01 outubro 2014

A Cegueira do Debate Brasileiro sobre as Classes Sociais

O objetivo deste texto é refletir acerca das assim chamadas “classes populares” no Brasil contemporâneo. Para isso usarei como mote polêmico tanto a discussão pública acerca da assim chamada “nova classe média” quanto também as assim chamadas “jornadas de junho” de 2013. Minha tese é que o tema da produção e reprodução das classes sociais no Brasil – que poderia estruturar uma concepção verdadeiramente crítica sobre o Brasil contemporâneo – é dominado por uma leitura “economicista” e redutora da realidade social.

O objetivo deste texto é refletir acerca das assim chamadas “classes populares” no Brasil contemporâneo. Para isso usarei como mote polêmico tanto a discussão pública acerca da assim chamada “nova classe média” quanto também as assim chamadas “jornadas de junho” de 2013. Minha tese é que o tema da produção e reprodução das classes sociais no Brasil – que poderia estruturar uma concepção verdadeiramente crítica sobre o Brasil contemporâneo – é dominado por uma leitura “economicista” e redutora da realidade social. Vamos examinar, na primeira parte deste texto, a obra recente de dois dos mais festejados e reconhecidos economistas brasileiros, os professores Marcio Pochmann1 e Marcelo Néri2, para tentar comprovar nossa hipótese. O ponto talvez mais relevante de toda a pesquisa do professor Poch-mann para a nossa finalidade, aqui, é a tese de que todo o movimento positivo da pirâmide social brasileira, na primeira década do século XXI, na verdade, envolveu postos de trabalho que se encontram na base da pirâmide social. Nesta, os movimentos mais importantes indicam a criação de quase duas milhões de ocupações abertas anualmente, em média, para os trabalhadores com remuneração mensal de até 1,5 salário mínimo e de 616 mil postos de trabalho anuais, em média, para a parcela de ocupados pertencentes à faixa de rendimento entre 1,5 e 3 salários mínimos3. Na maior parte de seu estudo, Pochmann se dedica a mostrar, em detalhe, o universo ocupacional precisamente desses trabalhadores.
O trabalho de Néri, assim como o de Pochmann, é também o trabalho de um virtuoso no uso de dados estatísticos. A miríade de dados dos órgãos censitários e de pesquisa do governo são tornados compreensíveis e agrupados de modo a estabelecer relações estatísticas importantes. Afora uma diferença de “tom” não existe qualquer diferença substancial entre a análise estatística de Pochmann e a análise de Néri em seu mais recente trabalho que usaremos para fins de contraposição. Ambos, inclusive, louvam os mesmos aspectos principais deste fenômeno recente que são, para os dois, a expansão do emprego formal com carteira assinada4, o potencial de mobilidade ascendente acompanhado de inclusão no mercado de bens e consumo5 e a diminuição da abissal desigualdade brasileira6. Até os fatores causais dessa mudança são percebidos por ambos do mesmo modo, na medida em que os ganhos de salário real e o aumento real do salário mínimo, por um lado, e o sucesso do Bolsa Família e do microcrédito, por outro lado, são compreendidos como elementos decisivos.
Como a fonte dos dados para os dois é muito semelhante, muito da aparente diferença pode ser esclarecida pelo fato de Pochmann analisar o ganho individual, enquanto a família e seus rendimentos agregados são a unidade básica da análise estatística de Néri7. Afora isso, as análises de ambos possuem os mesmos pontos fortes e fracos: excelente tratamento estatístico dos dados, por um lado, e carência de qualquer força explicativa mais profunda do fenômeno analisado, por outro. A única diferença efetivamente observável é que Pochmann enfatiza o fato de que estamos falando da base, da classe trabalhadora, do “setor de baixo” da população brasileira, enquanto Néri enfatiza o caráter “mediano” e ascendente deste mesmo grupo. Ainda que o modo como denominamos os fenômenos sociais seja importante, já que a forma como eles são interpretados socialmente depende disso, não basta, no entanto, “denominar” os fenômenos sociais para compreendê-los.
Efetivamente, a construção do conceito de uma “nova classe média” por Marcelo Néri carece de qualquer reflexão aprofundada. Néri simplesmente toma o “rendimento médio” como indicador daquilo que ele chama de classe C ou “nova classe média”. Em seguida imaginando, com isso, contornar todas as dificuldades desta noção, diz que não está falando de “classe social”, supostamente para tranquilizar os “sociólogos”, mas sim de “classes econômicas”8. O conceito de “classe econômica” é absurdo de fio a pavio, já que ou pressupõe que as determinações econômicas são as únicas variáveis realmente importantes para o conceito de classe – o que eu suponho seja efetivamente o caso, ainda que o autor não tenha a coragem de admitir9 –, ou, caso contrário, deveria simplesmente se referir a “faixas de renda” e não a “classes”. Néri usa o termo “classe”, posto que, desse modo, possibilita dar a impressão que “entrega” o produto, ou seja, no caso, que sua reflexão ajuda a compreender e a prever o “comportamento prático” das pessoas, que é o que importa saber. Como “faixas de renda” não possuem essa pretensão, ele acaba cedendo ao absurdo de se pleitear “classes econômicas”, ou seja, fazendo de conta que a simples determinação das faixas de renda esclarece o comportamento prático dos indivíduos.
