01 outubro 2014

A Classe, o Nome, o Caos

A imprensa anda insensível ao mal-estar da sociedade? Se sim, por quê? O olhar automático do jornalista sobre o mundo teria ficado mais automático ainda? Ou será que estamos jogando nas costas (e nos olhos) dos repórteres uma culpa que não é deles?

A imprensa anda insensível ao mal-estar da sociedade? Se sim, por quê? O olhar automático do jornalista sobre o mundo teria ficado mais automático ainda? Ou será que estamos jogando nas costas (e nos olhos) dos repórteres uma culpa que não é deles?
“As coisas estão no mundo,
só que eu preciso aprender”
Paulinho da Viola
É bastante conhecida a passagem em que Jorge Luis Borges parece zombar de todos os sistemas de classificação, os possíveis e os impossíveis. No conto O idioma analítico de John Wilkins, ele fala de uma certa enciclopédia chinesa, Empório celestial de conhecimentos benévolos, que catalogaria os animais em 14 grupos distintos. Segundo a tal enciclopédia, os bichos deste mundo estariam divididos em:
(a) pertencentes ao Imperador
(b) embalsamados
(c) amestrados
(d) leitões
(e) sereias
(f) fabulosos
(g) cães vira-latas
(h) os que estão incluídos nesta classificação
(i) os que se agitam feito loucos
(j) inumeráveis
(k) desenhados com um pincel finíssimo de pelo de camelo
(l) et cetera
(m) os que acabaram de quebrar o vaso
(n) os que de longe parecem moscas
O leitor que se encanta com a imaginação de Borges há de julgar a lista inventiva, poética, provocadora, fantástica e desbragadamente genial. Mas, fora o devaneio estético, a gente logo deduz que esse negócio aí não tem aplicabilidade nenhuma. Classificar os bichos assim e não classificá-los de nenhum modo acaba dando no mesmo. Ou, ainda, em outras palavras: essa classificação é por excelência uma não classificação. Só fascina porque uma categoria inutiliza imediatamente a anterior e quebra a racionalidade do sistema. É mais ou menos como aquelas escadarias desenhadas por Escher, que brincam com a perspectiva em reviravoltas malucas – não serviriam jamais como escadas de verdade, mas são bonitas de olhar. Só isso.
Pois mais absurdas ainda, muito mais sem nexo e muito mais abiloladas são as nomenclaturas das editorias dos jornais (e das revistas, dos sites de notícias, de qualquer órgão de imprensa que se queira). São absurdas ao nível do absurdo. Indiferentes ao grau de arbitrariedade taxonômica que elas encerram, passamos por elas como se fossem naturalíssimas, coerentíssimas, racionalíssimas, aristoteliquíssimas.
Antes de qualquer outra consideração, cuidemos de um esclarecimento preliminar. Talvez o improvável leitor tenha ficado em dúvida sobre o que é mesmo uma “editoria” de jornal. Passemos à resposta. Editorias são as áreas conceituais em que se agrupam os assuntos que podem vir a ser tema de uma reportagem, de um artigo, de um programete de TV (ou, simplesmente, de um “conteúdo”, como dizem os hodiernos). Numa editoria vão as matérias de “política”; na outra, os relatos sobre “esportes” e assim por diante. Mas, editorias não são só isso. Elas não são apenas uma aglomeração de temas. Dentro dos galpões em que se instalam as redações, as editorias são também aglomerações de pessoas. As mesas ou as bancadas dos jornalistas que trabalham numa determinada “editoria” ficam mais ou menos próximas umas das outras, orbitando a salinha ou a escrivaninha do chefe do pedaço. “Editorias”, portanto, são também turmas e, nessas turmas, os indivíduos costumam guardar semelhanças de figurino entre si, como se fossem membros da mesma seita, e todos eles têm a cara das matérias que escrevem. Em consequência, editorias também acabam dando nome a espaços geográficos. “Cadê o fulano?”, alguém pergunta. “Foi tomar café na editoria de finanças.”
