05 janeiro 2016

A Desburocratização Como Agenda Permanente

Em momentos de crise, o tema da simplificação administrativa assume lugar privilegiado no debate público. Parece natural que em situações de estagnação econômica e frágil sustentação política da coalizão governista, como na atual conjuntura, esforços sejam lançados de forma mais contundente sobre a redução do chamado “custo Brasil”.

Em momentos de crise, o tema da simplificação administrativa assume lugar privilegiado no debate público. Parece natural que em situações de estagnação econômica e frágil sustentação política da coalizão governista, como na atual conjuntura, esforços sejam lançados de forma mais contundente sobre a redução do chamado “custo Brasil”. Afinal, o discurso em favor de um aparato estatal mais eficiente assume contornos suprapartidários e consensuais, soando como um caminho promissor não apenas ao governo, mas também ao setor produtivo e aos cidadãos.
Os números corroboram a importância da eliminação de entraves burocráticos para o desenvolvimento econômico e social do país. No mais recente relatório Doing Business2, publicado pelo Banco Mundial, o Brasil surge na 116a posição do ranking geral sobre a facilidade de se realizar negócios, em um total de 189 países pesquisados. É especialmente preocupante o fato de que caímos cinco posições em relação ao levantamento anterior, o que sugere a insuficiência ou baixa eficácia de políticas governamentais voltadas à redução do custo empresarial.
Quando descemos a alguns indicadores isolados do Doing Business 2016, o cenário é ainda mais gravoso. No que diz respeito à facilidade de se abrir uma empresa, ocupamos a 174a posição. Enquanto na cidade de São Paulo são exigidos 11 procedimentos para o início de uma empresa, em um processo que leva aproximadamente 101,5 dias (na cidade do Rio de Janeiro esse número é reduzido para 54 dias), a média apurada entre países da América Latina e do Caribe é de oito procedimentos e 29,4 dias. Entre os países membros da OCDE, descemos a médias de 4,7 procedimentos e 8,3 dias. Quanto à facilidade de se pagar impostos, o Brasil surge na 178a posição3, com cerca de 2.600 horas anuais dedicadas por empresas ao cumprimento de suas obrigações tributárias, quando a média da América Latina e Caribe e de países da OCDE não passa de 361 horas e 176,6 horas, respectivamente.
O custo da burocracia não afeta apenas o ambiente empresarial. Em recente pesquisa conduzida pelo Ibope, em parceria com a Confederação Nacional da Indústria, a sociedade manifestou-se de forma categórica no sentido de que os excessos burocráticos são prejudiciais ao cidadão4. Dentre habitantes de 142 municípios brasileiros, 77% consideram o Brasil um país burocrático ou muito burocrático. Os entrevistados também avaliaram o grau de dificuldade na realização de serviços e procedimentos e, a partir desses resultados, foi construído um indicador de dificuldade. Entre os procedimentos em que se constatou maior insatisfação estão: (1) encerramento de empresa; (2) abertura ou constituição de empresa; (3) compra de imóvel; (4) realização de inventário; (5) requisição de aposentadoria ou pensão; (6) emissão de passaporte; (7) obtenção de licença para construção ou reforma de imóvel; (8) locação de imóvel; e (9) licenciamento, vistoria ou transferência de veículo.
Os dados da pesquisa Ibope/CNI mostram que a percepção de que temos que desburocratizar já está amplamente difundida na sociedade brasileira. Aproximadamente três quartos dos entrevistados entendem que o excesso de burocracia representa (i) estímulo à corrupção; (ii) desestímulo aos negócios; (iii) incentivo para que o governo gaste mais do que o necessário; e (iv) estímulo a informalidade. Não por outro motivo, 72% dos cidadãos concordam total ou parcialmente com a afirmativa de que o governo deveria eleger o combate à burocracia como uma prioridade inadiável.
Se a patologia já foi diagnosticada tanto pelo governo quanto pela sociedade civil, a pergunta que se coloca é por que ainda não demos uma resposta à altura do problema. Não teríamos encontrado antídoto apto a eliminar os excessos burocráticos?
