01 outubro 2014

A Culpa é Sempre dos Outros

Não é de hoje que, no Brasil, prefere-se culpar o outro antes de voltar o olhar para si próprio. Isso quando não se joga para o passado problemas que ainda fazem parte da agenda atual. Esse tipo de atitude, que aparece nas mais diferentes situações de tensão, é particularmente frequente nos casos de racismo, quando com muita facilidade se joga para o “outro” – seja o vizinho, a história, o amigo, o familiar – a pecha do preconceito.

Não é de hoje que, no Brasil, prefere-se culpar o outro antes de voltar o olhar para si próprio. Isso quando não se joga para o passado problemas que ainda fazem parte da agenda atual. Esse tipo de atitude, que aparece nas mais diferentes situações de tensão, é particularmente frequente nos casos de racismo, quando com muita facilidade se joga para o “outro” – seja o vizinho, a história, o amigo, o familiar – a pecha do preconceito. Chamado por Florestan Fernandes, nos anos 19701, de “preconceito de ter preconceito”, esse tipo de comportamento retroativo já faz parte do nosso vocabulário cotidiano, que delega a outrem, males que também são nossos e de cada um. Expresso como uma forma particular de racismo, esse modelo alternativo permanece, de alguma forma, conectado à maneira local e silenciosa de lidar com o nosso passado, e, em particular, com o enraizamento do sistema escravocrata no país. Último país a abolir a escravidão no Ocidente, no Brasil e, sobretudo, em tempos da jovem República, logo pairou um mal estar coletivo, diante da situação “herdada” dos tempos do Império. Exemplo flagrante, nesse sentido, é o caso que envolveu a seleção do nosso hino nacional.
O sistema escravocrata acabou oficialmente em maio de 1888, a partir de uma lei curta e peremptória, que não lidava com as consequências de um ato tão monumental. Dizia o texto breve da lei – “a partir de hoje não há mais escravos no Brasil” –, sem especificar como se daria a inclusão desse vasto grupo, mal preparado para competir com os imigrantes europeus e asiáticos, que vinham de contextos urbanos e estavam mais acostumados a lidar com as profissões liberais que por aqui passavam a ocupar. Último ato da monarquia, e talvez o mais popular, a medida visava, sobretudo, garantir um Terceiro Reinado nas mãos da Princesa Isabel, estratégia que, hoje bem sabemos, mostrou-se das mais enganosas. Já a medida, apesar de tardia, veio para ficar, ao menos em sua forma oficial.
Talvez por isso, a Lei Áurea tenha saído, assim, de forma breve, direta e sem prever ações que ajudariam a redimir a aberrante desproporção histórica criada no decorrer de quase cinco séculos de entrada forçada de imigrantes africanos. O Brasil recebeu 40% do total de africanos que compulsoriamente deixaram seu continente para trabalhar nas colônias agrícolas do continente americano, sob regime de escravidão, num total de cerca de 3,8 milhões de imigrantes2. Hoje, com 60% de sua população composta de pardos e negros, o Brasil pode ser considerado o segundo mais populoso país africano, depois da Nigéria, a despeito de, com frequência, não nos darmos conta dessa realidade. Miramos sempre a imagem europeia e perdemos muitas vezes contato com o chão local.
Mas, voltemos, mais uma vez, ao contexto hoje longínquo, de finais de 1889 e inícios de 1890, quando, no país, o regime republicano se iniciava e com ele era preciso não apenas rever, como inaugurar uma série de símbolos e emblemas pátrios, que melhor definissem a nova situação política então vigente. Vale a pena destacar, ainda, que, num país agora republicano, a lei previa a igualdade jurídica, mas não primava por dar condições para que essa fosse exercida de maneira plena. Tanto é que, nesse período, teorias científicas, deterministas e raciais ganham espaço no Brasil, delimitando que a humanidade seria cindida por espécies diferentes, já que essas apresentavam condições biológicas essencialmente distintas, que implicavam, por sua vez, um acesso diferenciado à cidadania.