Acima de tudo, as “editorias” são um vetor abstrato que tem o condão de agrupar reportagens e artigos na pálida vastidão das páginas impressas – ou no infinito luminoso dos sites noticiosos. Toda publicação jornalística que se preze, principalmente as publicações ditas “de interesse geral” (e aqui já esbarramos num dos disparates catalogatórios da malfadada imprensa, quer dizer, “de interesse geral” vem a ser o nome de um gênero de publicações, e isso instaura uma interrogação de todo tamanho, pois, se há “publicações de interesse geral”, deveria haver as de “interesse particular”, mas essas não existem, daí porque urge fechar este parêntese) tem lá a sua editoria de “política”, de “Brasil” ou “nacional”, assim como tem a sua editoria de “cultura” ou “artes e espetáculos”, a de “internacional”, a de “cidades”, que também pode se chamar “local”, “metrópole” ou, ainda, “São Paulo” ou “Rio”, a de “ciências”, a de “polícia”. Nomes de editorias não faltam – o difícil é entender sua ontologia e os princípios de vizinhança e contiguidade que as tornam próximas ou distantes.
Não é só. Como se fossem famílias, as editorias têm seus agregados. A de “ciências”, por exemplo, costuma agregar a de “saúde”, embora não obrigatoriamente, mas quando a “pauta” de saúde tem o ministro como seu maior protagonista, aí pode ser que ela migre para a editoria de política. No tempo da ditadura militar, podia acontecer de as greves serem abduzidas pela editoria de “polícia”, não tendo vez nem em “nacional” nem em “cidades”. Coisas de enciclopédia chinesa.
Critérios bem pouco metodológicos
Não diga que os motivos dessas abduções discricionárias são – lá vem a palavra – “ideológicos”. Ideológico tudo é, bem o sabemos (ou não sabemos, pois a ideologia é menos rasteira quando se aproveita do que não sabemos e, mesmo assim, fazemos como se soubéssemos). Fora isso, fora o fato de que ideológico tudo é, as transmigrações de pautas, de profissionais e de máquinas de cafezinho de uma editoria para outra seguem critérios bem pouco metodológicos e muito mais prosaicos, imediatistas e inconsequentes. É bom lembrar que Carl Bernstein, um dos dois repórteres do Washington Post que lideraram a apuração do escândalo de Watergate – a cobertura de maior visibilidade e de maior impacto em toda a história, se não da imprensa, ao menos das editorias de “política” –, era da editoria de “local” e não da editoria de “política”. Ele foi escalado para fazer dupla com Bob Woodward, o outro repórter, porque tinha fama de perspicaz e também porque aquela pauta tinha começado como um crime comum, bem típico de “local” (ou “cidades”). Você se lembra bem: numa madrugada de junho de 1972, um bando invadiu a sede do Partido Democrata em Washington, no edifício que atendia pelo nome de, isso mesmo, Watergate. O escândalo que derrubaria Nixon entrou em cena com a aparência de um assalto (e era; mas os ladrões naquela noite roubavam direitos e liberdades, em lugar de bens materiais). Entrou na pauta como se fosse assunto de “cidades”.
É isso mesmo. Em se tratando de editorias e de seus conteúdos, tudo é muito mais anárquico do que supôs Karl Marx quando descobriu o que chamou de “anarquia da produção”. Se você tentar ordenar o sistema das editorias num sistema dotado de alguma racionalidade, vai logo chegar à conclusão de que esse negócio de imprensa não poderia ter dado certo nunca. A imprensa é um guarda-roupa sem dono, uma grande valise em constante desarrumação, uma mesa em que se aglomeram livros velhos. Tudo é meio bagunçado. Se há algum traço do mundo exterior que as redações refletem com fidelidade, esse traço é a bagunça perpétua das coisas do mundo em atrito constante com as outras coisas do mundo. Êmulo da modernidade inacabada, uma redação é sempre um projeto que foi abandonado antes que sua construção tivesse sido concluída. Alguém já disse que dirigir um jornal é travar uma batalha diária contra o caos e, diariamente, perder. Não errou.
Editoria “sociedade”: criatividade
O caos está permanentemente presente no ordenamento precário das editorias. Pense no horóscopo. Onde encaixá-lo? Todo jornal publica uma seção de astrologia. Se não todo jornal, quase todo jornal. O Economist não, ao menos aparentemente, mas bem que consulta os astros quando se mete a prever o futuro do ministro da Fazenda no Brasil. O mais engraçado é que, aí, os astros mentem para o Economist. Voltando às publicações mais normais, todas elas publicam previsões astrológicas abundantemente. Com suas auroras boreais sentimentais, fisgam as mentes desamparadas dos leitores em crise amorosa, ou seja, fisgam os corações de todos os leitores e mais alguns. E então? Onde são publicadas as colunas horoscopísticas?