Janela de oportunidade
O que se argumenta é que esforços inovadores de simplificação adotados no curso da história administrativa brasileira sucumbiram em razão de uma tendência perniciosa de se tratar da desburocratização como agenda prioritária apenas em momentos de crise. O Brasil contou com iniciativas revolucionárias nessa temática, porém importantes medidas legislativas e programas governamentais perderam fôlego com o tempo. Para que tomemos um rumo diferente, a desburocratização não deve ser tratada apenas como prioridade, mas como verdadeira condicionante ao desenvolvimento brasileiro5.
Diante disso, a atual conjuntura oferece uma janela de oportunidade para que se materializem as bases necessárias à adoção de uma política de Estado permanente e estável de simplificação. A desburocratização deve ser compreendida como uma ação política com o propósito de recolocar o cidadão como o destinatário de toda a atividade administrativa. Como tal, independentemente do lado para o qual pender a disputa de poder que se instalou no país, a desburocratização é um tema que merece assumir protagonismo em um necessário processo de reconstrução política. Pretendemos enfocar essa faceta positiva da crise, apontando como a inclinação hodierna da opinião pública à defesa de mudanças estruturais pode favorecer a consolidação da desburocratização como uma agenda permanente e, por consequência, aperfeiçoar a democracia no Brasil.
Resgate de iniciativas positivas
Pensar o futuro demanda, em primeiro lugar, um olhar ao passado. É imperativo que retomemos as características dos principais programas de simplificação já levados a cabo pelo governo brasileiro. Uma cuidadosa revisão histórica permite o resgate de iniciativas positivas que foram perdidas com o tempo e nos alerta para caminhos que já se mostraram equivocados em outras oportunidades. O já antigo – porém ainda não revogado – decreto-lei no200/67, por exemplo, fundou a mais bem-acabada arquitetura jurídica para dar efetividade ao princípio da confiança no trato com a Administração Pública. Apesar disso, o mesmo apego ao formalismo que o decreto buscava combater tomou proporções inimagináveis ao longo do tempo, mediante novas legislações que representaram uma guinada em favor da cultura da desconfiança e do carimbo.
Também é imprescindível que olhemos para o lado. A conformação de uma estrutura burocrática funcional, no sentido weberiano6 do termo , é medida indispensável em Estados contemporâneos, que dependem de um aparato técnico e impessoal para se verem livres de rudimentos autoritários. Nada obstante, a consolidação de uma burocracia sem excessos sempre foi uma tarefa desafiadora aos governos democráticos. Não foi apenas no Brasil que se vivenciou a propagação de obrigações desnecessárias, legislações redundantes e, de forma mais geral, o afastamento da administração pública de seu sentido primeiro: servir ao público. Por isso mesmo, vários países têm adotado medidas contundentes para se combater de forma estrutural a burocratização. Nesse sentido, conhecer a experiência comparada é essencial para a solução de nosso problema. O exemplo de Portugal, a quem atribuímos nossa tradição burocrática, é particularmente importante para que se perceba um horizonte possível de mudanças radicais. Basta lembrar que a criação de empresa não mais depende de registro perante o governo português.
A partir desses elementos serão apresentadas sugestões para que se efetive uma política de Estado mais consistente e compatível com as particularidades culturais de nosso País. Para dar sustentação a essa política, propõe-se o estabelecimento de um marco legal mais coeso e claro, apto a conferir maior segurança jurídica às relações travadas entre o Estado, a empresa e o cidadão. Tal substrato normativo poderia conferir sustentação ao tratamento da desburocratização como uma operação de longo prazo em todos os níveis federativos. Deve-se ter em mente, contudo, que a solução não começa e nem termina no texto de uma lei. É preciso uma modificação radical no funcionamento da administração pública como um todo, com a valorização do espaço de decisão do gestor público, incentivos à inovação, deslocamento dos esforços de controle para resultados, em detrimento de processos, e, acima de tudo, a revalorização do princípio da confiança.