Pior do que as diferentes raças – em suas qualidades e defeitos -– era, porém, a mestiçagem; essa sim entendida como um sinal da falência da nação. Médicos como Nina Rodrigues, da Escola de Medicina da Bahia, chegavam até a propor a vigência de dois códigos penais distintos, visando ajustar o corpo da lei às diferentes “condições mentais” das diversas populações que compunham o país.3
Aliás, a saída era “ajustar” ao mesmo tempo que “negar”. Tanto que dois meses após a Proclamação da República, já em janeiro de 1890, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, é aberta uma disputa para a seleção de um novo hino nacional, fazendo jus ao novo regime que surgia alardeando bandeiras como a cidadania, a igualdade e a liberdade. O resultado final da contenda seria, no entanto, paradoxal. Sagrou-se vencedor o belo hino de Leopoldo Miguez, com letra de José Joaquim de Campos da Costa. No entanto, reza a lenda, que Deodoro, em lágrimas, teria dito um solene e sonoro: “Prefiro o velho”. Ou seja, mesmo ganhando a disputa, o hino, formado por dois reconhecidos artistas à época, foi nomeado “Hino de Proclamação da República”. É por isso que até hoje, no Brasil, vigora o regime republicano, mas o hino nacional do país permanece (mesmo que envergonhadamente) o do Império. O famoso “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas”.
Liberdade negra, igualdade branca
Mas, é hora de retornar ao nosso tema e esquecer (por um tempo) os paradoxos. A letra do hino vencedor, além de clamar pela “Liberdade”, que “abriria as asas sobre nós”, trazia uma frase no mínimo reveladora acerca dos constrangimentos reinantes nesse momento e da saída política dessa maneira vocalizada: “nós nem cremos que escravos outrora tenham havido em tão nobre país”. Ora, a escravidão mal havia acabado e já não se acreditava (ou se lembrava) que tivessem existido escravos no país? Tal regime foi vigente no Brasil desde os tempos coloniais e tomou o território na sua inteireza, naturalizando costumes, convenções e violências, mas, mesmo assim, parecia ter restado, encastelado no passado. Essa é, de fato, a famosa amnésia nacional, que se abate sobre nós em momentos de clara comoção.
Essa mania de dar um tapa na memória, em momentos estratégicos, parece ser uma marca brasileira, sobretudo quando o problema aperta e exige uma solução mais pragmática e menos retórica. Nesses casos, é melhor esquecer ou jogar a culpa em algum outro, nem que seja no passado. A monarquia terminara fazia menos de dois meses, mas a compreensão oficial era de que os males da escravidão teriam ficado encarcerados, aliás devidamente encerrados, com o final daquele regime.
Talvez seja por isso que, nesse contexto de início do século XX e do próprio exercício do regime republicano no país, distinguiram-se, com grande facilidade, conceitos como liberdade e igualdade. Conforme mostrou o sociólogo Antônio Sérgio Guimarães, se a liberdade era negra, a igualdade continuava a ser branca4. Ou seja, enquanto a liberdade fora garantida no corpo da lei; a igualdade, era negada pela ciência determinista da época e pela realidade que prometera a inclusão, mas entregava, em grandes remessas, a exclusão social. Afinal, nesse momento, as teorias científicas raciais questionavam o jusnaturalismo da lei, “demonstrando” como não havia na prática igualdade biológica. De tal constatação decorria o reconhecimento de uma desigualdade jurídica (natural), dado que transformava a lei em mera utopia5.
Tema da maior relevância, ainda nos dias de hoje, essa separação heurística entre dois termos aparentados – liberdade e igualdade – ainda cala fundo na nossa realidade. Não é coincidência o fato de questionarmos, com frequência, os termos da lei e acharmos que a realidade desmente o que a justiça preconiza. Aliás, já nos anos 1930, Sergio Buarque de Holanda denunciava o nosso “uso frouxo” das instituições e o hábito de preferirmos resolver tudo no plano pessoal, em vez de recorrer aos órgãos públicos6. Mais ainda, segundo o mesmo autor, temos um fascínio pelas ideias fáceis e uma dificuldade constrangedora de “nos apalparmos” e de tirarmos nossa foto três por quatro.
Talvez por isso, o procedimento padrão consiste (ainda) em “naturalizar” o que, de fato, é efeito da sociedade. Diante do incremento da violência, que assola sobretudo (mas não apenas) as grandes cidades brasileiras, a saída mais fácil é botar a culpa nos atos alheios. Nada como jogar os males “no outro”, aquele que é “diferente” – esse “vizinho estranho” – e que nada tem a ver com esse “eu social”, que vive a meu redor e me cerca, criando uma “salutar” zona de conforto. Talvez por isso seja preferível conhecer a periferia através dos jornais e nomeá-la no singular, em vez de conceder a ela a mesma multiplicidade com que gostamos de nos reconhecer.
Não obstante, construir (e criticar) a “periferia” faz parte do mesmíssimo processo que eleva o “centro”, até porque sabemos que essas são linhas fronteiriças e simbólicas, que só se constituem em relação: uma em relação à outra. Ou seja, se não existir um centro, não há a periferia e é esse efeito espelhado que costumamos perder de vista.