Todos sabemos que o horóscopo nem jornalismo é. Por dois e apenas dois motivos: (1) aos astros não se pede a opinião contrária e (2) o astrólogo não cultiva o ceticismo (que é o mantra sagrado do ofício, a crença fundamentalista da profissão, aqui sem nenhuma ironia). Conta-se de muitos jornalistas que já tiveram de escrever a seção de horóscopo quando o astrólogo deu de adoecer, mas isso não os transforma em astrólogos (embora existam episódios que apontem o contrário), e muito menos transforma o astrólogo em jornalista. Tudo bem. O que conta é que, mesmo sem ser jornalismo, a seção de horóscopo é adorada pelos jornais – e pelos leitores de jornais. Quanto a onde colocá-la, ora, dá-se um jeito.
No mais das vezes, vai ser acomodada nos cadernos de “cultura” ou de “artes”, nos “roteiros de lazer”, nas “variedades”. Vai para o “e mais”. Não poderia figurar no “principal”, nunca. Quando o Estadão estava às voltas com a criação do que mais tarde viria a ser o “Caderno 2”, lá se vão quase 30 anos, havia a ideia de batizá-lo com o nome de “Etc.”. Isso nos ajuda a entender o que pensam os jornalistas quando precisam encontrar lugar para empacotar alguma coisa que eles julgam de difícil classificação – alguma coisa assim, tipo o horóscopo.
Há os assuntos próprios do que se imagina ser o “núcleo duro” da imprensa. Outras temáticas não podem faltar, por certo, mas não são “núcleo duro”. O Globo nomeou o caderno de cultura com o título de “Segundo Caderno”, mais ou menos como no velho Jornal do Brasil,em que o nome era “Caderno B”. Cinema, teatro, restaurante, passeio, livros, balada, televisão, sabe como é, isso tudo vem depois. Primeiro a obrigação, depois a diversão, diria a professora do Jardim da Infância.
Por aí podemos perceber claramente: na taxonomia da imprensa, há dois planos que se separam como os dois andares de um casarão. A diferença de nível implica uma diferença hierárquica, valorativa. No plano mais “nobre”, ou no pavimento dominante (na “Casa Grande”, se você quiser), fixam-se os temas igualmente “nobres”, como “economia”, “política”, “relações internacionais”. Ali entram os senhores de gravata e as senhoras de tailleur. No plano de baixo, que pode ser até o porão, vai o que é “B”, o que pertence ao “segundo caderno” ou ao “caderno 2”, o que classificaríamos tranquilamente como “etc.”, ou, ainda, como “o resto” (outro bom nome que ainda não foi cogitado para um futuro site de assuntos “culturais”). Bingo: por mais que não seja coisa alguma, o horóscopo é pelo menos “cultura”, vão achar um lugar para ele bem ali, perto da lista de bares e restaurantes.
Essas coisas todas dizem respeito à vida privada, à vida afetiva, à vida íntima de cada um. É bem verdade que o jornalista de perfil mais clássico – ou simplesmente mais afetado – olha para isso com uma ponta de desdém. Não vê relevância em horóscopo, gastronomia, e, vejamos, “relacionamento a dois”. Se tiver que tomar uma decisão a respeito, sua tendência é despachar o material para o vagão de trás. Mas, seria incorreto imaginar que o desprezo com que as estrelas da profissão tratam o que eles mesmos chamam de “B” é generalizado na imprensa. Não é.
Vamos olhar com mais atenção para a tal editoria de “sociedade”. Muitos críticos observam que a imprensa tem negligenciado a editoria “sociedade”, justamente aquela encarregada dos temas que acontecem longe do Estado, que têm lugar na órbita do que é privado (não em sentido econômico, mas sociológico). Ainda que tenham razão num caso ou noutro, esses críticos erram quando generalizam a má vontade dos jornalistas com aquilo que despacham para o vagão de trás. Não que a imprensa esteja preparadíssima para identificar as novidades que se insinuam nos botecos, nos quartos de hotel, nas igrejas que crescem e se multiplicam loucamente, nas penthouses, nas prateleiras de consumo da tal “nova Classe C”, ou mesmo nas ruas. Ela não está nem um pouco preparada. Mas, em muitas redações, a editoria “sociedade” esbanja criatividade, com boas antenas e farta produção. Muitos são os veículos que adotam essa retranca. O Globo é um deles. O El País usa a mesma designação. A Folha de S.Paulo prefere “cotidiano”, mas a substância coincide. De um jeito ou de outro, todos abrem espaço para a tal “sociedade”. Isso sem falar em cadernos e suplementos, nos diários, que se fartam desse tipo de pauta.