O Brasil é um país de dimensões continentais, em que as desigualdades regionais demandam especial atenção. Não se postula, por conseguinte, uma solução universal e centralizada para o problema da burocracia. Ao contrário, a descentralização administrativa é a única alternativa crível para a implementação de uma consistente política de desburocratização.
I. A experiência brasileira
As raízes coloniais da administração pública brasileira são usualmente indicadas como fatores preponderantes na formação de nossa cultura burocrática7. Abrucio, Pedroti e Pó enumeram as duas formas de comando características do período colonial: (i) um viés centralizado das atividades administrativas, marcado “por um excesso de procedimentos e regulamentos, tendo como fundamento filosófico uma visão de que o Estado vem antes da sociedade”8; e (ii) uma estrutura local de governança de caráter patrimonialista, resultante em uma privatização do espaço público. Nossa administração formou-se, então, a partir da síntese entre o centralismo excessivamente regulamentador e o patrimonialismo local.
As primeiras manifestações contra o fenômeno da burocratização dos serviços públicos remontam à segunda metade do século XIX e estiveram relacionadas com o adensamento do debate sobre centralização política. Visconde do Uruguai, um defensor da centralização política, mostrava preocupação com as consequências adversas da centralização administrativa, que produziria a lentidão do processo decisório a partir da multiplicação de engrenagens estatais. Irineu Evangelista de Souza, o Visconde de Mauá, foi outro precursor importante do inconformismo com a centralização administrativa. Reclamava ele que no Brasil tudo dependia de autorização governamental, pouco sobrando para a iniciativa individual. O símbolo desse período é o “alvará régio”, ou seja, a autorização do rei para qualquer empreendimento de caráter empresarial. Foi-se o “régio”, mas o termo alvará continua tendo uma forte carga simbólica: ele significa que a iniciativa individual depende de uma concessão unilateral do Estado.
Do fim da monarquia à Revolução de 30, o processo político caminhou no sentido da descentralização, com o poder político sendo transferido para as províncias sob a forma de consolidação das oligarquias locais e do coronelismo. O Estado Novo, de 1937 a 1945, inaugurou um novo ciclo de centralização política pelo governo federal e de correspondente enfraquecimento do poder local. Entretanto, os revolucionários de 30, inspirados no positivismo – a doutrina filosófica de Auguste Comte – que alcançou no Brasil uma importância singular, atribuíam à modernização do Estado, ainda que pela via autoritária, fundamental importância no seu projeto político. Para os positivistas, na ausência de elites preparadas e diante de uma economia capitalista tíbia, caberia ao próprio Estado modernizar-se.
Modernizar, no caso, implicava, entre outras providências, dar maior agilidade e eficiência ao setor público. Datam desse período a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp) – primeira tentativa de dar organicidade ao sistema de compras públicas e ao regime de pessoal –, a instituição dos primeiros concursos públicos de abrangência nacional, a adoção do sistema do mérito e a criação de autarquias dotadas de autonomia gerencial e financeira. A criação dos Institutos de Previdência Social (IAPs), sob forma de autarquias dotadas de autonomia financeira e operacional, constituiu o primeiro esforço interno de descentralização a romper com o rigorismo formal dos órgãos centrais de governo.
Foi um período rico de iniciativas governamentais, constituindo-se numa tentativa de resolver o dilema do Visconde de Uruguai, qual seja, o de conciliar o centralismo político, essencial ao regime autoritário, com a descentralização administrativa, necessária à modernização do setor público. Não por outro motivo, aponta-se o modelo daspiano como “a primeira estrutura burocrática weberiana destinada a produzir políticas públicas em larga escala”9. Fernando Abrucio observa, contudo, que a ênfase em normas e procedimentos ganhou maior ressonância do que os princípios do mérito e do universalismo, também centrais ao ímpeto reformista. Ou seja, a partir de uma lógica formalista, procedeu-se com uma valorização maior dos meios em si do que dos fins, traço que ainda se perpetua na tradição administrativa brasileira.
