento econômico em todo o Brasil depende da defesa e da restauração da Mata Atlântica. Abrangendo 15% do território nacional, o bioma concentra 72% da população e 70% do PIB. Defender, conservar e restaurar este bioma, que já perdeu 88% de sua área original, não é só compromisso constitucional; é um convite irrecusável à regeneração do Brasil.

Natureza fragmentada, potencial desperdiçado

A relevância estratégica da Mata Atlântica, o mais urbanizado bioma nacional, não se limita às suas cidades e infraestrutura. Os ecossistemas em si são bens de capital provendo serviços necessários para a produção de bens – de madeiras a peixes – e suporte a processos como polinização e purificação de água . Também se beneficiam do capital natural as vidas individuais e as identidades coletivas em suas dimensões estéticas e espirituais. A identidade e o futuro do Brasil serão escritos na Mata Atlântica.

O desafio climático de mitigar emissões de gases do efeito estufa e adaptar cidades, campos e florestas às mudanças climáticas e eventos extremos é atlântico, e não apenas amazônico. As florestas de Mata Atlântica acumulam em torno de 100 a 170 toneladas de carbono por hectare e regulam a temperatura local: o calor em trecho totalmente desmatado pode ser até 4ºC maior do que em um fragmento do bioma. Eis que temos calor, seca e escassez de chuva desregulando a vida e produção nas regiões mais populosas – e economicamente competitivas – do Brasil.

Saídas sustentáveis para uma retomada verde no Brasil estão na Mata Atlântica. Nenhum outro bioma brasileiro oferece tantas oportunidades para cooperação entre governos locais. Recentes e antigas experiências de reflorestamento, inventariação de espécies e multiplicação de sementes e mudas servem de base sólida para a aceleração de soluções para desafios urgentes em cidades: preservação da biodiversidade, regulação do clima, menor emissão de carbono e sustentabilidade urbana (incluindo segurança pública).

De todos os biomas do Brasil, o da Mata Atlântica é o único que possui regime jurídico próprio. Com base na Lei 11.428 de 2006 e no Decreto de 2008, instrumentos de conservação e restauração, como os Planos Municipais de Mata Atlântica, multiplicaram-se, aproximando governos locais da sociedade civil e das ciências. Biológica, climática e politicamente diverso, o bioma é um rico patrimônio nacional ameaçado pela fragmentação.

Apenas 13% da Mata Atlântica é protegida por unidades de conservação e a maioria dos fragmentos florestais remanescentes está distribuída de maneira desigual em matas com menos de 50 hectares, 80% das quais em propriedades privadas.

Dos 1,3 milhão de km² originais de floresta, apenas 12% estão de pé. O desmatamento da Mata Atlântica ocorre em ritmo muito mais lento do que o da Amazônia, mas se soma a um histórico secular de degradação. Entre 2019 e 2020, o desmatamento correspondeu à redução por dia de impressionantes 36 campos de futebol cobertos com vegetação nativa.

Segundo a MapBiomas, 3.070 alertas de destruição da Mata Atlântica foram registrados em 2020. Desses, mais de 99% vieram de locais sem autorização para o corte das árvores. Atividades ilegais de construção civil e o espraiamento indefinido das cidades colocam em xeque-mate a Mata Atlântica e contribuem para a insegurança climática dos principais polos econômicos e agrícolas, além da perda de biodiversidade.

Ainda que os índices de desmatamento do bioma não choquem a opinião pública tanto quanto os dramáticos números da Amazônia, a fragmentada Mata Atlântica merece atenção brasileira e internacional na agenda de restauração de ecossistemas e defesa ambiental.

A ação coletiva brasileira – pública, privada, nacional e federativa – deve ganhar velocidade e ambição nesta década. A ação climática se tornou uma urgência política inadiável: a identidade histórica, cultural e o potencial econômico do Brasil estão ameaçados por políticas e posições federais erráticas.

Em abril de 2021, o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles propôs alterações na lei da Mata Atlântica. Além de permitir o desmatamento sem um parecer obrigatório do Ibama para áreas com até 150 hectares, a norma excluiria alguns tipos de vegetação nativa da obrigatoriedade de proteção. Assim como a Amazônia – e o cerrado – a integridade da Mata Atlântica não passa ilesa à desmobilização institucional promovida pelo atual governo federal.

