01 abril 2009

A Crise externa e o Brasil

A crise bancária é apenas uma dimensão da crise externa. A outra é a destruição de riquezas que levou à queda nas demandas agregadas nos países industrializados, com reflexos negativos para os países emergentes. Há no Brasil um largo espaço para uma política monetária contracíclica. O uso prudente de reservas permite reduzir o ajuste nas contas correntes, evitando quedas mais acentuadas no consumo e nos investimentos. Há, contudo, limites maiores para o uso de políticas fiscais contracíclicas.

Efeitos da destruição de riqueza 


Por vários anos antes do início da crise, o mundo passou por um período de taxas de juros baixas e de crescimento acelerado, levando a um crescimento do valor de mercado dos preços dos ativos como imóveis e ações, que são uma proporção elevada do estoque de riqueza dos indivíduos . Levando, também, a um ciclo de forte elevação de preços de commodities através do qual países exportadores de commodities viram seu crescimento econômico impulsionado. Riqueza maior significa a percepção de um maior nível de renda permanente, o que expande a demanda. Essa expansão da demanda era acentuada pelo fato de que com colaterais mais valiosos os indivíduos e as empresas nos países industrializados, mas principalmente nos Estados Unidos, podiam tomar mais empréstimos bancários, que financiavam expansões ainda maiores da demanda agregada. Nos EUA os indivíduos compravam imóveis que não poderiam pagar, dado seu nível de renda, dentro do pressuposto de que esse problema seria solucionado pelo contínuo crescimento dos preços dos imóveis, que elevaria seu grau de riqueza, permitindo níveis maiores de endividamento. Mas aquela riqueza era falsa, porque aqueles preços de ativos não eram sustentáveis. Assim como se expandiu quando os preços dos ativos se elevavam e a riqueza percebida aumentava, a demanda contraiu quando as bolhas nos preços dos ativos estouraram.


A crise bancária acentuou esse problema ainda mais ao contrair o crédito, ao elevar o grau de persistência da crise e ao impedir o funcionamento do sistema produtivo. O mundo vive uma crise financeira na qual instituições sistemicamente importantes tornaram-se insolventes não apenas em um país, mas em um grande número de países industrializados.


A solução para essa crise é extremamente complexa, envolvendo doses maciças de recursos públicos, com a intervenção de governos quer capitalizando diretamente as instituições financeiras, quer tornando-se temporariamente proprietários dessas instituições. Como não existe uma solução simples e rápida, a crise bancária terá um elevado grau de persistência, o que impedirá uma recuperação mais rápida das economias. Por isso, não há perspectivas de rápida e significativa elevação da demanda agregada, ainda que o remédio keynesiano do vigoroso aumento de gastos públicos seja ministrado em doses elevadas. O problema complica-se ainda mais pelo fato de que as economias de países importantes foram profundamente feridas, como é o caso dos países do Leste europeu. Em crises menores do que esta, o FMI entrava em cena evitando que o problema dos países atingidos se aprofundasse e emitissem ondas de choque contagiando o resto da economia mundial. Mas os recursos do FMI ficaram muito pequenos diante do tamanho da atual crise, e não há esperanças de que se encontrem mecanismos que o substituam.
A destruição de riquezas, combinada com a crise bancária, provocou um choque de demanda agregada nos países industrializados – a sua contração em uma magnitude muito maior do que em qualquer outro episódio nas últimas décadas. Pelas razões expostas acima, essa contração de demanda é ao mesmo tempo persistente e global, isso é, deverá manter-se por longo período, e ocorre na grande maioria dos países.


Uma forma de ver a magnitude do choque é observando indicadores que mostrem a queda simultânea da demanda relativamente à capacidade produtiva na grande maioria dos países desenvolvidos. Uma variável que mede os movimentos da demanda relativamente à capacidade produtiva é o que os economistas chamam de hiato de produto, ou seja, a diferença entre o produto atual, cujo nível é determinado pela demanda agregada, e o produto potencial, que é uma medida da capacidade produtiva. Com base em dados mensais da produção industrial computamos esse hiato para os EUA, Japão e para vários países da Europa. Os resultados aparecem no Gráfico 1. Não há, nas últimas décadas, nenhum exemplo de quedas tão grandes e tão generalizadas quanto essas.