A redemocratização, a partir de 1946, reduziu o ímpeto da modernização que marcou o período autoritário. De toda maneira, a preocupação com a eficiência administrativa permaneceria latente, em particular um núcleo de administradores públicos de alta competência, uma “elite modernizante” que exerceu por três décadas notável influência nos destinos da administração pública. Esses “grupos executivos” permitiram um grau de flexibilidade decisória inexistente nos órgãos centrais. Esse movimento iniciado na década de 50 redundou na criação e na consolidação de grandes empresas estatais e órgãos de fomento, que se posicionavam como “celeiros técnicos de alta qualificação”, tornando-se “instrumentos fundamentais de financiamento do processo de industrialização”10 e o verdadeiro braço moderno do Estado.
Avançando sobre o breve período do governo João Goulart, tivemos a criação de um Ministério Extraordinário da Reforma Administrativa, sob o comando de Amaral Peixoto, político fluminense de prestígio desde o Estado Novo. Também é digna de menção a reforma administrativa empreendida no Estado da Guanabara, em 1962, no governo Carlos Lacerda. Em 1964, o presidente Castello Branco, o primeiro governante da ditadura militar, tratou de aproveitar o diagnóstico que já havia sido realizado no âmbito federal e no governo da Guanabara e criou uma Comissão de Reforma Administrativa.
PND e descentralização
A reforma administrativa de 1967 foi um momento marcante do ponto de vista da desburocratização. Na Comissão, ocorreu um embate entre duas correntes de pensamento: uma, tradicional, que enxergava o processo de reforma como um problema de adequação das estruturas governamentais, com ênfase especial na concepção de um novo organograma para o governo federal. A outra corrente, defendida por Helio Beltrão, percebia a reforma como um verdadeiro processo, no qual o elemento humano tinha importância fundamental. Dizia Beltrão, naquela época, que as organizações, assim como os planos de governo, valem exatamente o que valem as pessoas que as administram e os executam.
Os primeiros anos da reforma administrativa de 1967 foram marcados pela ênfase na descentralização administrativa, na delegação de competência e no reforço da autonomia das entidades da administração indireta, em particular das empresas estatais. Logo na primeira parte do Decreto-Lei 200/67 encontravam-se os princípios norteadores da reforma. No entanto, o recrudescimento do regime militar, em 1969, comprometeu, principalmente, a meta da descentralização administrativa. Isto porque, dentro da lógica autoritária, não era aceitável que, em nome da eficiência técnica da administração, o poder central deixasse de controlar todas as instâncias decisórias do Estado.
Em 1979, no curso do processo de abertura política do regime autoritário, inicia-se um novo ciclo por meio do Programa Nacional de Desburocratização (PND). Tornou-se, então, possível retomar a reforma administrativa, dentro de uma perspectiva de descentralização e – esta a grande novidade – com ênfase especial no interesse do cidadão como usuário dos serviços públicos. Nas palavras de Beltrão, o PND procurava “reumanizar a administração e voltá-la para fora, isto é, redirecioná-la no sentido de servir melhor ao usuário, que constituiu sua razão de ser”11.
Pela primeira vez o governo federal passou a tratar a questão da reforma não mais como uma proposição voluntarista do próprio Estado, mas como condição essencial do processo de redemocratização, o que antecipava, em grande medida, a discussão da nova gestão pública, que se consagrou internacionalmente e ganhou força no Brasil em meados dos anos 1990. Como reconhecem os estudiosos do tema, “sem dúvida alguma foi uma grande inovação, não apenas em relação à história cartorial e burocrática da administração pública brasileira, mas mesmo em comparação ao que ocorria no plano internacional”12.
Dois grandes projetos oriundos do Programa Nacional de Desburocratização foram aprovados, em 1984, pelo Congresso e se tornaram símbolos do esforço de reforma – o Juizado de Pequenas Causas, destinado a ampliar o acesso à Justiça, e o Estatuto da Microempresa, que assegurava isenções fiscais e redução de encargos burocráticos às empresas de porte reduzido.