A Mata Atlântica como passado e futuro econômico do Brasil

A Mata Atlântica se estendia originalmente do litoral do Rio Grande do Norte ao do Rio Grande do Sul, caracterizando-se por ocupar áreas com as maiores populações e PIB do País. Contribuíram para sua devastação a extração de pau-brasil, os cultivos de cana-de-açúcar e trigo, o ciclo do ouro, pecuária e, já no séc. XIX, cultivo do café e urbanização. Vê-se, portanto, o quanto o uso de seu solo – neste caso impróprio, excessivo, destrutivo – está intimamente ligado à história econômica do País.

É possível, contudo, virar essa chave e tornar a Mata Atlântica uma alavanca para um desenvolvimento econômico verde, socialmente inclusivo e climaticamente resiliente. As possibilidades econômicas incluem a venda de créditos de carbono, o pagamento por serviços ambientais (beneficiando a agricultura regenerativa de policultura) e o turismo – principalmente agroecológico e ambiental – em escala sustentável.

Além do resgate da maior biodiversidade por hectare do planeta ao passo da retomada econômica em novas bases, a restauração da Mata Atlântica é um seguro contra riscos de zoonoses. Desde 2020 a humanidade vivencia a pandemia de Covid-19, lição amarga sobre as consequências da aproximação indevida interespécies e do avanço da urbanização sobre ecossistemas tropicais.

Desde a Rio92, a vanguarda ecológica na sociedade civil e nas ciências cobra dos governos o reconhecimento da interdependência entre as agendas da biodiversidade e do clima. Na COP26, em 2022, a interrelação entre os dois maiores desafios ambientais foi ressaltada, mais do que nunca, em compromissos assumidos por governos federais e locais. Indo além da proteção de fauna e da flora marinhas e terrestres, foi traçada a inevitabilidade da proteção da biodiversidade para o alcance das metas climáticas do Acordo de Paris.

A Mata Atlântica é hotspot global para a conservação da biodiversidade, por abrigar mais de 20 mil espécies, muitas sob ameaça de extinção. Segundo estudo publicado na revista Nature, o bioma faz parte de um grupo de ecossistemas cuja restauração de 15% da sua área evitaria 60% das extinções, ao mesmo tempo em que sequestraria o equivalente a 30% do CO2 lançado na atmosfera desde o início da Revolução Industrial.

Sob a liderança do Pnuma e da FAO, a ONU deu início em 2021 à Década da Restauração de Ecossistemas. A ONU prevê que as metas de restauração, se cumpridas, poderão criar milhões de novos empregos até 2030, gerando retornos de mais de US$ 7 trilhões a cada ano, ajudando a eliminar a pobreza e a fome. O Brasil deve – e pode – liderar este esforço de desenvolvimento sustentável.

Cerca de 1,2 bilhão de pessoas dependem de florestas ou agroflorestas para geração de renda, estima o Banco Mundial. A OIT estima que florestas geram 47 milhões de empregos, dos quais 32 milhões em países em desenvolvimento. Esses grandes números ilustram o potencial das florestas como capitais naturais e como infraestrutura básica para o desenvolvimento e modernização.
Já na década de 30, o presidente americano Franklin Roosevelt priorizou a construção de novas florestas – e a defesa daquelas já maduras, exemplo de seu tio, o presidente-naturalista Ted Roosevelt – como grande programa de emprego para jovens.

O velho New Deal deve servir de inspiração para o que mais se pede na grande imprensa e nos mercados financeiros do Brasil e do mundo: um Green New Deal. O caminho para a superação da emergência climática e econômica só será transformador e sustentável se depender de estratégias e investimentos públicos, e não só dos mercados voluntários de carbono e práticas ESG.

Governos brasileiros precisam de metas ambiciosas na agenda de restauração de biomas. Em 2014, o governo federal assumiu o objetivo desafiador de restaurar 12 milhões de hectares de áreas degradadas até 2030. Este compromisso faz parte da Declaração de Florestas de Nova York (NYDF, na sigla em inglês), promovida pela ONU.

Alcançar as metas do NYDF poderia reduzir as emissões globais em quantidade equivalente às emissões anuais dos EUA. Parte deste indispensável seguro climático pode ser conquistado na Mata Atlântica – e depende da atuação de governos locais apoiados nas premissas da ciência e na mobilização da sociedade civil. Essas constituem as bases institucionais para a retomada verde construída de baixo para cima.