No período de crescimento econômico acelerado entre 2005 e 2007, vê-se um aumento progressivo do produto atual (demanda) relativamente ao potencial (oferta), caracterizando um contínuo aquecimento das economias. Mas quando a crise se inicia, em 2008, ocorre uma queda generalizada da demanda agregada, o que é mostrado pelo comportamento dos produtos atuais de todos os países, que declinam simultaneamente e com grande intensidade com relação aos respectivos níveis de produto potencial. Enquanto este artigo era escrito, essa queda de demanda ainda continuava.


Sabemos que as taxas de inflação se elevam quando a demanda cresce mais do que a oferta, e era essa ampliação da demanda que, entre 2005 e 2007, estava por trás do aumento generalizado da inflação na Europa e nos Estados Unidos . Agora a queda generalizada e intensa da demanda agregada expõe o mundo ao espectro da deflação, que é um sinônimo de depressão. Esta se torna ainda mais aterradora quando lembramos que a eficácia da política monetária declinou ao colocar os Estados Unidos na armadilha da liquidez . Isso joga um peso enorme sobre a política fiscal, que será ainda mais pressionada pela necessidade de usar recursos públicos para salvar o sistema bancário.


Como o Brasil é afetado


Quando a crise se iniciou, em 2008, muitos acreditaram que o Brasil seria apenas marginalmente afetado. Nas crises da Rússia em 1998 e da Argentina, em 2001, o Brasil foi atingido porque: a) a dívida pública era grande demais e tinha uma importante parcela dolarizada; b) a dívida externa era grande; e c) o estoque de reservas internacionais era muito baixo.


Uma crise em um mercado emergente provocava contágio através da venda generalizada de títulos de todos os demais países emergentes, acarretando a elevação dos prêmios de risco e a depreciação cambial. O câmbio real mais desvalorizado elevava a relação dívida/PIB, aumentando o risco de default e reduzindo ainda mais os ingressos de capitais, o que acelerava a depreciação cambial, elevando a relação dívida/PIB. Fechava-se um círculo vicioso cuja eliminação requeria medidas de política econômica que eram pró-cíclicas, acentuando a contração. Para deter o crescimento da relação dívida/PIB era necessário elevar o superávit fiscal primário cortando gastos e elevando tributos. A política fiscal assim conduzida, juntamente com a elevação da taxa de juros necessária para dissipar os efeitos inflacionários da depreciação cambial, acentuava a recessão. Como esses canais de contágio praticamente desapareceram, acreditava-se que o Brasil não seria atingido, ou que seria pouco afetado.


Além do fechamento daqueles canais de transmissão, no Brasil não existe um shadow banking system que pudesse escapar da supervisão do Banco Central e fugir dos parâmetros do acordo da Basileia, que, uma vez cumpridos, mantêm a solvência das instituições financeiras. O sistema bancário brasileiro estava capitalizado e forte. Em adição, os bancos brasileiros somente podem aplicar recursos em ativos no Brasil, sendo imunes aos prejuízos causados diretamente pelo estouro da bolha imobiliária nos EUA. Por isso havia razão para algum otimismo. Mas este otimismo ignorava que devido à magnitude da queda da demanda agregada em escala mundial, a demanda agregada também seria afetada no Brasil, sofrendo forte contração.


Há uma correlação positiva entre o crescimento econômico mundial e do Brasil. Nesses últimos anos, o crescimento econômico brasileiro beneficiou-se do crescimento mundial acelerado. Sendo um exportador de commodities, o Brasil beneficiou-se da bolha nos preços das commodities, que acompanhou as bolhas nos mercados imobiliário e de ações. A consequência foi um aumento das exportações, acompanhado de ganhos de relações de troca e da valorização do câmbio real, permitindo o aumento das importações. Lembremos que no Brasil os investimentos em capital fixo dependem direta ou indiretamente das importações de bens de capital e matérias-primas, como fica claro pelo paralelismo entre as séries de importações totais e de investimentos em capital fixo mostradas no Gráfico 2. Esse estímulo aos investimentos em capital fixo foi ainda maior porque as taxas internacionais de juros baixas geraram fortes ingressos de capitais, que permitiram o seu financiamento, quer na forma de investimentos estrangeiros diretos, quer na forma de investimentos no mercado de ações .