Isso quer dizer que só estão atentas para esses assuntos as redações que investem em editorias de nome “sociedade” ou “cotidiano” ou algo por aí? De modo algum. Para dar conta das “coisas que estão no mundo”, nesse “mundo, vasto mundo” ou no mundo que Habermas chamaria de “mundo da vida” – que não é a esfera pública, mas é vizinho dela, meio de fundos –, a imprensa não precisa ter editorias chamadas “sociedade”, “coisas do mundo”, “vasto mundo”, “Raimundo” ou “mundo da vida”.
Jornalismo pós-industrial
Em lugar da desbotada retranca “sociedade”, algumas publicações referem “comportamento”. Não melhora nada. Para dizer a verdade, piora um pouco. Tudo o que o humano faz ou deixa de fazer cabe dentro de “comportamento”. Claro que também é assim com “sociedade”, já que todos os “personagens” e “fontes” de todas as reportagens vivem dentro de alguma “sociedade”. Quer dizer: tudo, ou virtualmente tudo o que pode ser assunto de jornalistas, tem lugar em alguma “sociedade”, o que nos leva à desalentadora conclusão de que temos aí uma editoria que serve para absolutamente tudo, que abarca tudo e que, consequentemente, não se diferencia em nada. Mas, com a palavra “comportamento”, temos o mesmíssimo efeito, num grau ainda mais patético.
Sob a retranca “comportamento” os órgãos de imprensa que gostam dela costumam falar de “casamento gay”, de “mulheres que traem o marido” (mas só aceitam aparecer na reportagem se forem identificadas com um nome falso), de “adolescentes que cabulam a aula de matemática para fumar maconha na esquina da escola”, de um sujeito que resolveu ir à Patagônia de bicicleta ou de uma senhora mística que deu a conversar com jabuticabeiras. Mas, pense bem, que pauta jornalística não procura reportar o “comportamento” de um, dois ou mesmo vários seres humanos? O ministro que jura não se preocupar com o índice de inflação batendo a cabeça no teto da meta também daria uma bela pauta de “comportamento”. Se não por nada, ao menos porque o público tem o direito de saber as razões pelas quais o ministro se “comporta” desse jeito. Portanto, em “comportamento” cabe tudo, assim como em “sociedade” cabe tudo. De sorte que estamos de volta ao início. Andamos, andamos, andamos e caímos exatamente no mesmo lugar.
Ou quase. Já sabemos que na maioria dos órgãos de imprensa existem editorias de “comportamento”, “sociedade”, “cotidiano”, “vida e…”. Mesmo assim, perdura a sensação de que a imprensa – ou a “mídia”, como se diz – não tem um olhar afiado para as mudanças nesse plano viscoso e indefinível que Trotsky chamaria de “questões do modo de vida”. Por que será?
Em parte, essa sensação deriva de um déficit de inovação de linguagem e de hábitos nos ritos do fazer jornalístico. A criatividade da imprensa vai perdendo terreno para as novas maneiras de falar que se veem nas ruas (elas de novo). A linguagem jornalística ficou vagarosa, envelheceu rapidamente. Ser jornalista parece condição de gente velha. Jornalista parece um ofício em extinção, sem lugar no futuro. Em suma, a sensação de que o jornalismo é um jeito de falar, um discurso, um estilo que vai ficando démodé e logo estará fossilizado. Sendo anacrônico, não poderia ser contemporâneo. Jamais. Mas, essa ordem de sensações não se sustenta quando confrontada com a infinidade de novas investidas do que se convencionou denominar “jornalismo pós-industrial”, que vai do “Mídia Ninja” ao “Pro Publica”, além de uma infinidade de sites jornalísticos como “El Puercoespín”, “Cíper” e “Pública”, sem falar nas múltiplas reinvenções de sites como o do próprio “The New York Times”. Por isso, não dedicaremos mais espaço a essa crítica neste artigo.
