Número 70

Ano 18 / Jul - Set 2025

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é economista e foi ministro da Fazenda no governo de José Sarney. É sócio da Tendências Consultoria

A crise contratada

O Brasil tem um encontro marcado com uma grande crise financeira, desta vez provocada por um colapso fiscal. As crises financeiras ocorridas a partir dos anos 1930 resultaram de causas distintas: 1) uma crise de balanço de pagamentos que limitava a capacidade de resgatar a dívida externa, o que acarretava a suspensão dos pagamentos, de forma negociada ou unilateral; 2) uma crise bancária, que provocava quebras de bancos e daí um credit crunch que reduzia substancialmente a oferta de crédito para consumo e capital de giro, levando empresas à falência. A economia entrava em grave recessão. A taxa de investimento caía, o que resultava em diminuição do potencial de crescimento.

Agora, a crise financeira decorrerá de um colapso fiscal. Suas origens estão na cultura de irresponsabilidade fiscal da classe política, que costuma desprezar a restrição orçamentária. Em termos microeconômicos, essa restrição é o limite de consumo de um indivíduo. Em finanças públicas, é a ideia de que há limite ao gasto público, mas aqui se diz que gastar mais depende apenas de vontade política.

O presidente Lula criou uma variante dessa irresponsabilidade, baseada em uma contabilidade pública esquisita pela qual despesas com educação, saúde e programas sociais não são gastos, mas investimento. Por aí, tais gastos poderiam expandir-se sem qualquer controle, o que não passa de um absurdo.

Na realidade, o Brasil nunca levou a sério o orçamento público, embora ele seja a lei mais importante de um país. Desde a Babilônia e o Egito antigo, o orçamento é aprovado anualmente, constituindo o instrumento que define as prioridades do país.

As origens do moderno orçamento púbico remontam à Carta Magna inglesa de 1215, pela qual o rei João Sem Terra cedeu a demandas de barões e bispos, que exigiam a prévia autorização deles para a elevação de impostos. A cobrança somente poderia começar no exercício seguinte, o que é princípio da anterioridade dos tributos, ainda vigente.

Ao longo do tempo, todavia, os reis encontraram formas de contornar tal restrição, como assinalam Douglass North e Barry Weingast em seu clássico artigo Constitutions and Commitment:The Evolution of Institutions Governing Public Choice in Seventeenth-Century England, publicado em dezembro de 1989 pelo The Journal of Economic History.

Os reis passaram a recorrer a empréstimos compulsórios, à venda de terras e de títulos de nobreza, e a concessões de patentes e monopólios, que por não serem impostos não dependiam da aprovação do Parlamento. Restauraram, o Power of Conveyance, que lhes dava o direito de realizar compras governamentais por um valor fixo, abaixo dos preços de mercado.

Essas ações acarretaram crescente insatisfação. A expansão dos títulos de nobreza, que aumentava o número de membros da Câmara dos Lordes, teve efeito negativo entre os detentores de títulos hereditários, pois limitou sua capacidade de se protegerem contra atos da Coroa. A renovação compulsória dos empréstimos, às vezes sem juros ou muitos nunca pagos, descontentavam os merchants, os principais credores.

O rei James II exacerbou o descontentamento com os sinais de que buscaria restabelecer o catolicismo e, assim, abolir a Igreja Anglicana, retomando a submissão de assuntos religiosos ao Vaticano. Ele também abusou da prerrogativa de editar proclamações e decretos sem audiência do Parlamento. A rejeição ao monarca desaguou na Revolução Gloriosa (1688), que o depôs e aboliu a monarquia absoluta. Rejeitou-se a ideia do “poder divino dos reis”, que os situava acima da lei.

Estabeleceu-se a supremacia do Parlamento. O rei perdeu a prerrogativa de demitir juízes, o que resultou na independência do Judiciário e no fortalecimento dos direitos de propriedade. Os parlamentares passaram a decidir sobre variadas questões, especialmente em matéria financeira, e a impor controles e restrições à ação da Coroa.

Revolução fiscal e limitação do poder

A exclusiva autoridade do Parlamento para criar e elevar impostos foi restabelecida. Mais tarde, aprovou-se a inédita auditoria das contas da Coroa. Haveria, desse modo, o poder de veto sobre a despesa e o direito de monitorar a aplicação da receita. Os calotes na dívida pública desapareceram. Na opinião de North e Weingast, promoveu-se uma revolução fiscal.

North e Weingast concluem que a Revolução Gloriosa assegurou a ascensão da Grã-Bretanha à posição de potência hegemônica. Sem a revolução fiscal e a limitação do poder da Coroa, a Inglaterra dificilmente teria sido a pioneira da Revolução Industrial nem teria vencido as guerras contra a França, substituindo-a, no século XIX, como a maior e poderosa economia da Europa.

O Parlamento reforçou a função exclusiva de aprovar o Orçamento. Essa mesma atribuição foi inscrita nas Constituições de dois outros grandes movimentos importantes do Ocidente, a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789).