Economicismo da distribuição e da produção
O problema é que, apesar de sua intenção explícita, a análise de Pochmann não é fundamentalmente diferente da de Néri. Ao contrário, para além das diferenças superficiais já apontadas, Pochmann compartilha todos os fundamentos essenciais da análise de Néri. Pochmann acrescenta, em relação a Néri, um estudo mais detalhado das “ocupações” que ganharam dinamismo no último momento econômico e confere menos ênfase aos dados de consumo. Assim, poderíamos dizer, utilizando as subdivisões consagradas por Karl Marx acerca da esfera econômica, que Néri pratica um “economicismo” da “distribuição”, enquanto Pochmann pratica um “economicismo” da “produção”. Mas, o principal, o “economicismo”, ou seja, a crença explícita ou implícita, de que a variável econômica por si só esclarece toda a realidade social está presente nos dois autores e contamina todas as suas hipóteses e conclusões.
Assim, ainda que eu concorde com as críticas de Pochmann, dirigidas provavelmente ao próprio Néri na introdução do seu livro, não acho que Pochmann acrescente qualquer ponto explicativo decisivo em relação a Néri que possa pô-lo no outro polo do debate brasileiro acerca dessas questões fundamentais. Citemos o próprio Pochmann literalmente:
“Em síntese: entende-se que não se trata da emergência de uma nova classe – muito menos de uma classe média. O que há, de fato, é uma orientação alienante sem fim, orquestrada para o sequestro do debate sobre a natureza e a dinâmica das mudanças econômicas e sociais, incapaz de permitir a politização classista do fenômeno de transformação da estrutura social.”10
Assim como para Pochmann, meu interesse maior é precisamente estimular com “meios do esclarecimento científico” a “politização classista” das transformações sociais no Brasil recente. O que não acredito é que o trabalho de Pochmann – malgrado as preciosas “informações” que o tratamento sério e qualificado dos dados estatístico proporciona – tenha efetivamente contribuído de qualquer forma substancial para este desiderato. Afinal, não é simplesmente apresentando os dados – ainda que muito bem agrupados e esclarecidos – da estrutura ocupacional que se conhece e se compreende qualquer coisa relevante acerca da dinâmica das lutas de classe do Brasil contemporâneo.
Capital cultural
A onde reside a “cegueira de toda forma de economicismo”? Para mim, reside no fato de não perceber que o capital econômico não é única determinação importante da vida social. Ao contrário, sem, por exemplo, a percepção dos capitais cultural e social, o próprio capital econômico se torna incompreensível. A faceta mais importante do “capital cultural” é o fato de ele ser uma “incorporação”, literalmente, “tornar-se corpo”, de toda uma forma de se comportar e de agir no mundo, a qual é “compreendida” por todos de modo inarticulado e não refletido. O “avanço científico”, aqui, é a superação da oposição entre corpo e espírito, na qual o corpo é pensado como “matéria sem vida” e sem “espírito”, em favor de uma concepção pela qual o corpo é compreendido como um “emissor de sinais” e como prenhe de significados sociais11. É precisamente esse “avanço científico” que permite perceber o trabalho da gênese e da reprodução das classes sociais e, portanto, da produção diferencial dos seres humanos que ela constitui para além da “cegueira” da percepção unilateral e amesquinhada da determinação econômica, seja na produção seja no consumo.
Assim, uma família de “classe média”, que tem menos capital econômico que a “classe alta”, só pode assegurar a reprodução de seus privilégios – como empregos de maior prestígio e salário, seja no mercado seja no Estado – se a família possui algum capital econômico para “comprar” o “tempo livre” dos filhos, que não precisam trabalhar cedo como os filhos das classes populares, para o estudo de línguas ou de capital cultural técnico ou literário mais sofisticado. Isso mostra a importância do capital econômico mesmo para as classes que não se reproduzem majoritariamente a partir dele como as classes altas. Ao mesmo tempo, a competição social não começa na escola. Para que possamos ter tanto o “desejo” quanto a “capacidade” de absorção de conhecimento raro e sofisticado, é necessário ter tido, em casa, na socialização com os pais ou quem ocupe esse lugar, o estímulo “afetivo” – afinal, nos tornamos “seres humanos” imitando quem amamos – para, por exemplo, a “concentração” nos estudos ou a percepção da vida como “formação contínua”, na qual o que se quer ser no “futuro” é mais importante que o que se é no “presente”.
Os filhos das classes médias, com grande probabilidade, possuem esses “estímulos” emocionais e afetivos, ou seja, possuem esse “capital cultural”, o que irá garantir a sua reprodução de classe como “classe privilegiada” em dois sentidos. Em primeiro lugar, vão chegar como “vencedores” na escola e depois no mercado de trabalho e ocupar espaços que as “classes populares” – classe trabalhadora e “ralé” – não poderão alcançar. Em segundo lugar, reproduzem também a “invisibilidade” do processo social de produção de privilégios – que se realizam na privacidade dos lares – e que podem “aparecer”, posto que sua gênese é encoberta como “mérito individual” e, portanto, como “merecimento” dos filhos das classes médias. Que o “privilégio” apareça como “merecido” é a forma especificamente capitalista e moderna de legitimação da desigualdade social. A “cegueira” do economicismo é, portanto, dupla: ela é cega em relação aos aspectos decisivos que reproduzem todos os privilégios e é cega, também, em relação à falsa justificação social de todos os privilégios.