Durante a crise de confiança na transição do governo FHC para o governo Lula, o país teve que gerar superávits nas contas correntes, o que demandou políticas monetária e fiscal fortemente contracionistas. Afinal, o superávit nas contas correntes é o excesso do produto sobre a demanda agregada, e esta teve que se contrair através da contração dos investimentos em capital fixo e do consumo das famílias. Mas os ganhos de preços de commodities e o crescimento acelerado do valor em dólares do comércio mundial sustentaram taxas elevadas de crescimento das exportações e geraram ganhos de relações de troca, que juntamente com a acumulação de reservas, permitiram a valorização do câmbio real de equilíbrio, atenuando as pressões sobre os preços domésticos e abrindo o caminho para a queda da taxa real de juros. A consequência foi que, logo após a restauração da credibilidade na política econômica, ocorresse o aumento paralelo dos investimentos em capital fixo e do consumo das famílias, que trouxe como uma de suas consequências a queda dos superávits nas contas correntes, e posteriormente o aparecimento de seus déficits.
A crise mundial inverteu todos estes sinais. Com ela, caem fortemente os preços internacionais de commodities; o crescimento do total das exportações mundiais, que vinha em forte expansão, entra em uma fase de implosão; e não somente ocorre uma contração nas exportações brasileiras, como caem os valores de mercado das empresas mais ligadas às exportações, desestimulando seus investimentos.


Dois conjuntos de dados ilustram a magnitude desse choque. O primeiro é mostrado pelas duas séries no Gráfico 3, que superpõe os preços médios em dólares das exportações brasileiras aos preços internacionais de commodities . Os movimentos dos preços das exportações brasileiras são causados pelos movimentos nos preços das commodities, aos quais respondem com alguma defasagem. Verifica-se que já ocorreu uma queda dos preços de commodities de aproximadamente 40% com relação ao valor máximo atingido em 2008, e que ainda se vêm reduzindo os preços em dólares das exportações brasileiras. Quando se ajustarem plenamente, estes sofrerão um declínio de magnitude semelhante ao dos preços de commodities . O segundo conjunto de dados é apresentado no Gráfico 4, que mostra a queda no valor em dólares do total das exportações mundiais. Os dados são publicados pelo FMI com defasagem de vários meses, de forma que somente temos o valor em dólares das exportações mundiais até os meses finais de 2008. Porém, até o momento daquele último dado disponível, o valor em dólares das exportações mundiais já havia declinado em torno de 40%, e persistiu declinando, como indicam dados mais recentes da Alemanha, Japão, Estados Unidos e China .


Mas o desestímulo aos investimentos não se restringe à redução das exportações. A força motriz mais importante da aceleração do crescimento do PIB nos últimos anos foi o aumento nos investimentos em capital fixo. As taxas anuais de crescimento dos investimentos em capital fixo foram de 13,4% em 2007 e em torno de 16% em 2008, quando o crescimento do PIB se situava em 5,4% e aproximadamente 5,5%, respectivamente. Esses investimentos foram financiados em grande parte com empréstimos externos de longo prazo, que elevaram a dívida externa do setor privado de us$ 95 bilhões, em 2003, para us$ 133,8 bilhões em 2008, e por um maciço ingresso de recursos de estrangeiros na bolsa de valores, responsável por grande parte dos IPO’s que foram realizados nesse período. A crise produziu um estancamento desses recursos. Paralelamente, as piores perspectivas de crescimento reduziram os valores de mercado de todas as empresas, desestimulando os investimentos não somente nos setores ligados às exportações. Embora os bancos brasileiros escapassem à primeira onda de choque com o estouro da bolha imobiliária, são direta e indiretamente afetados pela queda dos ingressos de capitais . Eles respondem contraindo o crédito e a contração do crédito, somada à queda do emprego, leva à queda do consumo. A soma dessas forças leva à contração da demanda agregada, no Brasil, que está por trás da forte desaceleração no seu crescimento econômico.


