Poder e Riqueza do Mercado Financeiro
Desde a dissolução, nos anos 80 do século passado, do assim chamado “Consenso Keynesiano”, as reformas preconizadas pela economia de Reagan e Thatcher foram executadas de modo a remover quaisquer obstáculos à expansão dos mercados, particularmente os financeiros. Liberalizados e desregulamentados, os mercados financeiros lograram capturar os controles da economia e do Estado. Mas essa façanha não é nova.
As crises financeiras do século XIX e da primeira metade do século XX já eram interpretadas como fruto da conspiração entre banqueiros gananciosos, não raro fraudulentos, e políticos corruptos. Ainda que tais personagens tenham protagonizado episódios cruciais na construção da bolha imobiliária dos anos 2000, as recentes peripécias da finança e de suas políticas respondem a razões mais profundas.
Não há como esconder que o poder social da finança está inscrito no DNA da acumulação de riqueza no capitalismo investido em todas as suas formas. Imagino que alguns olhares ainda reconheçam no ciclo e na crise recentes os movimentos da economia capitalista ou da economia monetária da produção, como Keynes a qualificava. Nela imperam o avanço da divisão do trabalho entre grandes, médias e pequenas empresas privadas, a ampliação das relações de assalariamento em suas várias formas, o impulso à expansão ilimitada da produção à escala global e a dominância da moeda bancária produzida e reproduzida pela generalização e globalização das operações de débito-crédito.
Essa economia pode ser concebida como grande painel de balanços inter-relacionados. Observados em suas inter-relações, os balanços dos bancos, empresas, famílias, governos e setor externo registram, em cada momento, os resultados das decisões de financiamento e de gasto tomadas privadamente por cada um dos participantes do jogo do mercado. As decisões privadas de gasto apoiadas no crédito (e, portanto, no endividamento) são as variáveis independentes que determinam a criação de empregos e, portanto, a formação da renda. Assim, na medida em que o pagamento de salários e as compras entre as empresas criam o fluxo de renda agregada da economia, as operações de débito-crédito modificam a distribuição dos estoques de direitos sobre a riqueza e, portanto, a situação patrimonial dos protagonistas. Na fase ascendente do ciclo, o fluxo de lucros, a poupança das famílias e as receitas do governo cuidam de garantir o serviço e estabilidade do valor das dívidas e dos custos financeiros. As poupanças decorrentes do novo fluxo de renda constituem o funding do sistema bancário e do mercado de capitais. Estes últimos, em sua função de intermediários, promovem a validação do crédito e da liquidez (criação de moeda) “adiantados” originariamente pelos bancos para viabilizar os gastos de investimento e de consumo.
Os gastos de empresas, famílias e governo dependem das avaliações do sistema de crédito – aí compreendidos os bancos comerciais e os demais intermediários financeiros. A efetivação do gasto gera um rastro de direitos de propriedade e de títulos de dívida, estoques de riqueza mobiliária avaliados diariamente em mercados organizados. Os cuidados típicos da era keynesiana, da “repressão financeira”, estavam voltados sobretudo para a atenuação da instabilidade dos mercados de negociação destes títulos representativos de direitos sobre a riqueza e a renda.
Grandes negócios e política
Tratava-se de evitar ciclos de valorização excessiva e desvalorizações catastróficas dos estoques da riqueza já existente. Ironicamente, as políticas anticíclicas da era keynesiana cumpriram o que prometiam ao sustar a recorrência de crises de “desvalorização de ativos”, mas, ao garantir o valor dos estoques da riqueza já existente, ampliaram o seu peso na composição da riqueza total e investiram os bancos e demais instituições dos mesmos poderes que exibiam no capitalismo da Belle Epoque.
Na esteira da desregulamentação, os direitos sobre a riqueza e a renda não só ganharam maior participação na riqueza total ao longo dos sucessivos ciclos de criação de valor, como passaram a integrar o patrimônio da massa de pequenos e médios poupadores, agora incluídos no rol dos beneficiários da valorização dos estoques de riqueza financeira.