Mas, os limites do economicismo não param aí. O economicismo é incapaz até de perceber adequadamente o próprio capital econômico. A reprodução das classes altas – que têm no capital econômico seu elemento principal na luta pelos recursos sociais escassos – também depende em boa medida de outros capitais. Por exemplo, um rico sem “capital cultural” de alguma espécie – nem que seja aquela espécie de “cultura” que significa saber o vinho da hora ou qual ilha do pacífico que se deve levar a amante – não é levado a sério por seus pares. Ao “rico bronco” estão vedadas não apenas as importantes relações entre o capital econômico e o capital cultural, o qual possibilita a “naturalidade”, a “leveza”, o “charme pessoal”, tão importantes no mundo dos negócios como em qualquer outro lugar. Mas, a ele estão vedadas também as relações com uma terceira forma importante de capital – ainda que secundária em relação aos estudados anteriormente –, que é o “capital social de relações pessoais”12. É este capital que permite aquele amálgama específico entre “interesses e afetos”, tão importantes para a gênese e a reprodução de amizades, casamentos e alianças de todo tipo no interior de uma classe na qual a reprodução dos direitos de propriedade é tão decisiva.
Para além do economicismo
Como ir além da percepção limitada e superficial do capital econômico e, com isso, produzir uma percepção verdadeiramente crítica da realidade social brasileira? Esse foi precisamente o desafio a que nos propusemos nas duas pesquisas que redundaram em dois trabalhos publicados subsequentemente: um trabalho sobre os “muito precarizados” socialmente, que chamamos provocativamente de “ralé”13, e o trabalho sobre os “batalhadores”14, ou seja, os também precarizados socialmente, mas com maiores recursos e possibilidade de ascensão social. Os dois estudos representam, portanto, um esforço de compreender e responder àquela questão central – a única verdadeiramente fundamental – deixada de lado pelo economicismo, seja da produção seja do consumo: afinal, o que é que faz com que alguns ascendam e outros não?
A meu ver, o que há de novo e inédito no estudo dos desclassificados brasileiros é, antes de tudo, a percepção de que eles formam uma “classe social específica”15, com gênese, reprodução e “futuro provável” semelhante. Tanto o senso comum como a ciência dominante entre nós deixam de perceber essa classe “enquanto classe” ao fragmentá-la ao ponto de torná-la irreconhecível. Mas, é possível defini-la, seja na periferia das grandes cidades do Sudeste seja, por exemplo, no sertão do Nordeste, como a classe social reduzida a “energia muscular”, posto que não dispõe – ou não dispõe em medida significativa – das pré-condições para a “incorporação do capital cultural” indispensável no capitalismo moderno para o trabalho no mercado competitivo.
Essa classe é, portanto, “moderna” posto que formada pela incapacidade estrutural, na sua socialização familiar – sempre de classe – de dispor dos estímulos afetivos e das pré-condições psíquicas, cognitivas e emocionais que possibilitam a incorporação do “conhecimento útil” necessário à reprodução do capitalismo competitivo. Como o economicismo, arrogantemente míope, parte do indivíduo sem passado, já adulto e igual a todos e, portanto, sem classe, esta questão central sequer é percebida como relevante ainda que ela vá decidir, inclusive, que tipo de sujeito econômico será criado pelas distintas heranças de classe. O “capital cultural” é constituído por ambas as coisas: tanto as pré-condições afetivas e psíquicas para o aprendizado; quanto pelo aprendizado em si do conhecimento julgado útil. No caso da “ralé”, a carência e o abandono são tamanhos que a questão principal é a da ausência – em maior ou menor medida – dos próprios pressupostos indispensáveis ao aprendizado do papel social de “produtor útil” no contexto da economia competitiva.
É isso também que faz com que essa classe não seja passível de ser confundida com o “lumpenproletariado” marxista, o famoso “exército de reserva do capital”, posto que, no capitalismo do tempo de Marx, a quantidade de “incorporação de conhecimento” necessária ao trabalhador era mínima, tanto que até crianças podiam realizar o trabalho das tecelagens de Manchester. Com o desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo, no entanto, a incorporação crescente de conhecimento aos meios de produção exige também que quem opera as máquinas – por exemplo, os robôs da indústria automobilística moderna – também seja “perpassado” por uma certa economia emocional e por conhecimento técnico. O trabalhador moderno do setor competitivo tem que ter “incorporado”, ou seja, tornado “corpo”, reflexo automático e naturalizado, tanto a disciplina e o autocontrole necessário ao “ritmo das máquinas” como o conhecimento para sua operação bem-sucedida.
Batalhadores e ralé
É esse tipo de “incorporação de capital cultural” que caracteriza as classes trabalhadoras modernas e que reencontramos nos “batalhadores” de nossa pesquisa. A “ralé”, ao contrário – ainda que as fronteiras entre as diversas classes populares na realidade concreta sejam na maioria dos casos muito fluida –, pode ser definida, para fins analíticos, como a classe “abaixo” da classe trabalhadora, posto que caracterizada, para fins analíticos, pela ausência dos pressupostos acima definidos. Isso não significa, obviamente, que esta classe também não seja explorada. Ela o é de modo, inclusive, muito mais cruel, já que é jogada nas “franjas do mercado competitivo”, condenada a exercer todos os trabalhos mais duros, humilhantes, sujos, pesados e perigosos. As classes do privilégio exploram esse exército de pessoas disponíveis a fazer de quase tudo. Desde o motoboy que entrega pizza ao lavador de carros, ao trabalhador que carrega a mudança nas costas, à prostituta pobre que vende seu corpo para sobreviver, ou ao exército de serviçais domésticos que faz a comida e cuida dos filhos da classe média e alta que, assim, pode se dedicar a estudos ou trabalhos mais rentáveis. É este tempo “roubado” de outra classe que permite reproduzir e eternizar uma relação de exploração que condena uma classe inteira ao abandono e à humilhação, enquanto garante a reprodução no tempo das classes do privilégio16. “Luta de classes” não é apenas a “greve sindical” ou a revolução sangrenta nas ruas que todos percebem. Ela é, antes de tudo, o exercício silencioso da exploração construída e consentida socialmente.