Todos esses fatores tinham que levar a uma queda na demanda agregada, e tinham que afetar o hiato de produto no Brasil. No Gráfico 5, comparamos o hiato da produção industrial no Brasil com os hiatos nos EUA, Japão e área do euro como um todo. A maior queda ocorre no Japão, seguida de perto pelo Brasil, mas quedas importantes ocorrem também nos Estados Unidos e na área do euro . No Brasil ocorre o mesmo fenômeno verificado no mundo desenvolvido, ou seja, uma queda na demanda agregada relativamente à capacidade produtiva.
Produzir abaixo da capacidade traz como consequência a queda do crescimento econômico e eventualmente a recessão. A isso se soma o desestímulo aos investimentos em capital fixo, o que reduz o crescimento da própria capacidade produtiva. Na medida em que a crise mundial tem um elevado grau de persistência, continuará emitindo ondas de choque que reduzem persistentemente o crescimento da capacidade produtiva e o seu grau de utilização, deprimindo o crescimento econômico.


Como reagir à crise


O Brasil tem alguma latitude na utilização de políticas contracíclicas, que lhe permite suavizar os efeitos da atual crise, embora não evite sensível desaceleração do crescimento.


Comecemos pela política monetária. Contrariamente ao que ocorreu em outros choques externos, como em 1998 e em 2001, ou mesmo na crise de confiança na transição do governo FHC para o governo Lula, neste episódio a taxa de juros pode e deve declinar. Esta é a primeira vez em que assistimos a um choque externo que contrai persistentemente a demanda agregada, abrindo um espaço para a queda da taxa de juros. Na realidade, dada a magnitude da contração da demanda agregada, no Brasil, se as taxas reais de juros não declinassem sensivelmente assistiríamos a uma queda grande da taxa de inflação, que convergiria para baixo da meta de 4,5% ao ano, mas a “glória” desse resultado teria um custo muito alto: seria obtida ao preço de uma recessão mais profunda e desnecessária.
Contudo, o grau de flexibilidade da política monetária não é dado apenas pela intensidade e velocidade da queda da taxa básica de juros, como também pelas intervenções no mercado de câmbio e pelas ações visando elevar a oferta de crédito bancário.


Olhemos para o uso de reservas. Países com déficits nas contas correntes podem reagir a uma parada nos ingressos de capitais de duas formas: ajustando as suas contas correntes, o que significa combinar uma depreciação cambial com medidas fiscais e monetárias que contraiam o consumo das famílias e os investimentos em capital fixo ; ou financiando esse desequilíbrio no balanço de pagamentos com o uso de reservas internacionais. Se a parada de ingressos de capitais for transitória, pode-se pensar apenas em financiar as necessidades temporárias do balanço de pagamentos com o uso de reservas, sem qualquer ajustamento nos níveis de consumo e de investimento. Mas uma parada mais persistente e mais intensa no ingresso de capitais exige algum ajustamento, e quanto maior for o ajustamento maior será a contração no consumo e nos investimentos, e maior será a depreciação cambial. Se o país não possuísse reservas teria que enfrentar uma depreciação cambial muito maior, elevando-se também a contração no consumo das famílias e nos investimentos em capital fixo, o que aumentaria ainda mais a contração do produto.


As duas séries no Gráfico 6 ilustram esse ponto. Nele representamos os investimentos em capital fixo e as exportações líquidas (as contas correntes), ambas expressas em relação ao PIB. Para que ocorra uma queda no déficit nas contas correntes em proporção ao PIB, têm que declinar o consumo das famílias e os investimentos em capital fixo em proporção ao PIB, mas no Brasil a maior carga desse ajuste é suportada pelos investimentos, levando à forte correlação inversa mostrada no Gráfico 6 . O crescimento dos investimentos leva à queda das exportações líquidas, e se for necessário elevar as exportações líquidas para atingir um menor déficit nas contas correntes, a maior carga do ajuste na demanda doméstica será suportada pelos investimentos.