A dominância dos Mercados da Riqueza foi acompanhada por um intenso e criativo desenvolvimento das inovações financeiras. As técnicas de proteção mediante o uso de derivativos – associadas à intensa informatização – permitiu que se acelerasse o volume de transações e, ao mesmo tempo, tornou os mercados mais sensíveis à busca de liquidez por parte dos investidores. Essas características, combinadas com a expansão das relações de débito-crédito entre as próprias instituições financeiras, explicam o enorme potencial de realimentação dos processos altistas (formação de bolhas), assim como a ampliação das oportunidades de ganhos patrimoniais mediante fusões e aquisições. Os fundos de pensão, fundos mútuos e fundos de hedge são criaturas dos conglomerados bancários. Operando em várias praças, essas megainstituições usam intensamente a alavancagem para concentrar em suas mãos grandes massas de riqueza financeira.
A “impotência política” dos governos tem origem na ocupação do Estado e de seus órgãos de regulação pelas tropas da finança e dos graúdos interesses corporativos. Nos anos 1990, sob a forte e notória influência dos lobistas das grandes instituições financeiras, o Congresso americano acelerou as reformas da legislação para abrir caminho às práticas agressivamente “inovadoras” dos mercados. A lei Gramm-Leach-Bliley foi aprovada no governo Clinton, com as bênçãos dos economistas ligados ao Partido Democrata. Ela permitiu a criação dos supermercados financeiros, grandes demais para falir, protagonistas maiores da crise iniciada em 2007. Enquanto secretário do Tesouro de Clinton, Lawrence Summers trabalhou intensamente para a aprovação no Congresso dos Estados Unidos do Gramm-Leach-Bliley Act. Como é de conhecimento geral, a nova lei derrogou a legislação dos anos 1930, o Glass-Steagal Act que separava os bancos de depósito, os bancos de investimento, seguradoras e instituições voltadas para o financiamento imobiliário e “fundeadas” na poupança das famílias.
Robert Kaizer, no livro So Damn Much Money listou 188 ex-congresistas registrados oficialmente como lobistas em Washington. A pesquisa de Kaizer revela como funciona a porta giratória entre os grandes negócios e a política. Estudo realizado por um grupo de advogados que se associam no Public Citizen, flagrou na nobre ocupação de lobistas metade dos senadores e 42% dos deputados que deixaram o Congresso entre 1998 e 2004.
No período 1998-2011, o setor financeiro gastou US 84,5 bilhões com essa turma. Não escasseiam relatórios oficiais, depoimentos, documentários e livros de gente oriunda dos mercados a respeito da invasão da Haute Finance na cidadela da política e das políticas. A revista Business and Politics estampada no site Berkeley Eletronic Press publicou um artigo sobre os retornos excepcionais auferidos pelos portfólios de ações adquiridos por deputados americanos entre 1985 e 2001. Os pesquisadores – Alan Ziobrowski, James Boyd, Ping Cheng e Brigitte Ziobrowski – já haviam investigado o desempenho dos rendimentos incorridos nos portfólios de ações adquiridos pelos senadores entre 1993 e 1998.
Elaborado com o cuidado e o rigor exigidos por tal empreitada, o estudo avalia a evolução dos rendimentos dos parlamentares ao longo do tempo-calendário e conclui que as ações adquiridas pelos membros da Câmara dos Deputados (House of Representatives) auferiram retornos “anormais” estatisticamente significantes. Os ganhos dos deputados com suas carteiras de ações bateram a evolução dos índices do mercado em torno de 6% ao ano. Os rendimentos anormais obtidos pelos deputados foram, no entanto, substancialmente menores do que os auferidos pelos senadores, considerados os mesmos períodos. Os autores do estudo supõem que o diferencial de rendimentos deva ser atribuído “à menor influência e poder dos deputados”. Seja como for, o estudo encontrou “fortes evidências de que membros da Câmara de Deputados têm acesso a algum tipo de informação não disponível publicamente, utilizada para obter vantagem pessoal”.
Ziobrowski e Cia, para definir “retornos anormais, adotam a Hipótese dos Mercados Eficientes, que afirma a impossibilidade da realização de estratégias “ganhadoras”, acima da média. Mas a experiência demonstra à saciedade que os mercados financeiros estão povoados de agentes que se valem de assimetrias de informação e de poder. Os protagonistas relevantes nestes mercados são, na verdade, os grandes bancos, os fundos mútuos e a tesouraria de empresas. Estes agentes formulam estratégias baseadas numa avaliação “convencionada” sobre o comportamento dos preços. Dotados de grande poder financeiro e de influência sobre a “opinião dos mercados”, eles são formadores de convenções, no sentido de que podem manter, exacerbar ou inverter tendências. (Suas estratégias são mimetizadas pelos investidores com menor poder e informação, ensejando a formação de bolhas altistas e de colapsos de preços).