Usamos o mesmo método no estudo da classe que chamamos de “batalhadores”. Aqui, a questão foi tentar perceber como é possível reverter o círculo vicioso de abuso sexual generalizado, instrumentalização dos mais fracos pelos mais fortes, baixa autoestima, baixa capacidade de concentração e autocontrole, etc., que caracteriza o cotidiano de muitas das famílias da “ralé”, e as condena a uma vida sem futuro e sem esperança. “Ascender socialmente” só é possível a quem logra incorporar as pré-condições que o capitalismo atual pressupõe para a crescente incorporação de distintas formas de conhecimento e de capital cultural como “porta de entrada” em qualquer de seus setores competitivos. A “fronteira” entre “ralé” e “batalhadores” – a qual é sempre fluida na realidade concreta – está situada precisamente na possibilidade da incorporação pelos batalhadores dos pressupostos para o aprendizado e o trabalho que faltam à “ralé”.
Dotar a vida de sentido
Mas, porque falta a uns o que é possível a outros nas fluidas fronteiras das classes populares? A resposta a essa questão exige o passo teó-
rico que tomamos na nossa pesquisa de criticar e complementar o esquema “utilitarista” dos capitais em Bourdieu17. As pessoas também precisam dotar sua vida de “sentido”, de onde retiram tanto a autoestima quanto o reconhecimento social para o que são e o que fazem. No estudo das classes populares essa dimensão é fundamental, porque o que se retira dos dominados socialmente não são apenas os “meios materiais”. O domínio permanente de classes sobre outras exige que as classes dominadas se vejam como “inferiores”, preguiçosas, menos capazes, menos inteligentes, menos éticas, precisamente o que reencontramos em todas as nossas entrevistas. Se o dominado socialmente não se convence de sua inferioridade não existe dominação social possível18.
Precisamente, para percebermos adequadamente a dor e o sofrimento humanos envolvidos nesta condição, nós acrescentamos – à dimensão bourdieusiana “utilitarista” da teoria dos capitais que não se reduzem ao capital econômico – a dimensão “valorativa” do que as sociedades modernas julgam ser a “boa vida”. É a noção “prática” de “boa vida” que define o que é a “virtude” e, portanto, o que perfaz um indivíduo digno de respeito ou de desprezo. Essa dimensão é implícita e não articulada, mas todos nós nos julgamos a nós mesmos e julgamos os outros baseados nela durante as 24 horas do dia. Utilizamos a reconstrução do filósofo social canadense Charles Taylor19, que mostra, como nenhum outro, a relevância dessas categorias que se tornaram “instituições” e, portanto, “prática naturalizada” e irrefletida no mundo moderno. Para Taylor, assim como para Max Weber20, julgamos socialmente uns aos outros baseados nas figuras do “produtor útil” e da “personalidade sensível”. O “efeito de distinção” produzido pela noção implícita de “personalidade sensível” foi a base do estudo mais brilhante de Bourdieu acerca das lutas de
21 classe na França .
Nos nossos estudos das classes populares brasileiras procuramos tornar operacional o conceito de “dignidade” do produtor útil. “Dignidade”, aqui, é um conceito “procedural”, e não substantivo, ou seja, ele não “é” um “valor moral específico”, mas um “conjunto de características psicossociais incorporadas praticamente” afetivas, emocionais e cognitivas, que fazem com que tanto a “autoestima” pessoal quanto o “reconhecimento” social sejam possíveis. É essa “seleção prática” que qualquer entrevista de emprego no mercado ou qualquer prova de concurso público procura fazer. É a mesma seleção que fazemos todos os dias acerca de quem apertamos a mão ou de quem evitamos até usar a mesma calçada. Essa dimensão é tão “encoberta” e “escamoteada” quanto a dimensão dos capitais não econômicos. Daí que a realidade social tenha que ser “reconstruída” de modo novo em pensamento para que faça sentido.
As classes populares não são apenas despossuídas dos capitais que pré-decidem a hierarquia social. Paira sobre as classes populares também o fantasma de sua incapacidade de “ser gente” e o estigma de ser “indigno”, drama presente em literalmente todas as entrevistas. As classes com essa “insegurança generalizada”, como a “ralé” e boa parte dos “batalhadores”, estão divididas internamente entre o “pobre honesto”, que aceita as regras do jogo que o excluem, e o “pobre delinquente”, o bandido, no caso do homem, e a prostituta, no caso da mulher. A maioria das famílias pobres convive com essa sombra e com essa ameaça, como a mãe da prostituta que a sustentava e que dizia à filha em uma discussão: “já fiz de tudo na vida, minha filha, mas puta eu nunca fui”22. Como o “estigma da indignidade” ameaça todos, vale qualquer coisa contra quem quer que seja para se conseguir um alívio momentâneo de tamanha violência simbólica.