Após a Constituinte e a transição democrática, verificou-se um grande retrocesso em razão de uma verdadeira paranoia fiscal. A obsessão com o equilíbrio fiscal colidiu com a decadência dos meios de fiscalização. Os meios de fiscalização ficaram muito precários por falta de recursos de fiscalização externa. Os chamados controles cruzados assumiram protagonismo, com a produção de certidões como requisito essencial para a prestação do serviço público. Esse esvaziamento do processo de reforma administrativa federal esteve ligado ao enfraquecimento das chamadas “ilhas de competência”, à retirada constitucional do poder de auto-organização do Executivo e uma elevação dos níveis de corporativismo.
O governo Fernando Henrique Cardoso esteve comprometido, desde o primeiro mandato, com a reforma do Estado, nesta compreendidas a extinção ou abrandamento dos monopólios estatais, a reforma do sistema previdenciário, a privatização de serviços públicos, a reforma tributária e a reforma do Judiciário. A reforma administrativa (Emenda 19 de 1998) teve em mira, entre outras providências, dar flexibilidade ao regime jurídico dos servidores públicos, permitir a demissão de servidores estáveis por insuficiência de desempenho e excesso de quadros, fixar o teto de remuneração, além de “desconstitucionalizar” determinadas questões que poderão ter tratamento mais adequado em nível infraconstitucional. A reforma administrativa, em sentido estrito – entendida como a busca da eficiência administrativa mediante a adoção de providências gerenciais destinadas a aumentar a eficácia do processo decisório governamental, a promover a descentralização administrativa, a combater a burocratização e a melhorar a qualidade dos serviços públicos – não constituiu prioridade do governo, ainda que tivesse na figura do ministro Bresser-Pereira uma figura de especial relevância.
Nos governos Lula e Dilma Rousseff, o tema continuou em segundo plano, com algumas iniciativas localizadas importantes, como a edição do Decreto nº 5.378/2005, que instituiu o Programa Nacional de Gestão Pública e Desburocratização, além de trabalhos voltados à eliminação de entraves burocráticos da atividade empresarial, especialmente da pequena e micro empresa, liderados pelo ministro Guilherme Afif, à frente da Secretaria da Micro e Pequena Empresa e do Programa Mais Simples Brasil, instituído pelo Decreto nº 8.414/2015. De forma mais geral, contudo, ainda não se alcançou os padrões necessários de consistência, visibilidade e continuidade dos esforços de simplificação como uma política de Estado.
II. Ideias para uma  política de desburocratização no longo prazo
A partir da história administrativa brasileira e de exemplos estrangeiros recentes de combate aos excessos burocráticos, torna-se possível explorar algumas ideias a serem implementadas durante a janela de oportunidade que se abre no atual contexto de crise política e econômica. Retomando as lições de Beltrão, surgem pelo menos dois caminhos para que possamos consolidar a desburocratização como agenda permanente:
(1) “Não se conseguirá desburocratizar a administração sem antes questionar, e gradualmente reformular, [o] arcabouço institucional-normativo, no qual estão definidas as regras do jogo, às quais deve obedecer a administração”;
(2) “E jamais conseguiremos fazê-lo se não existir, na cúpula da administração […] uma clara e firme vontade política de deflagrar esse processo de atualização cultural e institucional”13.
Ainda que mudanças legislativas por si só não tenham o condão de proporcionar transformações efetivas, é imprescindível que contemos com um marco jurídico coeso e claro para dar apoio a um programa de desburocratização no longo prazo. O que se percebe hodiernamente, contudo, é um cenário de terra arrasada. Como dizia Guilherme Duque Estrada, “a burocracia brasileira tem muitas fontes e uma das mais importantes é, certamente, o cipoal em que se transformou o sistema legal do País. O excesso e a complexidade de nossas normas jurídicas, muitas delas tecnicamente mal elaboradas, estão infernizando a vida do cidadão, tumultuando o dia a dia das empresas e inibindo a ação dos servidores públicos”14.
Nesse sentido, inovações legislativas possuem um papel simplificador de primeira ordem. Algumas proposições que já estão em tramitação perante o Congresso Nacional podem ser aproveitadas com esse norte. O PLS nº 214/2014, de autoria do então Senador Armando Monteiro, por exemplo, objetiva racionalizar atos e procedimentos administrativos mediante a supressão ou simplificação de formalidades ou exigências desnecessárias ou superpostas, cujo custo econômico ou social seja superior ao eventual risco de fraude.
Em linhas gerais, esse projeto está fundado nos mais caros preceitos de desburocratização, buscando consolidar em uma mesma lei aspectos como a presunção da boa-fé, a instituição de análises de custo e benefício para implementação de novas exigências, a utilização de novas tecnologias para o atendimento ao cidadão e a preferência por mecanismos de controle posterior em detrimento do controle prévio, entre outras medidas. Também são retomadas algumas das bandeiras do Programa Nacional de Desburocratização, como a dispensa de firma reconhecida e a vedação de exigência de prova relativa a fato já comprovado pela apresentação de documento válido. Ressalve-se que o projeto não estabelece mecanismos de controle da efetividade da lei, sendo passível de algum aperfeiçoamento para que não fique relegado ao esquecido campo das leis que “não pegam”.
Outro projeto com desígnio racionalizador é o PLS nº 349/2015, de autoria do Senador Antonio Anastasia, que pretende incluir na Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42) disposições para elevar níveis de segurança jurídica e de eficiência na criação e na aplicação do direito público. Idealizado pelos professores Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto, esse projeto tem como escopo a melhora da atividade decisória pública no Brasil.
Entre outras previsões interessantes15, está aquela do artigo 25, que busca proteger o gestor público que toma decisões com base em fundamentos razoáveis16. Cuida-se de intento legítimo e urgente em um cenário no qual o agente público sofre de uma paralisia decisória incentivada pelo excesso de controles formais. Como defende Philip Howard, reverberando as palavras de Helio Beltrão mais de 30 anos depois, precisamos de uma filosofia de governo humanizada, em que gestores públicos sejam orientados por princípios amplos e tenham espaço para tomar as decisões que entendam corretas, sempre amparados em objetivos públicos que estabeleçam critérios transparentes de responsabilização e controle17.
Em paralelo às propostas já em análise pelo Congresso, é de peculiar importância o papel da Comissão de Juristas da Desburocratização do Senado Federal, criada pela presidência daquela Casa Legislativa em setembro de 2015 como parte dos esforços da “Agenda Brasil”18. Presidida pelo ministro Mauro Campbell Marques, do Superior Tribunal de Justiça, e sob a relatoria do ministro José Antonio Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, a comissão de especialistas19 tem como função apresentar anteprojetos de lei destinados a desburocratizar a administração pública brasileira, melhorar a relação com as empresas e o trato com os cidadãos.
Com efeito, um primeiro foco de atenção tem sido a elaboração de um diploma normativo que estabeleça regras gerais voltadas à efetivação do princípio constitucional da eficiência, expandindo os termos do já mencionado PLS nº 214/14. Para esse desígnio, está em processo de discussão uma lei nacional, com aplicabilidade nos três níveis da federação, porém de teor minimalista e principiológico, de modo a preservar a aplicação legal de forma descentralizada, respeitando-se as particularidades do nível local. Preocupações com a efetividade de um diploma nesses moldes também tem ensejado debates acerca de modelos sancionatórios adequados para incentivar a aplicação da lei pelos agentes públicos.
Outras questões pontuais que representam intensos entraves burocráticos ao desenvolvimento brasileiro devem ser objeto de aperfeiçoamento legislativo, como o processo de abertura de empresas, o licenciamento ambiental, o processo administrativo fiscal e o marco legal de contratações públicas. O caso das licitações é sintomático. Fundada em um viés maximalista, a lei no 8.666/93 é símbolo da lógica formalista que cria burocracia desnecessária20. Como propõe André Rosilho, precisamos substituí-la “por outra menos procedimentalizada e burocrática e que seja capaz de dar mais racionalidade ao regime geral de contratações públicas, reconhecendo limites à regulação jurídica e abrindo espaços para mais criatividade na gestão pública”21.
Ideia do balcão único
Essa necessidade de protagonismo do Poder Legislativo na desburocratização revela uma faceta pouco explorada em outras etapas de reformas administrativas brasileiras e pode ser determinante no amoldamento de um consenso político geral, apto a consolidar o tema como uma agenda de longo prazo. Associado a isso, é indispensável que se confira maior força institucional às iniciativas gestadas dentro do Poder Executivo, como o programa “Bem Mais Simples”22, que hoje ficam em segundo plano em relação a outros temas importantes, como o ajuste fiscal e a política econômica. Também é imprescindível que se confira maior projeção a políticas locais, implementadas por governos estaduais e municipais, na medida em que experiências subnacionais bem-sucedidas podem ser replicadas por outros governos. É o que se pretende, por exemplo, com o projeto piloto conjunto do governo federal com o governo do Distrito Federal que aprovou recentemente legislação para acelerar a entrada em funcionamento de empresas23.
A experiência da União Europeia aponta para alguns princípios de simplificação legislativa e administrativa que também podem nortear reformas24. A proporcionalidade ao risco determina que o grau de controle público de determinada atividade deve ser proporcional ao seu risco para outros interesses públicos25. A partilha de informação entre serviços públicos impõe que o Estado se organize para reaproveitar e partilhar a informação de que já dispõe, sem impor ônus desnecessários ao cidadão26. Segundo a ideia do balcão único, a Administração deve estabelecer um ponto único de contato com o cidadão, a partir do qual esse pode realizar vários serviços perante diferentes órgãos e entidades. A linguagem clara apresenta-se como regra de interlocução entre Estado e sociedade, favorecendo a transparência27. O princípio da participação sugere a necessidade de consulta e intervenção efetiva do público no processo de governo e a ideia de administração aberta valoriza o papel da transparência no trato público, inclusive com a disponibilização de dados, estimulando a inovação.
Outro aspecto que deve ser tratado com especial atenção é a utilização das novas tecnologias para a simplificação dos serviços públicos. Deve-se ter em mente que o aparato tecnológico é neutro do ponto de vista dos objetivos políticos e morais da sociedade. O que o governo eletrônico proporciona é uma maior facilidade em transmitir ao cidadão as obrigações que ele deve cumprir, desempenhando um importante papel de transparência, mas não avança sobre formas de se facilitar o cumprimento dessas exigências ou mesmo sobre sua necessidade. Nesse sentido, deve-se conciliar a tecnologia com os esforços simplificadores de humanização da administração.
O tema assume tamanha complexidade que os Estados Unidos criaram recentemente o cargo de Chief Technology Officer, diretamente vinculado à Casa Branca28. Os potenciais são incomensuráveis, contudo deve-se atentar ao risco de mera transmutação da burocracia em meio físico para o meio digital sem que se enfrente o problema fundamental dos excessos. Não podemos perder o bonde da história, mas também temos que nos prevenir contra a informatização dos abusos burocráticos.
Em linha com a experiência internacional, também devemos expandir para toda a atividade normativa do Estado a utilização de análises de custo e benefício29. Percebeu-se que governos devem centrar seus esforços sobre as “consequências humanas de suas ações”30. Nesse sentido, a disputa ideológica sobre o tamanho do Estado deve perder espaço para uma avaliação técnica da eficiência e eficácia de ações estatais, com o propósito de se obter um governo que funcione melhor. Como bem sintetizado por Cass Sunstein, “se precisamos de mais ou menos interferência [do Estado] não depende de nada abstrato, mas dos efeitos concretos”31, os quais somente podem ser apurados mediante uma análise que considere todos custos e benefícios econômicos e sociais da intervenção sobre o cidadão e a empresa.
Tal medida é urgente no âmbito das fragilizadas agências reguladoras, que não aplicam as normas já existentes acerca da realização de estudos prévios de impacto regulatório. De outro lado, a avaliação de custo e benefício deveria ser adotada no próprio Congresso Nacional, aperfeiçoando o processo de formação de leis, e nos diversos entes da administração pública, tanto com mecanismos de análise prévia quanto de avaliação retrospectiva, de modo a eliminar normas que não alcançam os efeitos esperados na prática.