Enquanto os parlamentares americanos ganham sistematicamente a dianteira na corrida pelos rendimentos, os trabalhadores com mais de 50 anos suportam as agruras da posteridade do crash e as dores da economia anêmica. Uma pesquisa do Public Policy Institute revela que os veteranos não têm vida fácil na América de Obama. Estão compelidos a conviver com o aumento da taxa de desemprego, as aflições de período maior na fila dos desocupados, e, derradeira desgraça, enfrentar o encolhimento das contas de poupança, as 401K, destinadas a prover sua aposentadoria.
Inovações financeiras e instabilidade
Apenas 8,9% dos entrevistados numa amostra de 5.027 homens e mulheres afirmaram uma recuperação do valor dessas aplicações para o nível anterior à crise. Dos consultados, 49,3% começam a se recuperar das perdas impostas pela crise financeira e 41,4% não se recuperaram dos prejuízos incorridos pela queda dos preços das ações e ativos tóxicos com classificação AAA e, posteriormente, pela redução dos rendimentos dos títulos de dívida pública e privada.
No relatório do Congresso produzido sob o impacto da crise econômica de 2007, um grupo de congressistas democratas conseguiu romper as barreiras dos lobistas e impor suas conclusões aos republicanos, que se recusaram a assinar o documento. O percurso em direção ao infausto desfecho é analisado mediante a narrativa de episódios esdrúxulos e de depoimentos patéticos de banqueiros, altos executivos e autoridades. A articulação entre as falas e as narrativas permite uma avaliação do papel desempenhado pelos vários fatores e protagonistas que levaram à economia global da euforia e da depressão: as inovações financeiras geradoras de instabilidade, a omissão sistemática das autoridades encarregadas de supervisionar os mercados de hipotecas e, finalmente, a farra da emissão de securities lastreadas em empréstimos imobiliários.
O episódio Ed Parker é emblemático. Parker era chefe do Departamento de Investigação de Fraudes da Ameriquest, então líder no mercado de financiamento de hipotecas. Em 2003, um mês após sua contratação, o diligente funcionário detectou fraude nos empréstimos efetuados pela companhia. Comunicou à administração superior da empresa, mas os relatórios foram ignorados. Enquanto isso, os demais departamentos queixavam-se da excessiva preocupação do chefe de investigação de fraudes com a qualidade dos empréstimos. Em 2005, Parker foi rebaixado de manager a supervisor. Em maio de 2006, recebeu um aviso, outrora chamado de “bilhete azul”.
Em 2003, o subprocurador geral de Minnessota, Prentiss Cox, pediu informações à Ameriquest sobre os empréstimos hipotecários realizados pela empresa. Recebeu dez caixas de documentos. Examinou aleatoriamente os contratos e, perplexo, observou que em quase todos eles os tomadores eram designados como “corretores de antiguidades”, um eufemismo para designar a condição de desempregados dos pretendentes ao crédito. Essas falsificações empalidecem diante da descrição do emprego de um senhor de 80 anos que só conseguia se locomover com o auxílio de um andador. Profissão? “Trabalhos Leves na Construção.”
Cox indagou-se das razões que levaram uma empresa de tal porte ao cometimento de malfeitorias. Um amigo atilado sugeriu: “olhe para cima”. Cox acordou para a “realidade”: as instituições que concediam créditos hipotecários estavam simplesmente gerando produtos para Wall Street empacotar e distribuir mundo afora.
As instituições federais bloquearam sistematicamente as tentativas de regulamentar e coibir a multiplicação de empréstimos irregulares. No pelotão de frente estavam duas autoridades federais : o Office of the Controller of the Currency (OCC), encarregado de fiscalizar os bancos comerciais nacionais – incluído o Bank of America, o Citibank e o Wachovia; e o Office of Thrift Supervision (OTS), incumbido de vigiar as instituições nacionais de poupança. Em 2001, Julie Willians, chairman do conselho do Controller of de Currency ministrou uma palestra para as autoridades estaduais. Em sua arenga, Willians advertiu os presentes que iria “aniquilar” quem insistisse na investigação das práticas das instituições nacionais de crédito.