Até aqui omitimos uma variável importante que é o consumo do governo. O déficit nas contas correntes é o excesso da demanda doméstica sobre o produto, mas a demanda doméstica não é somente a soma do consumo das famílias e dos investimentos em capital fixo (que incluem os investimentos públicos), mas também do consumo do governo (os seus gastos de custeio). A queda na taxa de investimentos leva a uma desaceleração no crescimento econômico. Se o governo reagir cortando seus investimentos, estará contribuindo para ajustar as contas correntes, mas esse não é o melhor caminho, porque traz o custo da queda dos investimentos totais. Se o fizer cortando o seu consumo, estará preservando os investimentos, e permitindo o ajuste com menor custo em termos de perda do crescimento. É claro que nesse sentido a política fiscal ótima seria cortar o consumo do governo, e não os investimentos (privados e público) e o consumo das famílias. Mas uma visão keynesiana estreita pregaria que os gastos de custeio geram demanda, e infelizmente essa visão encontra ecos dentro do governo.


Quais são os limites da utilização de reservas? Como existem reservas abundantes, que no início desta crise superavam us$ 200 bilhões, no Brasil, por que não sustentar o câmbio em um nível mais apreciado, permitindo déficits maiores nas contas correntes com a contrapartida de sustentarem níveis mais elevados de consumo das famílias e de investimento em capital fixo? Se isso fosse feito, o Brasil estaria emitindo um convite irrecusável para que os investidores tirassem capitais do país em velocidade e intensidades que nos levariam a uma crise de balanço de pagamentos. Por quê? A persistência da crise bancária faz antever um longo período de menores ingressos de capitais . A isso se soma o fato de que declinarão sensivelmente os investimentos estrangeiros diretos, devido à queda de lucros das empresas situadas na Europa, Japão e EUA, onde se originam as maiores ondas de investimentos diretos dirigidos ao Brasil. Enfrentaremos um longo período de baixos ingressos de capitais, o que é uma indicação de que a utilização de reservas tem que ser prudente e limitada.


Se o câmbio real fosse mantido mais valorizado, e se políticas fiscal e monetária expansionistas estimulassem o aumento do consumo e do investimento, chegaríamos a déficits maiores nas contas correntes, agravando o problema devido a uma utilização mais intensa e mais veloz das reservas internacionais. O erro cometido pela Rússia logo no início desta crise, sustentando sua taxa cambial em um nível muito valorizado, tentando com isso evitar um ajustamento, foi punido com um forte encolhimento adicional nos ingressos (uma aceleração nas saídas de capitais), que ao final não evita a depreciação cambial .


Olhemos agora para o crédito bancário. O esporte preferido de industriais e comerciantes é atribuir a culpa da atual desaceleração do crescimento ao aumento do spread bancário e à contração do crédito. Nisso contam com a colaboração irrestrita dos políticos. Mas, diante de um choque como este, que expõe o país a uma forte desaceleração do crescimento e eventualmente a uma recessão, não haveria outra coisa que os banqueiros pudessem fazer. A recessão leva ao crescimento da inadimplência, o que requer extrema cautela na concessão do crédito e a abertura de spreads bancários suficientemente grandes para evitar que essa inadimplência se transforme em prejuízos, levando a uma crise bancária. No Gráfico 7, mostramos que a inadimplência já se elevou, e no Gráfico 8 mostramos a evolução dos spreads bancários, também em elevação. Infelizmente a reação racional do sistema bancário introduz uma componente pró-cíclica no comportamento da economia, acentuando a desaceleração da atividade econômica.
A componente contracíclica tem que ser posta em marcha pelo Banco Central, na operação da política monetária, quer reduzindo a taxa básica de juros, quer usando um instrumento que foi muito utilizado no passado para reduzir a demanda, e que agora pode e deve ser usado para evitar uma recessão ainda mais profunda. Esse instrumento é o recolhimento compulsório sobre os depósitos bancários. Reconhecendo esse fato, desde os primeiros sinais desta crise, o Banco Central passou a liberar os recolhimentos compulsórios, evitando uma queda ainda maior do volume de empréstimos. Não chegamos aos mesmos níveis de empréstimos de antes da crise, e nem esse poderia ser o parâmetro de aferição, mas a redução nos recolhimentos compulsórios se soma à queda na taxa de juros para produzir uma componente contracíclica na política monetária.