Fundado em 2009, o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica reúne mais de 300 ONGs, instituições de pesquisa, órgãos públicos e empresas no esforço de recuperar 15 milhões de hectares do bioma até o ano de 2050. Fundada em 1992, a Rede de ONGs da Mata Atlântica reúne importantes organizações, como o SOS Mata Atlântica, criado em 1986, e um sem-número de grupos de ativistas e cientistas que atuam em todo o bioma.

Redes de cidades despontam como base institucional para a restauração de biomas – prioridade global de grupos como Iclei e C40. Criado em 2012, após a Rio+20, o Fórum de Secretários de Meio Ambiente das Capitais Brasileiras – Fórum CB27 – tem sido o lugar do fortalecimento e da ação coordenada das secretarias de meio ambiente que representam mais de 50 milhões de brasileiros em todos os biomas.

Cresce nos governos locais e na sociedade civil brasileira a conscientização sobre a urgência na restauração de biomas como saída para crises climáticas e econômicas. No Brasil, a crença na restauração ecológica foi iniciada por pioneiros tão antigos quanto o abolicionista e naturalista José Bonifácio de Andrada. Um projeto de Brasil como “paraíso restaurável” é tecnicamente possível e historicamente embasado.

O Rio de Janeiro testemunhou o primeiro grande projeto de reflorestamento urbano de que se tem notícia. Em um mundo que ainda levaria um século para debater clima e resiliência urbana, D. Pedro II mobilizou o potencial restaurador do próprio ecossistema para combater a escassez hídrica que ameaçava o futuro da cidade. Hoje, o Rio de Janeiro, renova seu compromisso com a Mata Atlântica como caminho para retomada de seu papel estratégico de cidade berço dos mais importantes acordos internacionais sobre clima e biodiversidade.

Defesa e restauração, a estratégia do Rio de Janeiro

A Prefeitura do Rio de Janeiro tem como um de seus objetivos estratégicos restaurar e conservar suas áreas de florestas. Assim como diversos municípios, que instituíram seus próprios planos de conservação e recuperação da Mata Atlântica, o Rio de Janeiro avança com novos corredores de biodiversidade e unidades de conservação, priorizando os vetores de pressão contra os fragmentos de Mata Atlântica.

Em 2021, a Secretaria do Meio Ambiente do Rio de Janeiro deu início à implementação do Plano Diretor de Arborização Urbana, a fim de definir as diretrizes necessárias para conservação e novos plantios em ruas, praças e parques urbanos. A prioridade é plantar árvores nas zonas Oeste e Norte, áreas de menor renda, densamente habitadas e com menor proporção de verde por km2. Outro objetivo é gerar mudas para que o Rio seja capaz de suprir sua ambição de rearborização seja de morros, seja de parques urbanos.

Um dos mais bem-sucedidos programas de restauração em grandes cidades do mundo, o Refloresta Rio comemorou em 2021 seus 35 anos tendo reflorestado uma área de 3.460 hectares, o que equivale a 186 estádios do Maracanã. Esta grande área amadurece e conecta fragmentos de Mata Atlântica a partir da produção de sementes, criação de mudas e do plantio de mais de 270 espécies nativas, incluindo 63 em algum grau de ameaça de extinção.

Embora o Rio já seja reconhecido por seus cartões postais verdes, há muito o que se avançar na distribuição de serviços ecossistêmicos para as populações de menor renda e na defesa de áreas verdes em territórios ameaçados tanto por grupos criminosos e indústrias ilegais, quanto por decisões políticas insustentáveis.

Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que havia “99% de chance“ de o Grande Prêmio de Fórmula 1 ser sediado em autódromo a ser construído no Rio de Janeiro. A obra implicaria o corte de 200 mil árvores nativas de Mata Atlântica, espalhadas por quase 200 hectares repletos de biodiversidade e serviços da natureza.

Logo nos primeiros atos de sua gestão, o prefeito Eduardo Paes solicitou ao Inea, órgão ambiental estadual, o arquivamento do projeto de construção de um autódromo na Floresta do Camboatá. O assunto ganhou repercussão mundial: foram publicadas 33 reportagens sobre a notícia do arquivamento, em veículos internacionais.