A sensação de um jornalismo que ficou caído no acostamento da história brota de uma visão um tanto estereotipada do homem de imprensa, aquele tipo com um cigarro atrás da orelha, como num filme italiano ou num filme “B” de Hollywood. Esse personagem já não existe mais, embora a sua figura seja sólida no imaginário de uma certa crítica de mídia. O jornalista que deixava a esposa dormindo com a filharada enquanto mergulhava na boemia depois do fechamento e que era chapa do delegado só sobrevive nas peças de Nelson Rodrigues. Esse aí, claro, não poderia vislumbrar por antecipação o aparecimento do movimento ecológico, as teorias nascentes do poliamor, a falência da indústria fonográfica e a dissolução das fronteiras nacionais. Mas, a imprensa que temos hoje já o ultrapassou há décadas.
Defasagem real
Também por aqui podemos entrever que, muitas vezes, não é ela, imprensa, quem age de modo regressivo diante das surpresas que a vida lhe prega. O que acontece, aí, sim, é que uma fatia considerável dos praticantes do “mídia criticism” (praticantes que, curiosamente mal, se sabem jornalistas) vê o jornalista profissional de um modo bastante preconceituoso. Mas, deixemos isso pra lá. Isso também.
O ponto que conta é que existe, sim, uma defasagem entre a capacidade (limitada) que as redações têm de se renovar e o ciclo hiperveloz de mudanças que se operam na sociedade. Aqui, sim, trata-se de uma defasagem real. Uma das consequências desse descompasso é que se agrava a distância temporal entre os paradigmas conceituais com que os jornalistas operam para ler e entender as coisas do mundo e as manifestações novas que desafiam o formato dos paradigmas reinantes. É como se aos jornalistas faltassem olhos (ou conceitos) para ver e entender o desconhecido. Isso nos leva de volta ao problema das editorias e do nome das editorias, mas agora num outro nível de abordagem.
Vamos lá. Se não dá nome a algo, e um nome suficientemente aberto e inovador, uma redação não tem como detectar o que seria o objeto desse nome. Se não sabe o que é orçamento público, será difícil uma pessoa mediana entender o que é corrupção. Se não sabe que o mecanismo pelo qual uma casa bancária, ao conceder crédito, funciona como emissora de moeda, uma pessoa mediana terá obstáculos para entender o que é inflação. Se não sabe dar nome a um fenômeno, uma redação será incapaz de cobrir esse mesmo fenômeno. Num pequeno livro chamado Sobre a Televisão (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 26), Pierre Bourdieu diz que “nomear, como se sabe, é fazer ver, é criar, levar à existência”. Nada mais exato. Nada mais urgente para o jornalismo contemporâneo. Para “fazer ver” é preciso antes “nomear”. Sim: reportar depende do ato de nomear. Nomeando as coisas do passado e só, não há como cobrir as coisas do presente.
Repensar o sistema de editorias
Lembremos, quanto a isso, que “ver” não é meramente descobrir, mas reconhecer. Ver é reconhecer na paisagem visível a manifestação material do conceito do qual já desconfiávamos em pensamento. Se isso não vale para tudo neste mundo, vale, com certeza, e tragicamente, para o jornalismo. Uma redação que não se define, para si mesma, como um organismo pensante, que não investe na sua vocação intelectual, não se prepara para ver de longe o que ainda não existe de perto. E, sem isso, não consegue deixar de ser surpreendida (de calças curtas) pelas novidades.
Aí é que entram as editorias e seus nomes. A editoria, quando bem nomeada, prepara a redação para ver o que as lentes das velhas editorias, cujos nomes são meros vícios decantados pela prática irrefletida, não mostravam. Dito isto, tomemos um pouquinho de fôlego, mas não muito.
Não é tão difícil constatar que há, sim, um estranhamento da imprensa diante do que não é conhecido. A nós, cabe estranhar ruidosamente o estranhamento. Admitindo a premissa de que o jornalismo existe para descobrir o que não é conhecido e para desvelar segredos, para noticiar e alardear o que vinha de ter estado oculto, temos o dever de perguntar: como e por que ele se reserva o direito de estranhar o que não é conhecido?