A outra componente é a expansão do crédito às exportações, que sofreu forte encolhimento com a parada de ingressos de capitais. O Banco Central vem leiloando dólares para financiar exportações, e embora nesses leilões exista a contrapartida de um ativo (as exportações), esse ativo não é tão líquido quanto as reservas em caixa. Por isso, o Banco Central publica as reservas no conceito de caixa, para informar de forma transparente qual é a sua capacidade de quitar compromissos internacionais. Lembramos, contudo, que, mesmo nesse caso, não pode usar reservas acima dos limites da prudência.


Como não reagir à crise


A aproximação dos Estados Unidos da armadilha da liquidez deixa àquele país somente a alternativa de utilizar a política fiscal para estimular a economia. Por isso o governo norte-americano propõe um orçamento, em 2009, com um déficit de 12% do PIB, seguido de déficits elevados também nos anos subsequentes, que elevarão a dívida pública acima de 65% do PIB. Da mesma forma, a China pode estimular a sua economia com medidas fiscais em uma extensão maior do que qualquer outro país emergente, porque tem superávits nas contas correntes, sendo um país exportador de capitais, cuja demanda agregada pode-se expandir sem sofrer as limitações impostas pelos fluxos de capitais ao tamanho de sua conta corrente. Mas um uso mais extensivo da política fiscal não pode ser considerado nessa escala por países com dívida pública grande e uma tradição de crises fiscais passadas, nem por países cuja expansão da demanda agregada leve a um déficit nas contas correntes grande demais relativamente às suas reservas e aos ingressos de capitais esperados nos próximos anos. O Brasil está classificado neste grupo, distanciando-se das condições que existem nos Estados Unidos e na China. Talvez muito gostassem de ser keynesianos, mas a restrição externa limita esse desejo.


Independentemente do que o governo faça, a política fiscal no Brasil será contracíclica em 2009. Com uma margem mínima de gastos públicos discricionários e com elevações de gastos já compromissadas em 2009, que ocorrerão em quaisquer circunstâncias, os superávits primários declinarão com a queda da receita tributária. A desaceleração do crescimento econômico cobrará um preço em termos de redução do superávit fiscal primário, introduzindo uma componente expansionista na política fiscal. No Gráfico 9 mostramos o paralelismo entre as taxas de 12 meses de variação da receita total em termos reais e a produção industrial, e pela tendência da produção industrial conclui-se que a queda na velocidade de crescimento da receita em termos reais será elevada.


O governo pode tomar medidas que estimulem moderadamente alguns setores, sem que isso tenha efeitos sensíveis sobre o crescimento da despesa e/ou a queda na arrecadação, mas não pode seguir políticas fiscais contracíclicas que levem a um crescimento econômico mais acelerado. A primeira razão para isso repousa nos efeitos que teria sobre a absorção: o déficit nas contas correntes cresceria, correndo o risco de se tornar incompatível com a realidade dos ingressos de capitais e com o tamanho das reservas. A segunda vem do fato de que, embora a dívida líquida consolidada do setor público tenha declinado, uma queda maior do superávit primário a colocará em uma trajetória de crescimento, que será ainda maior quanto maior for a utilização de reservas internacionais líquidas, inevitável devido à parada de ingressos de capitais. Embora a dívida líquida do setor público seja um pouco inferior a 40% do PIB, como se vê no Gráfico 10, a dívida bruta supera 65% do PIB, e a distância entre as duas declina na medida em que mais reservas internacionais são utilizadas.


O melhor caminho para a política fiscal é evitar a tentação de gerar estímulos fortes ao crescimento. Tendo produzido ajustes importantes na sua política macroeconômica, nos últimos anos, o Brasil está em condições de emergir da presente crise com capacidade de retomar o crescimento a taxas maiores do que a maioria dos demais países emergentes. A tarefa de realizar ações contracíclicas pode ser muito melhor executada pela política monetária, preservando-se a política fiscal para manter a dívida pública em trajetória de contínuo declínio, medida em relação ao PIB, consolidando os ganhos realizados nos últimos anos.


Mais importante do que isso é o fato de que, no Brasil, crescimentos de gastos são em geral permanentes, e se forem realizados para contrabalançar uma queda temporária de demanda, trarão o custo permanente de um nível maior de gastos e de carga tributária, que reduzirão o crescimento econômico no futuro.