Só nos relacionamos com o “mesmo”
Além do mais, por conta dessa estratégia pre-meditada e crescente de isolamento – os muros nas casas, os novos edifícios que se parecem com bunkers guardados, os shoppings com a devida proteção arquitetônica e policial para evitar “a invasão” de populares –, em vez de as cidades brasileiras representarem locais para o encontro da diferença e da convivência com a riqueza da diversidade, acabamos por nos acomodar e habitar em verdadeiras ilhas de pertencimento, onde convivem populações assemelhadas, ao menos em termos de classe, de raça, gostos e padrões de consumo. Só nos relacionamos com o “mesmo” e, ao falarmos de um local particular, não nos responsabilizamos com o que ocorre nos “outros lugares” que são, por definição e preferência, “outros”. Na verdade, representar a periferia como um lugar cristalizado, essencial e singular em sua realidade é operação que acaba por despolitizar o problema, uma vez que a questão escorrega do âmbito social para, mais uma vez, ser entendida como um tema da natureza; com a qual não se discute ou interfere. “Eles” seriam não só “outros”, como pretos, pobres e por isso analfabetos e mal educados. Mais uma vez, acionamos o “efeito do hino da República” e esquecemos que “outrora” é hoje mesmo,ainda mais que o que explica tal situação é menos a biologia e mais a ação dos homens.
Processos de constituição de espaços sociais fazem parte do arbítrio do social e são resultado da agência humana e de seu processo de construção de diferenças. Nessa mesma perspectiva é que se conferem direitos a alguns, em detrimento de outros. É esse o famoso estereótipo do “lá e cá”, essa sorte de teoria do senso comum que engessa diferenças e costuma ser mais influente do que muitas outras filosofias.
A cada semana morrem 50 mil pessoas no Brasil7, sendo a maioria das vítimas homens, negros e jovens. Entretanto, enquanto os jornais comentam (corretamente é preciso dizer) guerras que estouram em outros locais do planeta, por aqui, a violência merece pouco espaço nos jornais. Por outro lado, mortes na periferia não afetam nossa sensibilidade diuturna, enquanto delitos e acidentes nos bairros centrais são noticiados com grande comoção dos leitores. Nos bastidores dessa desproporção emocional, persistem as nossas instituições que nasceram e, teimosamente, mantêm-se frágeis: a polícia que não prende, mas atemoriza; que amedronta, mas não oferece segurança; a população prisional que continua aguardando julgamento; as cidades que se organizam a partir de estruturas desiguais; segurança vira questão da ordem do privado e mais se parece com privilégio (de poucos); e o descontrole que escapa sempre à nossa responsabilidade cidadã.
Ora, se invertermos o diálogo, segurança pode virar direito e não apenas repressão, relativizar a diferença absoluta entre territórios é bem melhor do que congelá-los em suas particularidades, assim como valeria a pena assumir coletivamente a cartela não só de direitos, mas de deveres nossos como cidadãos.
Na verdade, diante de nossa passividade frente aos inúmeros atos do cotidiano – as batidas policiais que visam na maior parte das vezes aos pretos e jovens; as admoestações públicas que selecionam os mais pobres; os espaços coibidos dos clubes, lojas e museus; a gritante maioria branca em teatros, restaurantes, cinemas, salas de concerto – o sentimento só pode ser de uma pouco confortável cumplicidade, ou no mínimo de uma conivência se não voluntária, ao menos consentida.
Lugar social de suspeito
Mas, nada como chegar mais perto desse tipo de cena e selecionar uma das várias violências do cotidiano. É nesse sentido que gostaríamos de introduzir o conceito de “interpelação”; aliás, utilizado pelo antropólogo Didier Fassin para analisar a ação da polícia na cidade de Paris8. Trata-se de um pequeno mas eficiente “teatro teórico e pragmático”, que consiste em impedir ou dificultar, aos indivíduos que se submetem livremente à lei, o lugar de sujeitos. Foucault chama esse tipo de processo de “assujeitamento”9, quando o indivíduo, diante do temor da interpelação da polícia, assume um lugar social em que normalmente não se reconhece: o de suspeito. O fato é que, em certas situações sociais, não basta ser de fato inocente para não ser considerado culpado. Logo se aprende – a partir de um vocabulário corporal que vai sendo incorporado no convívio em sociedade – como, sob o olhar vigilante “dos outros”, constituem-se lugares sociais, mas também geracionais e raciais.