Before Our Very Eyes. Assim é denominado o primeiro capítulo do Relatório do Congresso. Em linguagem popular, significa “Estava na Cara”. É difícil negar que ao longo dos anos de gestação da crise, os olhos – os da mídia incluídos – estiveram vendados pela trava que os hipócritas apontam na visão alheia. (Palavras de Cristo, de admirável sabedoria.). Já no caso de muitos economistas eminentes, sempre procurados para opinar, os olhos estavam travados, mas as imagens e palavras do documentário de Charles Ferguson, Inside Job, sugerem que os bolsos estavam arreganhados para a grana que escorria das façanhas da haute finance. O depoimento mais constrangedor, entre tantos de Inside Job, é prestado pelo economista Frederick Mishkin. Ex-membro do Federal Reserve, Mishkin não consegue explicar porque às vésperas do colapso dos bancos da Islândia produziu um relatório que assegurava a estabilidade do sistema financeiro do país, mediante o estipêndio de US$ 124 mil.
Ian Fletcher, autor do livro Free Trade Doesn’t Work descreve formas mais sutis de cooptação dos economistas. Tais métodos, diz ele, não frequentam o ethos de bordel, com propostas do tipo “Diga X e lhe pagarei Y”. Mas na faina de conseguir clientes, muitos economistas devem cultivar a reputação de sempre dizer aquilo que o freguês quer ouvir. “Certas ideias, como o aumento da desigualdade, problemas acarretados pelo livre-comércio devem ser evitadas. Elas não são economicamente corretas.” A mídia, em seus trabalhos de purificação da opinião pública, cuida de retirar tais “excentricidades” de circulação, assim como a polícia leva a enxovias os manifestantes de Ocupe Wall Street, uma súcia de desordeiros desatinados e desordeiras de barriga de fora.
A finança e sua lógica notabilizaram-se por sua capacidade de impor vetos às políticas macroeconômicas. Os interesses da finança subordinaram a política fiscal à sua “disciplina” e deram uma nova conformação à gestão da moeda e do crédito, agora comprometida exclusivamente com as metas de inflação, política que exclui liminarmente a hipótese de “ineficiência” dos mercados financeiros.
Desordem do sistema social
A despeito do desemprego e da desigualdade escandalosa, as ações compensatórias dos governos sofrem fortes resistências das casamatas conservadoras. A globalização, ao tornar mais livre o espaço de circulação da riqueza e da renda dos grupos privilegiados, desarticulou a velha base tributária das políticas keynesianas, nas quais prevaleciam os impostos diretos sobre a renda e a riqueza.
A ação do Estado, particularmente sua prerrogativa fiscal, é contestada pelo intenso processo de homogeneização ideológica de celebração do individualismo que se opõe a qualquer interferência no processo de diferenciação da riqueza, da renda e do consumo efetuado através do mercado capitalista. Os programas de redistribuição de renda, reparação de desequilíbrios regionais e assistência a grupos marginalizados têm encontrado forte resistência dentro das sociedades. Mais um ardil da razão: o novo individualismo construiu sua base social na grande classe média que emergiu da longa prosperidade e das políticas igualitárias que predominaram na era keynesiana.
Agora em escombros, as classes médias, sobretudo nos Estados Unidos, ziguezagueiam entre os fetiches do individualismo e as realidades do declínio social e econômico. A individualização do fracasso já não consegue ocultar o destino comum reservado aos derrotados pela desordem do sistema social. O reconhecimento da crise como um fenômeno social é inevitável. E esse reconhecimento torna-se mais disseminado quando o desemprego e a desigualdade prosperam em meio à teimosa celebração do sucesso de alguns indivíduos. Na crise, restou ao governo arcar com déficits fiscais graúdos produzidos por gastos rígidos e receitas cadentes, em meio ao esforço para manter os bancos pecadores à tona.
A conversa mole de transparência e austeridade encobriu o movimento real das relações sociais sob o império da finança desregulada. Sob o véu da racionalidade econômica esgueirava-se a mão que iria pilhar o emprego e a renda dos desavisados. Os gênios da nova finança estão dispostos a utilizar quaisquer métodos para desqualificar as resistências aos seus anseios. Imobilizaram homens e mulheres nas teias do pensamento uniformizado e repetitivo: “não há alternativa”.
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