Agora, finalmente, podemos encarar a indagação acerca da imprensa diante do tal “mal-estar na sociedade”. A imprensa tem olhos para ver essas coisas? Se não os tem, e, talvez, na maior parte das redações, não os tenha mesmo, é o caso de pensar em reconfigurar a velha caixa de ferramentas do marceneiro, que é a caixa de ferramentas do jornalista (em sentido figurado, por favor). Cláudio Abramo costumava dizer que a ética do jornalista se aproxima da ética do marceneiro: a ética do jornalista não teria nada de especial, seria a ética de todo cidadão de bem, sem tirar nem pôr. O achado de Cláudio Abramo acabou ficando como um ensinamento clássico, mas podemos entendê-lo mais como metáfora do que como um juízo de precisão. O fato é que a ética do jornalista conta, sim, com prerrogativas muito especiais, como a garantia do sigilo da fonte. Mas, numa perspectiva mais ampla, o jornalista se vale do saber produzido pela humanidade não como um filósofo originalíssimo, mas como um marceneiro comum, que lança mão de algumas ferramentas (intelectuais) em seu fazer mais ou menos artesanal. É nessa perspectiva que podemos dizer que o desafio atual da imprensa consiste em refazer a caixa de ferramentas do jornalista, o que implica repensar de cabo a rabo o sistema das editorias dos jornais, das rádios, dos sites, da TV, das revistas. Se a imprensa quer mudar o que vê, deve mudar antes as lentes que emprega (há uns poucos instrumentos óticos na caixa de ferramentas do nosso marceneiro).
Fora isso, fujamos das generalizações. Não é verdade que a imprensa tenha fechado os olhos (lá vamos nós, de novo, às comparações escópicas) para as vertiginosas transformações da vida privada, e isso desde o século XIX, pelo menos. Ao contrário, a imprensa – bem como a totalidade dos meios de comunicação – falou abundantemente, ou mesmo histericamente, sobre as mudanças dos padrões de comportamento (eita, palavrinha), notadamente ao longo do século XX. Talvez tenha feito isso de forma um tanto reativa, quase nunca de modo indutivo ou provocativo, mas que falou, falou. Não por acaso, um dos queixumes prediletos que adoram disparar contra as revistas semanais no Brasil é que elas dão espaço demasiado para tratamentos alternativos, receitas para emagrecer, ídolos da televisão e curas espirituais e espaço de menos para suborno, propina, balança comercial e crédito de carbono.
Intimidades inundaram o mundo
Um dos maiores sucessos editoriais na indústria de revistas, primeiro no mercado americano e depois no mercado mundial, foi o renascimento da Cosmopolitan como uma publicação para as mulheres que queriam independência profissional e sexual. Quem gosta muito de lembrar essa história é o editor e professor Thomaz Souto Corrêa. Em 1962, Helen Brown, que tinha sido secretária e gostava de repetir que uma garota organizada vai longe, procurou o presidente da Hearst com uma ideia na cabeça. Ela tinha escrito um livro, O Sexo e a mulher solteira, que logo virou um best-seller. Como recebia cartas e mais cartas de suas leitoras, com perguntas e mais perguntas, Helen achava que tinha em mãos um bom material não para um novo livro, mas para uma nova revista. A Hearst apostou na ideia e deu a Helen Brown a missão de transformar uma revista velha, decadente, que fora fundada em 1835, na forma de um magazine literário, numa nova revista feminina. Era a Cosmopolitan. Nas mãos de sua nova editora, a velha publicação de poucos leitores masculinos se tornaria uma febre nos Estados Unidos, ensinando suas leitoras a, digamos, subir na carreira e “enlouquecer um homem na cama”. No Brasil, a Cosmo foi lançada com o título de Nova, que impulsionou com furor o discurso sobre intimidades na “imprensa feminina”. A Cosmo e a Nova não inventaram nem anteciparam a revolução da pílula anticoncepcional e da emancipação da mulher, mas pegaram uma carona nessa onda – e até hoje surfam em cima dela.
Não se pode dizer que esse deslizar incerto, ora titubeante, ora vertiginoso, dos parâmetros de conduta íntima tenham escapado inteiramente ao jornalismo. A Playboy fez a fortuna de seu inventor, Hugh Hefner, mesclando garotas nuas e textos de alguns dos maiores autores do “new journalism”. No Brasil de hoje, a Trip deu um passo além nessa fórmula e gerou um filão inteiro de novas publicações e de novas práticas jornalísticas.
Os exemplos eclodem aos milhões. Se olharmos à nossa volta, na internet, na TV a cabo, nos impressos, até mesmo nos impressos, o que mais vamos ver são discursos em torno de temas bem pouco ortodoxos, que vão de colecionadores de automóveis antigos a infinitos compêndios on-line de prazeres de alcova, passando pelo surfe (cujos praticantes têm, sim, um vocabulário de mais de sete palavras) e pelo verdadeiro dilúvio de canais neopentecostais e também pelos títulos especializados em filosofias orientais das mais diversas. Em tempo: não nos esqueçamos dos programas especializados em pesca de água doce e dos blogs de moda. Em qualquer site noticioso, hoje, mesmo nos mais sóbrios, encontramos notícias sobre aulas de yoga nas quais os alunos ficam inteiramente nus e sobre garotas que trajam apenas calcinha e uma camiseta com o símbolo de um time de futebol.
O que houve não é bem que a imprensa não tenha aberto seus olhos às “novidades” comportamentais. O que houve foi justamente o contrário: as intimidades inundaram tudo, inclusive o território do jornalismo; as “evasões de privacidade” tomaram conta das comunicações. O grande irmão, que a todos deveria vigiar, revelou-se agora um ser difuso, anônimo e voyeurista, um sujeito insaciável em seu apetite por mais enquadramentos de urologista. No Facebook (que não é bem imprensa, bem sabemos, mas é mídia), os amigos da gente se deixam fotografar sem camisa. E ainda sorriem! Francamente, passeata do orgulho gay é fichinha, assim como a sua irmã gêmea, a Marcha com Jesus, é refresco. Christopher Lasch tinha seus bons motivos para reclamar da “cultura do narcisismo”.
Hugh Hefner nunca escondeu que inventou a Playboy pensando no leitor que tinha fantasias com a ideia de ver a vizinha em pelo. Hoje, padecemos de terror ao constatar que a vizinha e o marido não são capazes de se apresentar bem vestidos nunca, nem aos domingos. Num tempo em que os assuntos de interesse público se deixam regular por predileções inconfessáveis de natureza privada (o rating de audiência na televisão é o mecanismo pelo qual essa nova máxima se processa), aquela imprensa conduzida por homens que envelheciam precocemente atravessando noites sem dormir e tendo que decifrar os enigmas políticos por meias palavras de suas fontes sobrevive como uma reserva ecológica necessária e vital. Ainda bem que dispomos dela por aí, nem que seja só para reclamar dela.
Mal-estar da imprensa
É provável, enfim, que o mal-estar da sociedade também se manifeste na forma de um mal-estar da imprensa. Dizem muitos que o jornalismo está em crise. Irreversível. Pode ser. Ao mesmo tempo, nunca, mas nunca mesmo, textos de jornalistas foram tão lidos como agora. A crise é da indústria jornalística, que não sabe mais como fazer dinheiro; não é do relato jornalístico, que aumenta dia a dia o seu público leitor (que não paga nada, desgraçadamente).
Fora isso, não deveríamos nos preocupar tanto. O discurso jornalístico é, por definição, um discurso da crise – entendida aqui como o deslizamento acelerado de todos os pressupostos. É um discurso da crise, sobre a crise e em crise. Desde que existe. O que traz até alguns efeitos colaterais benéficos: o mal-estar da imprensa funciona como um pretexto de bem-estar para a democracia. E agora chega.
Para terminar, listemos as 18 categorias inescapáveis em que se encaixam todos os “conteúdos” (essa palavra da moda) disponíveis na imprensa em crise e em mal-estar:
a) Assuntos referentes a políticos atuando no Brasil;
b) Pessoas que se comportam de maneira esquisita segundo o diretor de redação;
c) Horóscopo;
d) Restaurantes cujos chefs aparecem na Coluna Social;
e) Coluna Social;
f) Sociedade que não é anônima;
g) “Internacional”, vale dizer, assuntos noticiados nas editorias de “nacional” em jornais internacionais compondo um conjunto do qual virão a fazer parte os foreign affairs de Nova York;
h) Futebol e resenhas literárias;
i) Xadrez, tiro ao alvo e demais esportes;
j) Etc., claro;
k) Reportagens para abrir o caderno de classificados de tal forma que ele fique menos com cara de caderno de classificados;
l) Ecos em defesa da liberdade de imprensa;
m) Entrevistas com pessoas que falam o que eu acho;
n) Aleatoriedades e afins;
o) Ciência, saúde, tecnologia e saiba mais;
p) Native Ads e Publieditoriais em on (incluindo em off);
q) Fulano preferiu não comentar;
r) Matérias que serão inevitavelmente derrubadas (que quase foi o caso desta aqui).

Eugênio Bucci é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e da ESPM.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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