Em nenhum desses casos vigora a visão equivocada, adotada no Brasil por economistas, cientistas políticos e analistas, segundo os quais o Orçamento é autorizativo, o que permitiria ao Executivo contingenciar e até bloquear dotações orçamentárias.

Não é assim em países que levam a sério o Orçamento, como é o caso dos EUA. Em 1974, o Congresso aprovou o Impoundment Control Act, estabelecendo normas sobre contingenciamento de dotações orçamentárias. Foi uma reação ao que se considerou abuso de poder pelo então presidente Richard Nixon, que deixara de executar despesas de programas aos quais se opunha.

No mesmo ano, criou-se o Congressional Budget Office (CBO), uma agência que tem papel relevante em finanças públicas. Entre outros objetivos, cumpre-lhe prover apoio objetivo, não partidário, para auxiliar os parlamentares a lidar com assuntos envolvendo o orçamento e a economia. À CBO cabe também oferecer alternativas às informações prestadas ao Congresso por agências do Executivo.

O termo impoundment pode ser traduzido como o ato de apreender ou prender alguém, na forma da lei. Pode também designar a coleta e o acúmulo de água em um reservatório. Nos Estados Unidos, significa uma ação do presidente da República para conter despesas orçamentárias.

Diferentemente do Brasil, todavia, o Impoundment Control Act estabelece que o contingenciamento requer o exame do Congresso, que pode rejeitá-lo com apoio em manifestação do CBO. O presidente é obrigado a informar prontamente o contingenciamento e sua duração.

Pela Constituição americana, o Congresso tem o power of purse, isto é, o poder de decidir sobre finanças públicas. É ele quem elabora o Orçamento. A título de sugestão, o Executivo apresenta uma proposta. No Brasil, é o Executivo quem elabora o Orçamento. O Executivo pode, como acima mencionado, contingenciar verbas discricionárias a seu bel prazer.

Mais do que isso, pode, como dito, bloqueá-las, isto é, anular despesas, o que é ainda mais sério, eis que o Orçamento é uma lei que deve ser cumprida. Pelo art. 165, § 8º da Constituição “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa (grifos meus). Assim, a despesa é fixa e sua execução é impositiva.

Apesar disso, a Lei de Responsabilidade Fiscal, no art. 9º, dispõe que o Executivo pode estabelecer “limitação de empenho e movimentação financeira”, o que significa deixar de realizar a despesa autorizada pelo Congresso. A rigor, esse dispositivo pode ser inquinado de inconstitucional. Os males do contingenciamento e do cancelamento são inequívocos.

Imagine-se uma obra de infraestrutura realizada com recursos do Orçamento da União, por exemplo uma rodovia ou o seu asfaltamento. A empresa que ganha a concorrência desloca engenheiros, mestre de obras e equipamentos para o local do empreendimento. Aluga residências na região. Começa a obra. Subitamente, sem qualquer aviso, o governo decide contingenciar ou cancelar a verba orçamentária. O custo para o país é incalculável, o prejuízo à boa alocação dos recursos é inequívoco. Muitas das obras interrompidas podem ter nesse lamentável processo uma de suas causas básicas.

Emendas parlamentares escandalosas

Claro, nosso Orçamento tem outras graves disfunções. É o caso das escandalosas emendas parlamentares, que aumentaram gigantescamente nos últimos dez anos e representam, segundo estudos de Marcos Mendes, 24% dos gastos discricionários da União. Tais emendas deveriam ser uma exceção aplicável a reduzidos casos. É o que ocorre nos países desenvolvidos em que, ainda conforme os estudos de Mendes, representam menos de 1% daqueles gastos, salvo no Estados Unidos, onde alcançam 2,6%.

A rigor, as emendas parlamentares em favor de estados e municípios não deveriam existir. No Chile, proíbe-se qualquer emenda. De fato, em matéria tributária, todos os países têm um pacto político implícito que reserva a cada uma das esferas – governo central e unidades subnacionais – sua parcela na arrecadação, incluindo as transferências intergovernamentais, que no Brasil são os fundos de participação de estados e municípios e a partilha do ICMS entre esses entes. Cada esfera deveria conter-se em sua fatia de recursos, admitindo-se o endividamento responsável para financiar investimentos.

Conforta saber que abandonamos uma situação muito pior. O processo orçamentário melhorou muito entre 1986 e 1987 com a abolição de aberrações institucionais. Foram eliminados o Orçamento Monetário (que não tinha aprovação do Congresso), a “conta movimento” do BB (pela qual o banco tinha acesso ilimitado a recursos do BC) e as funções de fomento do BC (sim, o BC era uma espécie de banco de desenvolvimento). As reformas não tiveram continuidade, o que permitiria modernizar adicionalmente as finanças públicas. O Orçamento ainda se rege pela ultrapassada lei 4.320, de 1964.