Tal teatro da polícia produz situações de vergonha, mesmo quando as vítimas não são culpadas. Ou seja, diante da violência da situação pública, a humilhação se inscreve nos corpos de adolescentes negros, que não só encarnam a experiência a partir dos olhos externos da sociedade, como eles mesmos assumem a representação do lugar que lhes é reservado: “você está se transformando naquilo que é ou deve ser”.
Esse tipo de “memória incorporada”, quando antes de refletir os corpos parecem saber do que se trata, faz parte de uma realidade cotidiana e pública entre nós, um vocabulário partilhado tanto entre os que a vivem e sofrem, como no meio daqueles que a observam: a admoestação, a exigência de documentos, os corpos curvados e expostos ao olhar dos demais, as mãos na nuca, os empurrões e, enfim, a resposta muda.
Naturalizar um estado de guerra
Marcadores sociais de diferença, como raça, cor, gênero, geração, classe, região, são acionados nesses momentos exemplares e se constituem em indícios certeiros para a eficiente realização do espetáculo público. É quando já se sabe, mesmo antes de entender. Aqueles que sofrem a agressão logo assumem o papel que lhes é destinado. Aqueles que observam de longe como espetáculo, a “batida da polícia”, atuam como se estivessem expostos a uma cena já previamente conhecida e classificada. Tudo é naturalizado como se nada interrompesse a sanha do dia a dia. Como se fizesse parte do mesmo roteiro que nos faz levantar, ir para o trabalho, interromper para o almoço, retornar ao escritório para voltar à noite para casa.
No entanto, sabemos que longe de serem categorias naturais, tais marcadores representam construções sociais eficientes, categorias construídas empiricamente e de maneira relacional. Trata-se de um repertório de categorias ambivalentes, modelos que, na mesma medida em que traduzem hierarquias sociais, também repõem ambivalências próprias ao contexto e à manipulação dos indivíduos que se autoclassificam. Cor, idade, lugar são, pois, conceitos socioeconômicos, regionais e estéticos, mas também elementos interpretativos, acusatórios; sempre diacríticos. Eles funcionam, dessa maneira, e conforme mostrou Pina Cabral para o caso de Macau, como dinâmicas relacionais, “identidades continuadas”. São marcas de relações e sinalizadores emocionais.10
É por isso que noções como as de interpelação e mesmo “pacificação” nada têm de ingênuas. Na verdade, elas sinalizam, ao mesmo tempo que naturalizam, para um verdadeiro estado de guerra. Mais ainda, é como se, sem reconhecer oficialmente, estivéssemos expostos (e sem barreiras) a uma selva com seus habitantes bárbaros e (ademais) beligerantes. O suposto é semelhante e guarda uma lógica parecida com a missão portuguesa Seiscentista, que, quatro séculos antes, pretendia justificar o uso de toda sorte de violência em nome da introdução da “boa e necessária civilização”, nessa terra, que segundo os viajantes era marcada pela “falta”. Homens sem F, sem L, sem R escrevia o viajante português Gândavo, condenando a ausência de Fé, de Lei e de Rei entre nós.11 A ideia de “ausência”, de “menos”, parece ainda estar presente diante do que é, sobretudo, uma grande incompreensão diante da diferença e dos processos que são socialmente criados. É como se o passado escravocrata insistisse em reaparecer, tal qual fantasma culpado.
O suposto é que nas periferias e nas favelas não existiria “nada” – estrutura, educação, lazer –, a não ser a guerra, devidamente racializada e pronta para a chegada da ordem que garante a “normalidade”. O argumento de base apoia-se numa estigmatização de determinados marcadores sociorraciais, criando-se, em pleno século XXI, uma espécie de infracidadania biológica. Violência física, mas também moral, e o ritual da “intimidação” são apenas símbolos, praticados em esferas mais individuais, de práticas mais coletivas que incutem a humilhação. A ineficácia da repressão à delinquência, acompanhada da sempre improvável identificação dos autores de delitos – que leva à acusação impune e sem maiores provas –, faz parte de uma performance do poder, nada estranha ao nosso dia a dia. A liberdade do ir e vir, nesse caso não exclui sujeição; ela apenas reforça a legitimidade do Estado e a submissão que parece voluntária. Logo se aprende como se processa essa construção social, feita a partir do olhar do outro, que devolve sempre a ideia de diferença – o negro, o estrangeiro, o pobre, o maconheiro –, mas de maneira estigmatizada. Essas são pesadas marcas sociais da diferença, e uma vez que elas não são exteriores aos indivíduos, acabam por se inscreverem em seus corpos.