Assim, as classes do privilégio não dispõem apenas dos capitais adequados para vencer na disputa social por recursos escassos. Elas possuem também a “crença em si mesmo”, produto de uma autoconfiança de classe, tão necessária para enfrentar todas as inevitáveis intempéries e fracassos eventuais da vida sem cair no alcoolismo e no desespero e usufruir do “reconhecimento social” dos outros como algo tão natural como quem respira. As classes populares, ao contrário, não dispõem de nenhum dos privilégios de nascimento das classes média e alta. A socialização familiar é muitas vezes disruptiva, a escola é pior e muitas vezes consegue incutir com sucesso “insegurança” na própria capacidade23, os exemplos bem-sucedidos na família são muito mais escassos, quando não inexistentes, quase todos necessitam trabalhar muito cedo e não dispõem de tempo para estudos, o alcoolismo, fruto do desespero com a vida, ou o abuso sexual sistemático são também “sobrerrepresentados” nas classes populares. Os efeitos desse ponto de partida acarretam na incorporação da tríade disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo, que está pressuposta tanto em qualquer processo de aprendizado na escola quanto em qualquer trabalho produtivo no mercado competitivo, seja parcial, incompleto ou até inexistente.
Socialização religiosa
Sem disciplina e autocontrole é impossível, por
exemplo, “concentrar-se” na escola. Daí que os membros da “ralé”, que analisamos no nosso livro anterior sobre essa classe, diziam repetidamente que “fitavam” o quadro negro por horas a fio sem aprender. Essa “virtude” não é natural, como pensa o economicismo, mas um “aprendizado de classe”. Por outro lado, sem pensamento prospectivo – ou seja, a visão de que o futuro é mais importante que o presente –, não existe sequer a possibilidade de condução racional da vida pela impossibilidade de cálculo e de planejamento da vida pela prisão no “aqui e agora”.
No contexto das classes populares, nosso estudo dos batalhadores se concentrou na determinação das fronteiras que os separam da “ralé”, por um lado, e da classe média verdadeira, por outro. Observamos, por exemplo, fontes importantes de “autoconfiança” individual e de solidariedade familiar baseada na socialização religiosa, temas negados por estudiosos conservadores24. O tipo de religiosidade pentecostal, crescentemente importante nas classes populares brasileiras, tende a ser, nos “batalhadores”, dominado pelas denominações mais “éticas” – ao contrário da “ralé”, na qual predominam as denominações mais “mágicas” do pentecostalismo – no qual a “regulação racional da vida cotidiana” e a “crença na própria capacidade” passam a ser o valor máximo25. Isso implica, nos melhores casos, a possibilidade de se conquistar tardiamente estímulos morais e afetivos que, nas classes do privilégio, é dado pelo horizonte familiar em tenra idade.
Incorporação dos pressupostos emocionais
Assim, do mesmo modo que a não incorporação familiar, escolar e social dos pressupostos de qualquer aprendizado e trabalho moderno é o que produz e reproduz a ralé, os “batalhadores” representam a fração das classes populares que lograram sair deste círculo vicioso. Como as fronteiras, aqui, são muito fluidas, isso significa que não existe “classe condenada” para sempre. Com condições políticas e econômicas favoráveis, os setores que lograram incorporar, seja por socialização religiosa tardia, seja por pertencerem a famílias comparativamente mais bem estruturadas – malgrado o ponto de partida desvantajoso comum a todas as classes populares –, a incorporação das pré-condições para o desempenho do papel social do “trabalhador útil”, podem ascender socialmente.
Além da importância inegável, para classes socialmente tão frágeis, da variável religiosa, procuramos perceber a dinâmica e os efeitos da incorporação, ainda que tardia, familiar e extrafamiliar, dos pressupostos emocionais, afetivos, morais e cognitivos para a “ação econômica racional” nas classes populares. Este é o caminho oposto de toda forma de economicismo, que simplesmente “pressupõe” e, portanto, “naturaliza” o “ator econômico universal”, escondendo a “luta de classes” que implica, precisamente, uma incorporação diferencial e seletiva desses pressupostos. A maior parte do livro, inclusive, se dedica a compreender, levando em conta as desvantagens do ponto de partida das classes populares, como se aprende, na “prática”, com erros e acertos, por exemplo, a “ser um trabalhador” ou a calcular e a administrar um pequeno negócio de um trabalhador autônomo26? Ou ainda, na dimensão mais política e social, tentar responder a questão acerca das bases da solidariedade familiar pressuposta nas pequenas unidades produtivas. Ou, ainda, de como o trabalhador formal, mas, precário, especialmente dos serviços e do comércio27, são tornados refém de uma legitimação de um novo tipo de capitalismo que se expande precisamente para essas áreas do capitalismo moderno28.
O economicismo é, portanto, cego em relação tanto à “estrutura social”, que implica a consideração de capitais que não se restringem ao econômico, como é cego em relação ao ponto verdadeiramente decisivo em relação às classes sociais: a forma “velada” e “encoberta” de como as classes sociais são produzidas e reproduzidas. Se o economicismo é incapaz de perceber a gênese e a reprodução das classes, ele é incapaz de compreender qualquer fato realmente importante em relação à dinâmica das classes sociais. Ele pode até “falar” de classes sociais, mas sua compreensão deste fenômeno tão decisivo e central difere muito pouco da forma como o senso comum (não) percebe as classes. É isso que permite que Pochmann trate apenas do mundo das ocupações e pense estar oferecendo uma análise verdadeiramente compreensiva das relações de classe no Brasil moderno. É isso que permite também Néri falar de “classes econômicas” – envolvendo apenas faixas de renda – e achar que está “interpretando” as novas relações de classe do Brasil contemporâneo.