III. Conclusão
A burocracia é um inimigo antigo e conhecido da sociedade brasileira, afetando tanto o cidadão, que se vê cercado de formulários e carimbos para ser atendido por um serviço público essencial, quanto as grandes empresas, que são oneradas pesadamente com o cumprimento de obrigações burocráticas desnecessárias e prejudicadas por uma regulamentação excessiva e pouco coerente.
Procuramos argumentar, contudo, que a burocracia não é imbatível. O insucesso de reformas administrativas anteriores esteve intimamente relacionado com o fato de que a desburocratização apenas assumiu protagonismo político em momentos de crise. Nessa medida, entendemos que a adoção da desburocratização como uma política de Estado estável e permanente é condicionante ao desenvolvimento nacional. Apresentamos um conjunto não exaustivo de ideias, fundadas em exemplos históricos e na experiência de outros países, que podem ser importantes para alcançarmos esse objetivo. Argumentamos, ainda, que a atual conjuntura de crise, em que a classe política e os cidadãos parecem demandar mudanças de ordem estrutural, oferece uma janela de oportunidade para que se estabeleça essa virada cultural.
Os desafios que se apresentam não são poucos. Existe uma primeira limitação de ordem material. Como iniciativas reformistas costumam aflorar em momentos de crise do setor público, justamente quando os recursos disponíveis são mais escassos, amplifica-se a noção vulgar de que “a eficiência estatal significa, antes de mais nada, reduzir o gasto público – uma contradição em termos com o pressuposto de que é necessário gastar agora para auferir ganhos futuros. Estabelece-se, assim, o divórcio entre o que é necessário fazer e o que é materialmente possível de ser alcançado dentro de um projeto de reforma”32. Outros limites dizem respeito ao já mencionado centralismo administrativo e ao formalismo jurídico. Além disso, impera como óbice um traço autoritário da administração pública, a partir do qual o cidadão é colocado na posição de súdito e dependente dos interesses e da vontade do Estado.
Em última análise, deve-se ultrapassar também uma rígida barreira ligada aos interesses encrustados na burocracia. Ainda que sejam criados de forma bem-intencionada, por um excesso de zelo e desconfiança, entraves burocráticos sempre beneficiam alguém, seja de forma lícita ou ilícita, inclusive mediante a criação de novos canais para corrupção. Com efeito, qualquer transformação simplificadora enfrentará severa resistência de segmentos prejudicados, que podem se manifestar a partir de pressões políticas ocultas ou mesmo de justificativas técnicas, sempre vinculadas a um suposto resgate do papel fiscalizador do Estado e à prevenção de fraudes, numa lógica distorcida a partir da qual o cidadão é considerado corrupto até que se prove o contrário.

Nenhum esforço de desburocratização terá êxito se não houver consciência de que o que está em jogo não é apenas a saúde da economia ou o superávit fiscal, mas, isto sim, a qualidade do regime democrático. A questão é essencialmente política. Com efeito, a consolidação da desburocratização como agenda permanente, necessária para a eliminação do “custo Brasil”, depende de um pacto institucional amplo entre os três Poderes, abarcando a concepção de um marco jurídico coeso, o fortalecimento de programas governamentais e a fiscalização atenta de sua efetividade. Não deixemos a crise passar sem que se enfrente de forma radical os fundamentos de nossa cultura burocrática. Se angariarmos vontade política suficiente para vencer o princípio da desconfiança, sairemos desse momento conturbado muito mais fortes.

J. G. PIQUET CARNEIRO é presidente do Instituto Helio Beltrão e vice-presidente da Comissão de Juristas da Desburocratização do Senado Federal. Foi consultor jurídico (1979-1982) e coordenador (1983-1985) do Programa Nacional de Desburocratização, membro do Conselho de Reforma do Estado (1996-1998) e presidente da Comissão de Ética da Presidência da República (1999-2004). DANIEL BOGÉA é diretor-executivo do Instituto Helio Beltrão e membro da Comissão de Juristas da Desburocratização do Senado Federal.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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