Prática cotidiana da intimidação
Tudo isso é verdade e também distante da verdade. Recorro, para terminar, a um exemplo que ocorreu comigo. Não faz muito tempo, vi dois meninos sendo interpelados abruptamente pela polícia, não nas avenidas movimentadas que trazem e levam a população trabalhadora que mora nas periferias. Ao contrário, estava sentada numa praça situada num elegante bairro dos Jardins, e a cena, a despeito de ir se tornando corriqueira, causou enorme incômodo. Além do mais, nesse caso, os meninos não eram negros. Eram brancos, vestiam bermudas largas e caídas na cintura – como boa parte dos adolescentes –, levavam um boné na cabeça e naquela hora encontravam-se sentados num banco. Mas, nem por isso se livraram do espetáculo do poder, da entrada na praça de três motocicletas barulhentas, pilotadas por um grupo de policiais armados, que desceram de seus veículos de maneira vistosa, abordaram os garotos diante de adultos e crianças inertes e assustados, e logo passaram a intimidá-los. Gritos, pequenos empurrões, o uso ostensivo de lanternas (em plena luz do dia) em busca de um suposto objeto atirado na grama, a obrigatoriedade de baixar os olhos… enfim, toda uma engenharia da humilhação foi montada e bem ao lado de gangorras e balanças. Para concluir o espetáculo, três viaturas da polícia apareceram, com suas sirenes à toda, e trataram de “liberar o local”.
Tudo foi tão rápido que fiquei me perguntando sobre o real motivo de tal espetáculo. Os garotos que estavam ali parados eram, quem sabe, socialmente diferentes do resto do quarteirão. Imagino que alguém deve ter denunciado o ócio alheio, suspeitado de tamanha lassidão, ou presumido que fumavam maconha impunemente. A diferença incomoda, mas quem sabe seria melhor discutir o uso de drogas, em vez de praticar a denúncia acobertada pelo anonimato.
Fim do parágrafo. Não sou especialista nesses temas e seria leviano da minha parte julgar o que de fato lá ocorreu. Além do mais, bem sei que a escala de violência e de humilhação é ainda maior em um bairro de periferia e com garotos negros. Mas minha indignação é também outra. Em primeiro lugar, chama atenção a prática cotidiana da intimidação. Abrir as pernas, olhar para o chão, permanecer em silêncio é protocolo da polícia, mas o excesso de exibição de violência é em si significativo. De outra parte, foi triste notar como os adolescentes logo incorporaram – e que saída tinham? – o papel de réus; representação que lhes era impingida de fora. Pior: muitas vezes a experiência de vergonha e de injustiça vem acompanhada de um sentimento de culpa diante de uma situação que se repete. Naquele lugar e hora “errados”, eles bem poderiam ser “culpados”. Aí estava um jogo de corpo: aquele que confirma o que o teatro social suscita.
Diante dessas situações-limite é difícil reagir frente à precariedade da cidadania de certos grupos ou da segregação internalizada que nossos bairros mais centrais carregam, silenciosamente. É nesses momentos, quando a regra democrática é suspensa, que nos sentimos de alguma maneira inconfortáveis diante do que mais parece uma aberta demonstração de cumplicidade. Sim, pois por mais que o ritual fosse claramente violento, a saída de todos nós que ali estávamos foi de um profundo e constrangedor silêncio, inclusive dessa que aqui escreve.
A violência do outro dói, mas dói também o reconhecimento da impotência e da aceitação desse tipo de ato, que já se transformou em “natural”. O sentimento de culpa e de impotência nos assola e levaria a uma reação caso não fôssemos pessoas acostumadas, a longa data, a esse tipo de socialização. São coisas da vida, como canta o bardo Roberto Carlos. “De que lado estamos nós?”, pergunta Howard Becker num trabalho dedicado a comportamentos desviantes12.
Por certo, não existem respostas prontas ou cardápios fechados. Construir sociedades plurais no lugar de defender a homogeneidade; valorizar os espaços públicos em vez de gradeá-los; ampliar espaços de encontro das diferenças em vez de inibi-los são motivações que fazem parte de uma agenda cidadã e republicana. Não se constrói cidadania entre muros, com a disseminação de políticas de medo e abrindo mão de responsabilidades públicas.
Assumir o lugar de atores sociais é, de alguma maneira, opor-se a saídas teleológicas, que definem o futuro como um lugar sempre redentor. Os desafios estão no presente, o que implica propor alternativas, pressionar o Estado e agir coletivamente.
O antropólogo C. Geertz certa vez escreveu que “as sociedades, tal como as vidas, contêm as suas próprias interpretações”13. Quem sabe a nossa esteja reservada nesse local paradoxal, que mistura em doses equilibradas (e perversas) inclusão com muita exclusão social.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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