As manifestações de junho e a cegueira política das classes
O economicismo, como narrativa social dominante, não esconde apenas as reais condições da luta de classe social e econômica entre
nós. Ela impossibilita também a percepção adequada da política. Como a dinâmica das classes e de seus interesses é permanentemente silenciada e escamoteada, a “política” aparece sempre com máscaras e com outros nomes. A opacidade da percepção das relações entre as classes no Brasil, no mundo da política, pode ser muito bem demonstrada a partir da análise das manifestações de junho de 2013. A grande fraude e a grande mentira das “jornadas de junho” são a impressão de que o “vilão” está no Estado, e a “sociedade”, engajada e politizada, é o “mocinho”. Os jornais estrangeiros falaram, então, cheios de esperança, da “primavera brasileira”, e a fraude se torna perfeita: reconhecida, aplaudida, admirada. Mas, na verdade, quem até agora ganhou e colheu frutos com a “primavera brasileira” foram as forças mais conservadoras do país. Como isto se explica? Como tantos se deixam enganar?
Para esclarecer este ponto central temos que analisar o que quase nunca chama a atenção de ninguém: a “sociedade” brasileira e seus conflitos de classe essenciais. É certo que, no início das manifestações em São Paulo e em outras capitais do Brasil, o tema da mobilidade urbana associado às demandas de melhor educação e saúde, sob a pressão de estudantes tanto da classe média quanto da periferia das capitais, dominou a pauta de reivindicações. É certo também que as manifestações se irradiaram, de modo tópico e passageiro, para favelas e para a periferia não estudantil. Nos primeiros dias, uma aliança entre estudantes e “batalhadores” da classe trabalhadora precária, que tratamos mais acima neste texto, foi a grande responsável por uma pauta de reivindicações em consonância com os interesses das classes populares.
No entanto, o dia 19 de junho – fato comprovado pelas pesquisas do Ibope feitas com os manifestantes em dimensão nacional29 – foi um ponto de inflexão fundamental que ajuda a esclarecer a força narrativa e institucional do pacto conservador brasileiro contemporâneo. Foi a partir deste dia que as manifestações se tornaram massificadas e ganharam todo o apoio da mídia nacional, assumindo a “classe média verdadeira” – os 20% mais escolarizados e de maior renda, segundo a pesquisa – de modo claro e inconteste o protagonismo do movimento.
Quem são as classes médias e o que elas querem? Essa simples questão já muda todo o horizonte dominante das questões associadas às manifestações. As classes médias são certamente segmentadas, ou seja, elas possuem grupos com interesses e ideias distintas, mas os segmentos mais numerosos e importantes das classes médias brasileiras defendem com paixão incomum um núcleo de ideias comuns. Para que possamos compreender a singularidade da “visão de mundo” da classe média brasileira, precisamos, antes de tudo, perceber o que existe de não específico nesta classe, ou seja, o que ela compartilha com todas as outras classes médias do mundo.
As classes médias são classes do privilégio no mundo todo. Como toda classe privilegiada, a classe média tem interesse em “esconder as causas do privilégio injusto”. Ao contrário da “classe dos endinheirados” acima dela, cujo prestígio se baseia no monopólio do capital econômico, o privilégio da classe média se baseia, como vimos acima, na apropriação de capital cultural altamente valorizado e indispensável para a reprodução de mercado e Estado. Este tipo de capital se materializa, por exemplo, no conhecimento oferecido nos cursos universitários de prestígio, nas pós-graduações, no conhecimento de línguas estrangeiras, etc. Mais importante ainda é perceber que o capital cultural não são apenas títulos escolares, mas, antes de tudo, o aprendizado na socialização familiar desde tenra idade de certas “disposições invisíveis para o comportamento competitivo”.
Classe média se imagina como radical, no Brasil
Essas disposições são transmitidas pelos pais aos filhos como uma “herança cultural”: ensina-se aos filhos a disposição para o autocontrole,
para a disciplina, para o pensamento prospectivo (que percebe o futuro como mais importante que o presente) ou ainda para a capacidade de concentração. Em seu conjunto, essas disposições serão o fundamento do sucesso escolar e, depois, no mercado de trabalho. Como essa transmissão é “invisível”, posto que “naturalizada” e realizada no interior dos lares, a classe média tende a se acreditar como a classe do “milagre do mérito individual”, conquistado pelo esforço, e não por privilégios de nascimento. A classe média é a classe da “meritocracia” por excelência, retirando dessa falácia sua “dignidade” específica.
Como dizia Max Weber, todas as classes dominantes em todo lugar e em todas as épocas não querem apenas usufruir os privilégios que são a base de sua felicidade. Elas querem também saber que “têm direito aos privilégios”. Assim, é necessário tornar invisível todos os privilégios de nascimento, que possibilitam, por exemplo, sua transformação no “milagre do mérito individual”. Isso acontece não só no Brasil, mas nos EUA, na França, na Alemanha. Garante-se a “boa consciência” do privilegiado, que passa a achar que tem “direito” a prestígio, reconhecimento e melhores salários e a culpar as vítimas, de um processo social que torna invisível a injustiça, por sua própria miséria e sofrimento, como se fosse possível “escolher” ser humilhado e pobre.