1. Por algum tempo muitos acreditaram que, embora os ciclos econômicos não estivessem extintos, seriam menos frequentes e menos profundos do que no passado. A enorme queda da volatilidade do PIB nos EUA durante o período da The Great Moderation ajudou a consolidar essa crença. Volatilidades menores significam riscos macroeconômicos menores, o que era um convite ao aumento perigoso da alavancagem. Nessa interpretação, o crescimento excessivo da alavancagem não se deve apenas às falhas na supervisão bancária, mas foi, também, estimulado pelas políticas macroeconômicas que geraram as bolhas, particularmente as taxas de juros muito baixas nos Estados Unidos.
2 . O Japão não se defrontou com inflações tão elevadas como nos Estados Unidos e Europa, mas o aquecimento da demanda neste período truncou a deflação que vinha afetando a sua economia desde a sua crise bancária sistêmica ocorrida nos anos 1990.
3 . A preferência pela liquidez se manifesta não somente com a taxa básica de juros próxima de zero, como pela forte ampliação da demanda por ativos como o ouro, cujo preço vem crescendo aceleradamente, ou os títulos do Tesouro dos EUA, rendendo taxas de juros muito baixas.
4 . O Japão não se defrontou com inflações tão elevadas como nos Estados Unidos e Europa, mas o aquecimento da demanda neste período truncou a deflação que vinha afetando a sua economia desde a sua crise bancária sistêmica ocorrida nos anos 1990.
5 . A preferência pela liquidez se manifesta não somente com a taxa básica de juros próxima de zero, como pela forte ampliação da demanda por ativos como o ouro, cujo preço vem crescendo aceleradamente, ou os títulos do Tesouro dos EUA, rendendo taxas de juros muito baixas.
6 . Com base nas exportações da Alemanha, Japão, China e Estados Unidos estima-se com razoável grau de aproximação o comportamento do valor em dólares das exportações mundiais totais.
7 . Os bancos pequenos e médios dependiam proporcionalmente mais do crédito externo.
8 . Esse exercício pode ser realizado para outros países. Uma amostra seletiva inclui países como Turquia, Coreia, China, México e Chile. Em todos eles o perfil do hiato de produto é o mesmo, e ocorrem fortes contrações a partir do momento em que se inicia a crise.
9 . Lembremos, mais uma vez, que o déficit nas contas correntes é o excesso da demanda total doméstica (a absorção, que por sua vez é a soma do consumo das famílias, do consumo do governo e dos investimentos em capital fixo) com relação ao produto.
10 . Lembremos, mais uma vez, que o déficit nas contas correntes é o excesso da demanda total doméstica (a absorção, que por sua vez é a soma do consumo das famílias, do consumo do governo e dos investimentos em capital fixo) com relação ao produto.
11 . O déficit nas contas correntes é, também, o excesso dos investimentos sobre as poupanças totais domésticas, que no Brasil são baixas e mais estáveis, e quando o crescimento se acelera devido ao aumento dos investimentos em proporção ao PIB cresce a distância entre os investimentos e a poupança, elevando o déficit nas contas correntes.
12 . A continuidade da crise bancária e as várias análises do IIF, bem como do FMI, mostram um quadro sombrio quanto aos fluxos de capitais.
13 . Este é um caso interessante. Taxa cambial e prêmios de risco nos títulos de dívida soberana têm uma correlação positiva. Até pouco antes da crise os prêmios de risco de Rússia e México (ambos tinham a mesma classificação pelas agências de rating) caminhavam praticamente juntos, bem abaixo do risco Brasil. Com a crise, devido ao aumento da aversão ao risco, elevaram-se os prêmios de risco de México, Brasil e Rússia, mas atualmente os prêmios da Rússia são praticamente o dobro dos prêmios de risco do Brasil. Estes persistem apenas um pouco acima dos prêmios do México, como ocorria antes da crise. Aumentou a aversão ao risco Rússia, em grande parte devido ao uso imprudente de reservas.