Pior, a Constituição de 1988 inaugurou uma marcha da insensatez fiscal que se prolonga até hoje. Movidos pela missão utópica de eliminar as desigualdades sociais e a pobreza (que tinha seus méritos), os constituintes lançaram as bases de uma generosa previdência social e de amplos programas sociais. Pouquíssimos verificaram se havia a possibilidade de criação, no Brasil, de um estado de bem-estar social nos moldes dos vigentes em países ricos da Europa. Ampliou-se a vinculação de impostos a gastos com educação (vigente desde 1984), o que mais tarde se estenderia à saúde. O salário-mínimo foi indexado aos benefícios previdenciários.

Adicionalmente, os governos do PSDB e do PT tornaram realidade os princípios constitucionais sobre os programas sociais. Inventividade nunca esteve em falta para ampliar os respectivos gastos, processo que teve continuidade no atual governo com a criação do programa Pé de Meia e de incentivos ao professorado. Segundo cálculos de Raul Velloso, um de nossos melhores especialistas no tema, tais gastos representam hoje 84,8% das despesas primárias do setor público. Nada parecido ocorre no mundo.

A irresponsável ampliação desses gastos ao longo do tempo – quase todos de natureza obrigatória – fez com que eles se expandissem mais rapidamente do que os itens discricionários, especialmente em decorrência do envelhecimento da população e de seus efeitos na Previdência. O atual governo estabeleceu o piso para investimentos, que de certa forma pode também ser considerado mandatório. Quando computados os pisos de educação e saúde, 96% dos gastos do Executivo federal são obrigatórios. Em 1987, representavam 37%.

Assim, a rigor, restam apenas 4% para financiar gastos administrativos do governo federal e programas relevantes em favor da agricultura, da ciência e tecnologia, da cultura e da manutenção de brasileiros que frequentam cursos de mestrado e doutorado no exterior. Essa margem tende rapidamente a zero.

Três exemplos de reformas estruturais

Estudo recente de Dayson Almeida e Paulo Bijos, da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara (Projeções fiscais e orçamentárias: o desafio das despesas discricionárias) indica que, a partir de 2027, o achatamento das despesas discricionárias tornar-se-á crítico, em decorrência do crescimento acelerado dos itens mandatórios, incluindo as emendas parlamentares. Não sobrará um tostão para financiar as demais despesas do Executivo. Claro, o colapso acontecerá antes, a que se seguirá grave crise financeira.

No relatório recente do Banco Mundial sobre o desenvolvimento, dedicado a examinar a armadilha da renda – da qual o Brasil é prisioneiro – o glossário menciona a expressão “capitalizar na crise”, que significa “o processo pelo qual a crise provoca a oportunidade de implementar reformas importantes, que de outro modo seriam bloqueadas”. É o momento em que emerge o senso de urgência que, segundo cientistas políticos, gera o apoio social e político em favor de mudanças estruturais fundamentais para reverter a crise, de forma duradoura.

A história brasileira tem três exemplos de reformas estruturais relevantes que foram aprovadas em momentos de crise. O primeiro é o das mudanças do período 1964-1967, em seguida à instalação do regime militar. Empresários de São Paulo e militares de alta patente haviam fundado em 1962 o Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais – IPÊS.

O instituto desenvolveu uma ampla campanha para desestabilizar o governo João Goulart e se preparou para o possível day after. Promoveu estudos sobre os problemas brasileiros, que foram acompanhados de propostas de reformas estruturais, as quais foram oferecidas ao novo governo. Isso provavelmente contribuiu para a rápida elaboração do Programa de Ação do Governo – PAEG. Membros do IPÊS assumiram cargos estratégicos em ministérios e empresas estatais.

O segundo exemplo é o das reformas e ações que se seguiram ao Plano Real, muitas delas com o objetivo contribuir para sua consolidação. Foram principalmente os casos da Lei de Responsabilidade Fiscal, das concessões de serviços de infraestrutura, da privatização de empresas estatais, entre elas a Telebrás e da renegociação das dívidas dos estados, que abriram a possibilidade de privatização de bancos estaduais e de empresas estatais de governos subnacionais.

O terceiro exemplo foi o das reformas do governo Temer, que contaram com ideias plasmadas no programa Uma Ponte para o Futuro, de autoria de seu partido, o MDB. Foram aprovadas a importante reforma trabalhista e a Lei das Estatais, entre outras medidas estruturais.

Nos dois últimos exemplos, não foi necessário contratar estudos como no caso do IPÊS. Havia ampla disponibilidade de textos derivados de pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, de associações privadas e de teses de mestrado e doutorado, que haviam mapeado os problemas da economia. Debates sobre os diferentes temas em seminários e eventos similares estavam (e estão) disponíveis.

A crise que se aproxima pode criar o ambiente de apoio social e político favorável a uma nova onda de reformas estruturais necessárias à criação de um novo ciclo de desenvolvimento do Brasil. Muito dependerá de quem seja o presidente da República, mas as condições para tanto estarão presentes. Ainda há esperança.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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