Mas, o mais importante para nossos fins aqui é o fato de que a dominação social no Brasil se enfeita de outros atributos que não existem em outros lugares. Aqui, afinal, é o país em que a classe média “tira onda” de revolucionária, de agente da mudança e de lutadora por um “Brasil melhor”. Nenhum europeu imagina isso de suas classes médias. As conquistas sociais das democracias europeias foram fruto das lutas das classes trabalhadoras e ninguém sensato por lá duvida disso. Mas, no Brasil, uma classe privilegiada, cujo interesse primeiro é na reprodução do mundo como ele é, adora se imaginar como “radical” e agente da mudança. É isso que é necessário esclarecer e compreender, posto que é isso que nos singulariza. É isso também que pode nos mostrar como a extraordinária vitalidade das ruas pode se transformar no reforço do que há de pior e de mais conservador no Brasil. Do mesmo modo que as classes do privilégio em todo o mundo realmente “acreditam” que seus privilégios são “merecidos”, posto que advindos supostamente de seu mérito pessoal, cada sociedade constrói também um “mito nacional” dominante, que vai ajudar a explicar, a pessoas que não são especialistas no funcionamento de uma sociedade tão complexa como a moderna, de modo simplificado, em que sociedade vivemos e quais são suas virtudes e defeitos. Toda sociedade moderna produz, portanto, um “mito”, uma espécie de “conto de fadas para adultos” que distorce a realidade tanto quanto a falácia da meritocracia para justificar a dominação social.
No Brasil, esse “conto de fadas” assume a forma da oposição mercado/Estado. Sérgio Buarque foi o primeiro a inverter o diagnóstico positivo de Gilberto Freyre acerca das virtudes da cultura brasileira, ao perceber o “brasileiro” como um tipo singular, sem pertencimento de classe – como se o brasileiro do Leblon fosse o mesmo do complexo do alemão – e chamá-lo de “homem cordial”. O “homem cordial” é emotivo e prefere os amigos à lei nesta leitura. Interessante é que Buarque vai associar o “homem cordial” ao Estado, supostamente patrimonial e corrupto, e principal obstáculo à modernização brasileira. Com Raymundo Faoro e o seus “donos do poder”, esta mesma perspectiva contrapõe de modo decidido o mercado como a “virtude” e berço da democracia, e o Estado como “vício”, sendo só entrave, berço da ineficiência e da corrupção. É esta perspectiva de Faoro que produziu o “conto de fadas” dominante do Brasil moderno. Não se compreende as ideias que dominam o imaginário social de uma sociedade sem compreender que elas são sempre, antes de tudo, ideias difusas no meio social que são articuladas por intelectuais. Para que essas ideias possam, então, conquistar as universidades, as escolas, os partidos, a mídia e ganhar espaço para exercer influência e se institucionalizar, têm que estar associadas a interesses poderosos. Nesse sentido, é interessante notar que a segunda edição do livro de Faoro foi editada em meio à luta contra a ditadura militar, quando o Estado era efetivamente, para todos, indistintamente, da direita liberal/conservadora à esquerda, o mal enquanto tal, o vício. E foi precisamente a partir dos anos 1970 que essa leitura da realidade se tornou “visão de mundo” institucionalizada, com influência em todos os partidos, universidades e imprensa, supostamente representando o interesse maior de todos, representando o “bem” enquanto tal.
Mercado “virtuoso”, Estado “corrupto”
Esse “conto de fadas para adultos”, como todo conto de fadas, infantiliza, distorce o mundo e nos faz de tolos se não temos mais cinco anos de
idade. A simples ideia da separação entre mercado e Estado é absurda. Os dois formam, afinal, um complexo único, dependente um do outro. Não existem, por exemplo, contratos válidos no mercado – e todos os atos do mercado são contratuais – sem que o Estado forneça o aparato de justiça e de repressão para obrigar o cumprimento contratual. Por outro lado, o Estado depende da produtividade do mercado para sua receita fiscal. Esses exemplos podem ser multiplicados por mil. Um não existe sem o outro. Antes de tudo, para tocar no tema central das manifestações, não existe corrupção sistemática no Estado sem que seja provocada por interesses de mercado. Aqui não existe “santinho”, nem “virtuoso”. Então, por que precisamente “escolher” mercado e Estado como os termos de nosso “conto de fadas”? Porque em sociedades que se percebem como formadas por indivíduos e não por classes – para melhor ocultar os conflitos e exploração de classes – os conflitos de classe, ainda assim, precisam ser articulados de algum modo, mesmo que de modo distorcido.
Nada mais natural que mercado e Estado constituam a “semântica possível” de uma luta de classes encoberta, já que, nas sociedades modernas, a proteção às classes dominadas tem sido historicamente tarefa do Estado, por exemplo, garantindo educação e saúde mesmo para os mais pobres. É de interesse dos “endinheirados”, no entanto, que todas as dimensões da vida social fiquem à mercê do interesse de lucro. Quando FHC dizia em seu governo que o Estado era ineficiente e, portanto, não deveria investir nas universidades públicas, as universidades privadas – todas muito mais eficientes que as públicas como todos sabemos – tiveram campo livre para expandir seus interesses. É para isso que serve o conto de fadas do mercado virtuoso e do Estado corrupto e ineficiente. Assim, pode-se concentrar quase 70% do PIB brasileiro em ganhos de capital, cuja parte do Leão vai para o bolso dos endinheirados, que perfazem menos de 1% da população, e apenas 30% para salários para a enorme maioria da população. Nas democracias europeias, por exemplo, essa relação é inversa. Para o punhado de “endinheirados” que controla mídia conservadora, parlamento e finanças nosso “conto de fadas” é caído do céu. Temos um capitalismo selvagem e concentrador, um debate público superficial e pobre como as histórias infantis, uma das sociedades mais desiguais e perversas do planeta e a raiz dos problemas brasileiros é visto em um espantalho: o Estado, supostamente só ele corrupto e ineficiente.
A classe média que foi em massas às ruas a partir do dia 19 de junho e que foi a responsável pela mudança de pauta das demandas por melhor transporte, escolas e saúde, demandas típicas das classes populares, em favor das suas demandas centralizadas nas denúncias de corrupção – sempre estatal e personalizada –, na verdade, agiu tanto como “tropa de choque” do interesse dos endinheirados, como, em parte, em interesse próprio. O tema da corrupção, lá longe em Brasília, ajuda a reproduzir também seus próprios privilégios de classe. Uma classe social, como a classe média brasileira, que explora os excluídos sociais em serviços domésticos que lhes permitem poupar tempo livre para incorporar ainda mais conhecimento e mais capital cultural para a reprodução indefinida de seus privilégios – enquanto condena os excluídos à reprodução de sua própria miséria – pode “posar” de humana, corajosa e virtuosa, ao sair às ruas para condenar sempre um “outro” que não nós mesmos. O privilégio, afinal, precisa ser justificado ou tornado invisível para se reproduzir.
Toda distorção da realidade bem-sucedida precisa criar um vínculo “afetivo” no seu público, o qual é muito mais importante que seu poder de esclarecimento. A classe média “deseja” acreditar nesse “conto de fadas”, porque ele transforma milagrosamente sua extraordinária “irresponsabilidade social” – uma classe dominante que sequer percebe as necessidades de 80% de seus compatriotas condenados a uma subvida – em “heroísmo”. Heroísmo este prontamente glorificado por uma grande imprensa que “posa” de neutra, como se fosse uma sociedade de fins públicos e não tivesse proprietários privados “endinheirados” e interessados em continuar a curtir as benesses da riqueza socialmente produzida concentrada em suas mãos.
Mas, a classe média é também vítima da “violência simbólica” que a infantiliza. Ela é heterogênea e também tem parcelas expressivas que desejariam se engajar para melhorar a sociedade brasileira e só têm – no contexto da pobreza de nosso debate público – o mesmo “conto de fadas” repetido à exaustão e em mil variações. A abissal desigualdade brasileira não humilha e desumaniza apenas os excluídos sociais que perfazem ainda 30% da população. Não existe problema real no Brasil que não advenha de sua monumental desigualdade: (in)segurança pública, gargalo da mão de obra qualificada, escola e saúde pública de má qualidade. O que distancia o Brasil das sociedades que admiramos não é a corrupção, que é um problema real em qualquer lugar. O que nos afasta das sociedades “moralmente superiores” é que exploramos, aceitamos e tornamos fato natural e cotidiano conviver com gente sem qualquer chance real de vida digna e sem termos nenhuma culpa nisso.
O que os endinheirados controlam
Mesmo a parcela não crítica desta classe também é vítima do “conto de fadas” brasileiro que ela própria defende. Afinal, a classe média é também explorada pelos “endinheirados”, o que se reflete na sua ansiedade pelo custo de vida crescente e insegurança social. Grande parte do custo de vida brasileiro tem a ver com preços exorbitantes dos oligopólios e monopólios brasileiros que possuem taxa de lucro muito maior que em outros lugares. O mesmo acontece com uma das taxas de juro mais altas do planeta. Embora pagando seis ou sete vezes mais caro por serviços de telefonia celular que um europeu ou americano, pagando o dobro da taxa de lucro nos automóveis e serviços privados cada vez mais caros em todos os ramos da indústria e do comércio, a classe média se imagina vítima do “Estado”. A classe média se escandaliza com os escândalos cotidianos fomentados pela mídia conservadora, mas sequer percebe sua espoliação cotidiana pela camada ínfima de endinheirados de uma das sociedades modernas de capitalismo mais concentrado e desigual.
Como as relações entre as classes não são compreendidas, o caminho se torna aberto a todas as formas mascaradas de interpretação da realidade social, que permitem a transmutação do privilégio particular em suposto interesse universal. O 1% de endinheirados não controla apenas a economia e a propriedade. Eles contro- lam também a imaginação dos 99% restantes ao deslocar o foco de atenção da distribuição desi- gual de riqueza e privilégio para o espantalho da “corrupção estatal” como causa de todos os ma- les. A quem interessa, afinal, a estigmatização do Estado como ineficiente e corrupto – como se o nosso mercado de produtos e serviços caros de baixa qualidade fosse eficiente e virtuoso – se- não àqueles menos de 1% que podem transfor- mar áreas de atuação do Estado em terreno de apropriação privada e de lucro? Refiro-me aqui às áreas duramente conquistadas pelas classes populares, como educação e saúde, que deve- riam independer do fato de se nascer ou não em uma família privilegiada. Hoje em dia, é a classe média que paga preços exorbitantes a serviços que poderiam e deveriam ser públicos e de boa qualidade e, ainda, sai às ruas para defender, co- mo uma boa tropa de choque imbecilizada, os interesses dos seus algozes. A cegueira brasileira acerca de suas lutas de classe não faz apenas com que não percebamos as dores e os sofri- mentos das classes populares, nem os limites do combate à desigualdade com meios estritamente economicistas. Ela, antes de tudo, permite que menos de 1% da população faça de tolos todos os outros 99%.

Jessé Souza, 51, é potiguar de Natal/RN. Doutorou-se em Sociologia na Universidade Heidelberg, Alemanha. Fez pós-doutorado em Filosofia e Psicanálise na New School for Social Research, de New York. É livre-docente em Sociologia pela Universidade de Flensburg, Alemanha. Escreveu 22 livros em várias línguas sobre teoria social crítica e análises empíricas e teóricas da desigualdade e das classes sociais no Brasil. Atualmente, é professor titular de Sociologia da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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