Notas
1. O autor agradece as criticas e comentários de Maria Cristina Pinotti.
2. A lista inclui não somente bancos comerciais, mas também bancos de investimento, seguradoras e gestores de ativos, entre outros. Estas instituições “não bancárias” são as que Paul Krugman chamou de shadow banking system, cuja insolvência joga um papel extremamente importante no agravamento da crise.
3. Por algum tempo muitos acreditaram que, embora os ciclos econômicos não estivessem extintos, seriam menos frequentes e menos profundos do que no passado. A enorme queda da volatilidade do PIB nos EUA durante o período da The Great Moderation ajudou a consolidar essa crença. Volatilidades menores significam riscos macroeconômicos menores, o que era um convite ao aumento perigoso da alavancagem. Nessa interpretação, o crescimento excessivo da alavancagem não se deve apenas às falhas na supervisão bancária, mas foi, também, estimulado pelas políticas macroeconômicas que geraram as bolhas, particularmente as taxas de juros muito baixas nos Estados Unidos.
4. O Japão não se defrontou com inflações tão elevadas como nos Estados Unidos e Europa, mas o aquecimento da demanda neste período truncou a deflação que vinha afetando a sua economia desde a sua crise bancária sistêmica ocorrida nos anos 1990.
5. A preferência pela liquidez se manifesta não somente com a taxa básica de juros próxima de zero, como pela forte ampliação da demanda por ativos como o ouro, cujo preço vem crescendo aceleradamente, ou os títulos do Tesouro dos EUA, rendendo taxas de juros muito baixas.
6. Lembremos do tsunami de IPO’s ocorrido neste período.
7. Os preços médios das exportações brasileiras são os computados pela Funcex. Os preços internacionais de commodities são representados pelo índice CRB.
8. As variações no índice CRB precedem no tempo as variações dos preços médios das exportações brasileiras, o que estabelece a relação de causalidade. Uma variação de 1% nos preços de commodities leva a longo prazo a uma variação de aproximadamente 1% nos preços das exportações. Mas a resposta dos preços das exportações a um choque nos preços de commodities não é imediata, ocorrendo gradualmente. O ajustamento total se completa em aproximadamente um ano.
9. Com base nas exportações da Alemanha, Japão, China e Estados Unidos estima-se com razoável grau de aproximação o comportamento do valor em dólares das exportações mundiais totais.
10. Os bancos pequenos e médios dependiam proporcionalmente mais do crédito externo.
11. Esse exercício pode ser realizado para outros países. Uma amostra seletiva inclui países como Turquia, Coreia, China, México e Chile. Em todos eles o perfil do hiato de produto é o mesmo, e ocorrem fortes contrações a partir do momento em que se inicia a crise.
12. Lembremos, mais uma vez, que o déficit nas contas correntes é o excesso da demanda total doméstica (a absorção, que por sua vez é a soma do consumo das famílias, do consumo do governo e dos investimentos em capital fixo) com relação ao produto.
13. O déficit nas contas correntes é, também, o excesso dos investimentos sobre as poupanças totais domésticas, que no Brasil são baixas e mais estáveis, e quando o crescimento se acelera devido ao aumento dos investimentos em proporção ao PIB cresce a distância entre os investimentos e a poupança, elevando o déficit nas contas correntes.
14. A continuidade da crise bancária e as várias análises do IIF, bem como do FMI, mostram um quadro sombrio quanto aos fluxos de capitais.
15. Este é um caso interessante. Taxa cambial e prêmios de risco nos títulos de dívida soberana têm uma correlação positiva. Até pouco antes da crise os prêmios de risco de Rússia e México (ambos tinham a mesma classificação pelas agências de rating) caminhavam praticamente juntos, bem abaixo do risco Brasil. Com a crise, devido ao aumento da aversão ao risco, elevaram-se os prêmios de risco de México, Brasil e Rússia, mas atualmente os prêmios da Rússia são praticamente o dobro dos prêmios de risco do Brasil. Estes persistem apenas um pouco acima dos prêmios do México, como ocorria antes da crise. Aumentou a aversão ao risco Rússia, em grande parte devido ao uso imprudente de reservas.



Ex-presidente do Banco Central do Brasil (1983-1985), é doutor em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo e professor aposentado da USP.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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