A conservação do Camboatá, último grande fragmento plano de Mata Atlântica, foi consenso na Câmara dos Vereadores. Na primeira votação, o projeto de criar uma unidade de conservação foi aprovado por ampla margem: 37 a 1. O único voto contrário foi do vereador Carlos Bolsonaro. Na segunda, a decisão foi unânime: 43 a 0. Em um ano, o Camboatá deixou de ser canteiro para as obras de um autódromo e se tornou um Refúgio de Vida Silvestre.

A mobilização histórica da sociedade civil, somada à decisão rápida e contundente do governo local, mudou rapidamente o rumo desta história de desmatamento, que comprometeria ainda mais a imagem do Brasil na comunidade internacional.
A defesa da floresta é parte de uma ampla estratégia de defesa ambiental estruturada nos seguintes eixos: i) ampliação de área e racionalização da gestão de áreas protegidas; ii) reflorestamento em fragmentos maduros ameaçados pela expansão imobiliária; e iii) realização de operações especiais de retomada de áreas verdes perdidas para grupos criminosos e indústrias ilegais.

Desafios tão grandes só são superados com mensagens objetivas e decisões corajosas. Como desfecho de um trabalho minucioso por parte de técnicos da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, o prefeito Eduardo Paes decretou a criação da Área de Proteção Ambiental do Sertão Carioca, em 25 de outubro. Ao reduzir a possibilidade de ocupação num território de quase 3 mil hectares, a unidade surge como um importante instrumento de defesa de áreas brejosas dos bairros das Vargens, Recreio dos Bandeirantes e Camorim, na Zona Oeste do Rio.

Também estão no horizonte da gestão a criação de quatro grandes florestas na Zona Oeste, num corredor verde do Maciço de Gericinó à Serra de Inhoaíba, incluindo a Serra da Posse e a Floresta do Camboatá. Até 2024, serão reflorestados 380 hectares. Além de conter o risco de pressão imobiliária, a criação das florestas está associada a mais conforto térmico e à proteção de nascentes.

O maior desafio à defesa e restauração da Mata Atlântica no município do Rio é a profissionalização – e disponibilidade de capitais informais – de grupos criminosos que lucram em atividades de construção civil e gestão irregular de resíduos. Sem considerar qualquer processo de licenciamento ambiental, criminosos devastaram, entre 2017 e 2019, mais de 497 hectares (o equivalente a duas vezes o bairro da Urca) de áreas verdes só no município do Rio.

A partir de 2021, no Rio, defender áreas verdes contra a expansão ilegal se tornou missão prioritária na grande agenda de restauração da Mata Atlântica. Criada em janeiro, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, em cooperação inédita com órgãos de segurança de todas as esferas de governo, demoliu 145 construções irregulares, recuperando 285 hectares de áreas verdes em mais de 70 operações. Para os grupos ilegais, os prejuízos foram calculados em R$ 375 milhões. Para todos os cariocas, os benefícios providos pela natureza – tão rica na Mata Atlântica – superam em muito este valor.

Conclusão

O bioma da Mata Atlântica se estende por 3.429 municípios e 17 estados, e 145 milhões de habitantes se beneficiam, exploram e dependem deste ecossistema. A conservação e restauração dos fragmentos do bioma em uma floresta pujante é fundamental para a consecução dos compromissos climáticos do Brasil no cenário internacional e para a recuperação econômica e social do País. A cidade do Rio de Janeiro, cumprindo seu histórico papel de caixa de ressonância nacional, cumprindo seu destino que é o de ser vanguarda capaz de inspirar e orientar ações em todo o Brasil, há de fazer da conservação e da restauração da Mata Atlântica um norte, um objetivo a ser perseguido de forma implacável e com a determinação que sempre caracterizou e caracteriza a formulação de políticas públicas capazes de impactar, positivamente, a vida da cidade e de seus habitantes. 

É formado em Direito e Matemática Aplicada pela Fundação Getúlio Vargas. É secretário de Meio Ambiente da Cidade do Rio de Janeiro e coordenador Nacional do Fórum de Secretários de Meio Ambiente das Capitais do Brasil – CB27. Foi delegado do Brasil na COP26

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter