18 outubro 2012

O Tema de Direitos Humanos nas Empresas

Introdução

Apesar de pouco discutidos, os temas de justiça e direitos humanos têm enorme repercussão para o mundo das empresas. No ambiente de livre circulação de informações em que vivemos, denúncias de assédio sexual podem trazer sérias repercussões tanto para a imagem externa da empresa quanto para o ambiente organizacional. Outras práticas menos sutis podem ser ainda mais problemáticas: recentemente, uma empresa brasileira cotada em bolsa de valores viu o preço de sua ação cair quase 10% em uma semana, em função de denúncias de trabalho escravo em uma de suas unidades operacionais.

Sem dúvida, há um entendimento generalizado de que a violação dos direitos humanos causa prejuízos materiais (por exemplo, custos trabalhistas e desvalorização das ações) e imateriais (como perda de talentos críticos e comprometimento da imagem) às empresas. Porém, como veremos em mais detalhe na próxima seção, pesquisas e diagnósticos conduzidos nos últimos anos mostram que, apesar de alguns avanços, casos de violações (como assédio e discriminação) ainda existem, e o cenário é preocupante, sobretudo porque não parece haver uma atitude ativa e coordenada das organizações brasileiras em relação ao tema.

Na prática, promover a justiça e os direitos humanos no contexto empresarial não diz respeito apenas a um imperativo moral: tais questões podem se tornar severamente problemáticas do ponto de vista do negócio, contaminando o ambiente empresarial e a imagem externa da corporação. A gestão de tais temas é complexa, pois é reflexo de uma miríade de experiências diárias derivadas da convivência entre os funcionários, das práticas hierárquicas, da interpretação das regras trabalhistas e da cultura corporativa. E, inevitavelmente, as tradições elitistas, sexistas e racistas presentes na sociedade como um todo vão se reproduzir no universo corporativo, com consequências mais ou menos problemáticas para uma dada organização, dependendo das suas práticas de gestão.

Construir práticas corporativas adequadas nesse campo é muito difícil. Devido à natureza velada com que ocorrem e são tratados, os casos mais emblemáticos só são expostos quando já não é mais possível adotar medidas preventivas. O governo, por sua vez, atua de modo punitivo e repressivo, sem políticas públicas que, de fato, orientem e auxiliem as organizações privadas na busca sistemática de melhores práticas nesse campo. Como consequência, os avanços no plano legal nem sempre se concretizam na experiência real das empresas e muitos desafios permanecem.

Nesse sentido, este artigo busca estimular o debate sobre como as organizações brasileiras podem incorporar os temas de justiça e direitos humanos à sua agenda, adotando práticas saudáveis e adequadas e mudando o panorama atual de forma significativa. Na primeira seção, apresentaremos alguns dados e diagnósticos que ilustram os principais tipos de violações encontradas no universo corporativo. Em seguida, a partir de alguns exemplos concretos, discutiremos algumas implicações destas violações para as empresas, bem como o possível impacto positivo que deriva de ações afirmativas. Para a terceira seção, propomos uma abordagem para entender mais profundamente os desafios e barreiras que impedem as empresas brasileiras de abordar o tema de forma mais sistemática. Finalmente, traremos algumas recomendações de iniciativas.

Contexto

Diagnósticos recentes trazem à tona questões concretas de violações – como assédio e discriminação –, e os resultados são alarmantes. Por exemplo, em pesquisa realizada em 2010, e divulgada pela BM&FBovespa, o Instituto Norberto Bobbio identificou que 43% dos trabalhadores de empresas médias e grandes do Rio de Janeiro e de São Paulo declararam ter sido vítimas de violações de seus direitos humanos no ambiente corporativo. Vale a pena aprofundar os resultados dessa pesquisa para compreendermos a questão na perspectiva dos trabalhadores.

Segundo esse estudo, 43% dos entrevistados narraram situações moderadas ou graves de violação dos direitos humanos no ano do levantamento. Contemplando somente as violações consideradas graves – que incluíam desde declarações explícitas de preconceitos, agressões verbais e/ou físicas, roubo e até mesmo assédio sexual –, 9% dos funcionários tinham a percepção de que teriam sido vítimas de tais abusos em seu local de trabalho no último ano.

Especificamente às atitudes discriminatórias, 11% dos respondentes disseram que em suas empresas existia discriminação contra negros, mulheres, homossexuais ou idosos, e 7% declararam ter sido vítimas diretas de preconceito. As abordagens mais discriminatórias foram registradas contra mulheres, negros e profissionais com salário inferior a R$ 3 mil.

A pesquisa também evidenciou situações de grande desconforto e mal-estar nos locais de trabalho: 38% dos entrevistados afirmavam que as opiniões dos funcionários não eram levadas em conta, 30% entendiam que parte dos chefes tratavam os subordinados de maneira desrespeitosa, 21% declararam ter presenciado situações de maus tratos, 38% disseram não entender os critérios de promoção e 44% afirmaram haver salários diferentes para a mesma função.

Em termos setoriais, a indústria foi o segmento que apresentou os melhores níveis de respeito aos direitos humanos: 84% dos respondentes da indústria acreditavam que eram tratados com consideração e 76% sentiam que suas opiniões eram levadas em conta. Já os serviços não financeiros (educação, saúde, telemarketing) apresentaram a pior avaliação em todos os quesitos, registrando os maiores índices de ocorrência de maus tratos e falta de clareza nos critérios de promoção, 25% e 46%, respectivamente. Uma possível explicação se deve ao fato de a indústria conviver com sindicatos mais fortes e atuantes, o que poderia contribuir para as empresas tratarem seus funcionários de maneira mais respeitosa. Os principais resultados desta pesquisa são detalhados na tabela 1, abaixo.

O levantamento também apontou que mais de 50% dos funcionários do setor de bancos e serviços financeiros sentiam desconforto com políticas de valorização do mérito, mencionando o pagamento de salários diferentes para quem tem o mesmo tipo de atividade, formação e tempo de casa. Conhecendo o grau de concentração e sofisticação do setor financeiro brasileiro, esses dados sugerem que, no campo das relações de trabalho, ainda persistem sérias dificuldades nessa área. Esse dado é consistente com o fato de que algumas organizações do setor estão sendo obrigadas a provisionar em seus balanços quantias muito vultosas em função de passivos trabalhistas.

Outros estudos e análises de caráter mais geral apresentam resultados semelhantes. Em julho de 2012, o Escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), no Brasil, divulgou o relatório “Perfil do Trabalho Decente no Brasil – Um Olhar sobre as Unidades da Federação”, mostrando que, apesar dos avanços nas dimensões analisadas, os desafios permanecem, como a discrepância salarial entre gêneros e raças e a permanência do trabalho forçado.

Em suma, as informações disponíveis apontam para um contexto de elevado desconforto com a questão das relações sociais no ambiente de trabalho. Por mais que uma empresa procure rigorosamente cumprir a legislação trabalhista, a sensação de bem-estar dos empregados depende também de aspectos associados ao campo da cultura e às práticas informais de relacionamento humano no âmbito das organizações, aspectos que as empresas nem sempre estão preparadas para considerar detidamente em suas estratégias organizacionais. Detalhamos esses aspectos abaixo.

TABELA 1: Indicadores sobre direitos humanos nas empresas. Proporção dos que concordam com dada afirmação, segundo porte e setor de atividade. Rio de Janeiro e São Paulo, 2010.

Impactos dos direitos humanos nas empresas

O tema de direitos humanos na perspectiva das empresas ganhou espaço na agenda internacional com a aprovação, em 2011, do relatório “Princípios Norteadores para Empresas e Direitos Humanos” pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, baseado no Protect, Respect and Remedy Framework estabelecido pelas Nações Unidas:

1. O Estado tem o dever de proteger e fazer cumprir os direitos humanos e as liberdades fundamentais;

2. As empresas têm a responsabilidade de respeitá-los;

3. Há a necessidade de ampliar o acesso a mecanismos efetivos de reparação e remediação em casos de violações.

Outro estudo denominado “How to Do Business with Respect for Human Rights: a Guidance Tool for Companies” , elaborado pela Rede do Pacto Global da Holanda, formula o argumento de que o respeito aos direitos humanos no mundo corporativo transcende uma perspectiva meramente normativa, tendo também importante significado econômico. Trata-se nessa visão de, simultaneamente, proteger os valores corporativos (a coisa certa a fazer), protegera rentabilidade da empresa (uma boa gestão de risco) e aumentar o lucro (gerar novas oportunidades de negócio). A tabela 2 na página ao lado exemplifica alguns dos impactos da adoção ou não de medidas de respeito aos direitos humanos descritos neste trabalho.

A fim de aprofundar esses aspectos, analisamos, nesta seção, exemplos recentes que ilustram algumas destas implicações, trazendo-as para uma realidade mais próxima à das empresas e estimulando uma reflexão sobre a construção de melhores práticas corporativas de gestão de direitos humanos.

a. Custos relacionados aos processos de violação dos direitos humanos

Para discutir este tema, vale a pena recorrer inicialmente à literatura de países como os Estados Unidos, onde o debate tem avançado de forma muito importante, com implicações claras tanto na esfera legal quanto para a gestão das empresas. Por exemplo, nos EUA, empresas têm começado a pagar muito caro por casos de discriminação (bias) em relação a mulheres e homens que exercem papel ativo no cuidado da família. São casos em que os trabalhadores se percebem como discriminados por darem importância a suas responsabilidades familiares, como o cuidado a crianças pequenas, o que obviamente inclui a necessidade de realizar jornadas de trabalho compatíveis com essa atividade.

Entre 1998 a 2008, o número de processos relacionados a esse tema aumentou 400%, e a taxa de sucesso desse tipo de ação nos Estados Unidos é praticamente o dobro de casos de discriminação no trabalho em geral. Não há uma estimativa clara do valor total representado por todos esses processos, mas há exemplos com cifras altíssimas. Em 2007, uma entregadora de uma indústria alimentícia ganhou US$ 2,3 milhões, porque sua gravidez a desqualificava para o trabalho na visão do seu empregador, que se negou a recolocá-la em outra função. Em um caso de ação coletiva (Velez vs. Novartis Pharmaceuticals) envolvendo discriminação sexual e discriminação por responsabilidades familiares, o pagamento passou de US$ 250 milhões. E os casos não envolvem apenas mulheres: um trabalhador da área de manutenção, que se sentiu prejudicado após tirar uma licença para cuidar dos seus pais, recebeu uma indenização de US$ 11,6 milhões.

Este não é um tema de fácil gestão no âmbito empresarial, e a realidade para as pessoas com responsabilidades familiares, em especial para mães que trabalham, é pouco animadora, conforme discutido acima: nos Estados Unidos, as mães têm 50% menos chances de serem promovidas e 79% menos chances de serem contratadas do que mulheres sem filhos. Além disso, elas seriam avaliadas de forma mais rigorosa em relação à pontualidade e desempenho – ou seja, para elas, os critérios de desempenho estariam sendo mais exigentes. À medida que mais casos chegam aos tribunais e se tornam públicos, mais e mais pessoas vão se descobrindo discriminadas por razões de responsabilidade familiar e passam a considerar este um mecanismo efetivo de remediação das violações, tornando cada vez mais elevado o impacto econômico sentido pelas organizações privadas.

Embora o ambiente corporativo americano pareça quase anedótico para muitos brasileiros, uma leitura mais atenta dos jornais e da mídia em geral rapidamente mostrará o quanto custos desta natureza já permeiam a vida das organizações no Brasil. Em palestra proferida noTribunal Superior do Trabalho em outubro de 2011 , José Pastore ressaltou a importância da prevenção de acidentes e doenças de trabalho para a vida das empresas – principalmente, claro, a partir de uma lógica de preservação da vida humana, mas também considerando o custo-benefício dessas iniciativas para as empresas, dado o altíssimo encargo que representam.

Sua estimativa é de que a despesa total para as empresas relacionadas a acidentes e doenças do trabalho chegou a aproximadamente R$ 41 bilhões em 2009, aproximadamente 5% da folha salarial do país. Além disso, os gastos da Previdência Social com o pagamento de benefícios a pessoas acidentadas e aposentadorias especiais para o ano de 2009 foram estimados em cerca de R$ 14 bilhões, sem contar ainda outros custos para a sociedade associados à redução de renda, à interrupção do emprego de familiares, entre outros fatores. Em suma, uma cifra mais do que significativa.

TABELA 2: Quadro comparativo dos impactos da adoção ou não de medidas de respeito aos direitos humanos.

Segundo matéria recente publicada pela revista Veja , 26% das pessoas que trabalham em ambientes altamente estressantes no Brasil procuraram ajuda médica por problemas fisiológicos, mentais ou emocionais. Vale notar que, via de regra, questões deste tipo podem ser associadas diretamente aos problemas que emergem no âmbito dos relacionamentos formais e informais estabelecidos entre os profissionais de uma dada organização.

A rigor, é impossível identificar no âmbito do enorme volume de ações trabalhistas existentes no Brasil quantas delas são decorrência da percepção de situações de discriminação no ambiente de trabalho. Mas, evidentemente, relações pautadas por respeito mútuo e busca permanente do entendimento interpessoal tendem a levar não apenas a uma maior produtividade e capacidade de retenção do trabalhador no longo prazo, mas também a um número menor de ações dessa natureza.

b. Oportunidades relacionadas à promoção dos direitos humanosbr />

Além de prevenir violações de direitos humanos, existem muitas oportunidades para as empresas integrarem proativamente esse tema em sua estratégia empresarial, com implicações para o crescimento saudável e sustentável do seu negócio. Uma das mais significativas delas, na nossa visão, é a capacidade de atrair e reter talentos.

Em 2010, uma pesquisa da empresa Towers Watson mostrou que 81% das organizações privadas no Brasil sentiam dificuldades em identificar talentos com habilidades críticas para o negócio , o que também foi apontado em análise desenvolvida pela Universidade de Wharton . Em linhas gerais, atrair e reter mão de obra qualificada está se tornando uma das principais barreiras para o crescimento das empresas no Brasil. Outra pesquisa recente realizada pelas consultorias Egon Zehnder e McKinsey & Company indica que talentos que possuem habilidades críticas têm impacto desproporcional no desempenho corporativo, o que significa que sua retenção é essencial para a performance de longo prazo das organizações.

Pensando no Brasil, um país em que o sistema educacional público é muito problemático, onde uma empresa poderá buscar talentos no curto prazo? Uma das principais respostas está na população feminina. As mulheres representam 60% dos universitários formados entrando hoje no mercado de trabalho no Brasil. Entre os Brics, as brasileiras são as que mais estudam. Além disso, 80% das mulheres de alta qualificação desejam posições de elevada projeção no Brasil, uma figura muito diferente da dos Estados Unidos, onde 52% almejam o mesmo. Além disso, as brasileiras mostram incrível nível de comprometimento com suas carreiras: 81% declaram adorar o seu trabalho e 58% pretendem ficar no emprego atual por três anos ou mais. Mesmo assim, os índices de discriminação são uma barreira importante: 40% das mulheres brasileiras consideram desacelerar ou abandonar a carreira por causa de bias ou discriminação.

Embora esse tipo de resposta à escassez de mão de obra qualificada seja aparentemente simples, não é fácil de implementá-lo, como vimos na seção anterior. No fundo, incorporar as mulheres efetivamente como profissionais-chave implica, em muitos casos, uma importante revisão das práticas e da cultura corporativa existentes até aqui.

Benefícios de políticas inclusivas

Em outro estudo, o Center for Work-Life Policy tentou quantificar os benefícios de políticas inclusivas para organizações. Por exemplo, no universo de discriminação por orientação sexual, os avanços foram significativos. Aproximadamente 86% das 500 maiores do mundo (segundo a revista Fortune)baniram esse tipo de discriminação, nível que era muito mais baixo em 2002 (61%) . Em particular, ter uma política de inclusão para gays pode ser bom para o negócio. Até porque esse grupo é crescentemente organizado e o mercado de consumidores gays é estimado em US$ 835 bilhões por ano nos Estados Unidos. Assim, uma empresa que valoriza a diversidade nesta dimensão acaba sendo percebida de modo diferente por esse consumidor.

Evidentemente, a questão dos direitos humanos nas empresas não se esgota nas questões de equidade de gênero, raça, orientação sexual. Estudos sobre as melhores empresas para se trabalhar mostram que temas como diversidade, inclusão, qualidade de vida, comunicação e oportunidades de crescimento ampliam a avaliação positiva das organizações na perspectiva de seus funcionários.

Em suma, o impacto desse tema para as organizações privadas não se dá apenas na perspectiva da atração e retenção de talentos, e da produtividade provinda de um ambiente saudável de trabalho. É também aspecto relevante do posicionamento de mercado destas empresas e das oportunidades de negócio que elas podem capturar ao apresentar uma imagem moderna, respeitosa e inclusiva.s

Desafios e barreiras para as empresas

Se há de fato um argumento econômico a favor do respeito e da promoção dos direitos humanos nas empresas, como buscamos evidenciar acima, o que pode ser feito para acelerar os avanços?

Em primeiro lugar, é preciso entender profundamente quais são os desafios encontrados, as ações já tomadas, as lacunas identificadas e como estes aspectos se relacionam. Tais desafios vão variar muito de acordo com a cultura corporativa e o contexto em que cada empresa está inserida.

Os guias e princípios já publicados por organizações nacionais e internacionais ajudam e muito. De fato, há relatos de boas práticas, e várias empresas já implementam iniciativas para valorizar a diversidade, promover a equidade e prevenir assédios. Porém, o impacto destas iniciativas nem sempre se traduz em avanços significativos em um contexto mais amplo, minimizado tanto pela forma fragmentada em que são normalmente conduzidas quanto pela natureza superficial das iniciativas que tentam se contrapor a uma forte e arraigada cultura de discriminação – ou ainda por não estarem inseridas internamente no contexto mais apropriado da estrutura organizacional.

Por exemplo, é comum ver práticas de respeito e promoção dos direitos humanos tratados no âmbito da responsabilidade social e não no campo das relações de trabalho, o tradicional RH. Embora exista intersecção entre estes temas, a responsabilidade social está muitas vezes voltada para o universo externo da sustentabilidade social e corporativa, porém distante da realidade dos dilemas e desafios encontrados pelos indivíduos internamente às empresas, no âmbito das suas relações interpessoais.

Precisamos também discutir se iniciativas em fase de implantação apontam, de fato, para os problemas reais. Algumas empresas, por exemplo, contam com “canais de denúncia” para casos de assédio. Como o nome diz, o canal serve para denunciar um fato já ocorrido. Neste momento, o dano está feito e utilizar o canal provavelmente implicará exposição dolorosa do denunciante. Por mais que a intenção por trás deste mecanismo seja legítima, se o processo não for cuidadosamente desenhado, ele dificilmente terá a efetividade desejada e não induzirá efeitos preventivos.

Outra questão é saber se a empresa conta com as competências para fazer uma gestão apropriada do tema. Por exemplo, dar encaminhamento adequado a uma suspeita de assédio requer neutralidade e capacidade de considerar todas as partes envolvidas, o que pode ser muito difícil em ambientes hierárquicos mais rígidos. Uma suspeita levantada não significa que a má-conduta de fato se deu, já que há muita subjetividade na interpretação dos ocorridos. Assim, o processo de diligência deve ser conduzido com discrição, empatia e tranquilidade, envolvendo a liderança, a área de Recursos Humanos e os respectivos gestores adequadamente. Na prática, grande habilidade por parte dos profissionais encarregados desse assunto e proximidade estratégica com a liderança da empresa são essenciais para a gestão efetiva de temas tão delicados e complexos.

Em linhas gerais, acreditamos que uma gestão efetiva desses temas só possa acontecer se a questão dos direitos humanos for incluída estruturalmente no âmbito da estratégia da organização, o que implica, em primeiro lugar, garantir a integração dos temas de direitos humanos à missão, visão e estratégia da empresa. O estabelecimento de políticas e mecanismos que viabilizam a execução da estratégia definida são também muito importantes. Os gestores devem também definir indicadores e acompanhar e comunicar os resultados alcançados, de modo a reforçar positivamente os benefícios associados à implementação de tais políticas. Finalmente, a capacitação da liderança da organização para a gestão desses temas e para a implementação das políticas adotadas é também um aspecto crítico.

Em suma, passada a fase de diagnóstico empreendida por diversos dos estudos mencionados nas seções anteriores, o desafio encontra-se agora em implementar políticas adequadas: ampliar o diálogo interna e externamente para permitir que os casos venham à tona enquanto são gerenciáveis; construir dentro das empresas um espaço legítimo onde se possa refletir, interagir e agir sobre os dilemas mais difíceis.

O que fazer?

A solução para as práticas de gestão dos direitos humanos nas empresas não virá do Estado. Este, é claro, tem papel importante em proteger as liberdades fundamentais, evitando abusos contra os direitos humanos cometidos por terceiros, inclusive por empresas. Mas, como argumentamos na introdução, a forma de atuação do governo é em geral punitiva, sem políticas públicas que auxiliem as organizações privadas na busca sistemática de melhores práticas. Como formulado por José Pastore e José Eduardo Gibello Pastore em artigo recente: “O princípio da dignidade humana pode justificar tudo. Quando empregados e empregadores, por negociação, fixam metas de produção para orientar a distribuição de lucros ou resultados, muitas vezes são surpreendidos com reclamações trabalhistas alegando que as referidas metas representam formas de assédio. Ações desse tipo deságuam em milionárias indenizações por dano moral. A interferência ocorre em todos os campos. Há magistrados que impõem pagamentos obrigatórios a título da participação nos lucros ou resultados, que é voluntária. […] Vai aqui um alerta. As relações do trabalho no Brasil estão sendo submetidas a duas forças de engessamento crescente: de um lado, a rigidez das leis, decretos e portarias e, de outro, a exorbitante interferência dos poderes públicos nas matérias negociadas. Isso vai na contramão da agilidade e da versatilidade que são essenciais para investir, concorrer e crescer nos dias atuais.”

Neste aspecto, acreditamos que as empresas podem assumir um papel mais proativo e assertivo. Devem assinalar para o governo e para sociedade que a preocupação das organizações privadas com o tema não é “para inglês ver”. Ao contrário, essa preocupação pode ter uma lógica endógena à organização. Afinal, os impactos das políticas afirmativas podem ser muito positivos para os negócios, além de serem justos.

Se integrarmos esse tema à realidade das empresas e disseminarmos as melhores práticas, poderemos dar um salto de qualidade, passando da fragmentação atual para uma visão sistêmica dos direitos humanos no âmbito corporativo. E as empresas que se dispuserem a tratar a questão de forma colaborativa e construtiva podem ter uma projeção pública relevante em diferentes dimensões.

Nesse sentido, defendemos a necessidade de estabelecermos um fórum de empresas líderes nesse campo que permita o avanço coletivo em diversos aspectos, incluindo: o compartilhamento de experiências; a promoção do debate público sobre o tema; a ampliação e a difusão de melhores práticas; a formação de um acervo de referências; a expansão do conhecimento sobre como lidar com situações críticas; o desenvolvimento de pesquisas e indicadores; o engajamento da liderança; o suporte à integração dos direitos humanos à estratégia e à cultura das organizações; e o treinamento e a capacitação de pessoal.
Não é um caminho fácil, pois se trata de uma agenda ambiciosa, mas extremamente necessária. Ele vai requerer uma robusta rede de apoio, disciplina e coragem para trazer à tona aspectos muitas vezes desagradáveis e delicados há muito tempo arraigados na nossa cultura. Seremos capazes de fazê-lo? Impossível saber, mas cabe às empresas brasileiras mais antenadas darem o próximo passo.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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