A erosão da democracia americana sob Donald Trump
O segundo mandato de Donald Trump está se revelando uma ameaça séria — talvez fatal — à doutrina do equilíbrio entre os três poderes, originalmente instituída na Constituição dos Estados Unidos. Para compreender o alcance dessa ameaça, é útil recorrer a uma formulação clássica da filosofia política moderna. Em carta escrita em 1887 ao bispo anglicano Mandell Creighton, o historiador britânico e liberal católico Lord Acton concebeu a frase que se tornaria um dos aforismos mais conhecidos da história política: “Todo o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”.
Essa frase é frequentemente citada de forma incorreta, suprimindo-se o “tende a”, e sugerindo que todo poder corrompe, de maneira inevitável. No entanto, a formulação original é mais sutil: o poder tende a corromper, mas essa tendência pode ser contida — desde que o poder não seja absoluto. Trata-se, portanto, de um alerta não contra o exercício legítimo do poder, mas contra a ausência de limites e controles. O que Acton afirma é que o perigo não está no poder em si, mas em sua ilimitação.
A mesma preocupação já estava presente em Montesquieu, que, em O Espírito das Leis (1748), identificava formas de governo e os princípios que poderiam limitar os excessos do poder. Ele distinguia três regimes: a república, a monarquia e o despotismo. A república, modelo da Antiguidade, parecia a ele impraticável nos tempos modernos. A monarquia, por sua vez, poderia ser aceitável, desde que contida por freios institucionais e simbólicos — sendo a honra o mais importante deles. Para Montesquieu, a honra não é um valor objetivo, mas uma imagem externa, uma construção imaginária, ainda que socialmente eficaz. Mesmo sendo uma forma ilusória de limitação, o medo da desonra impedia o soberano de violar arbitrariamente a dignidade dos nobres e dos magistrados.
Esse princípio aparece de forma vívida em uma cena do romance O Visconde de Bragelonne, de Alexandre Dumas, quando Athos, humilhado, recusa-se a se submeter ao rei Luís XIV. Ele afirma que sua honra exige que mate o rei ou morra. Ele não vai matar o monarca, então se dispõe a se suicidar. Mas o rei o impede, e os dois se reconciliam. A disposição a morrer é um traço essencial da honra, pois mostra que o valor do nobre é mais importante, para ele, do que a própria vida. “A lixívia da honra se lava com sangue”, derramado ou passível de sê-lo.
O poder limitado por outros poderes
Embora ficcional, a cena ilustra como, mesmo no absolutismo francês, havia códigos simbólicos de contenção. Na monarquia constitucional, esses limites seriam reforçados pelos Parlamentos — órgãos meio legislativos e meio judiciais — e por um ethos de moderação. Já o despotismo, na visão de Montesquieu, é o poder absoluto em sua forma extrema, como exemplificado pelo sultão otomano, cujo governo se funda no medo, não na lealdade. Enquanto as tropas francesas lutavam por glória e honra, as do sultão lutavam por temor de punição.
Mais interessante, ainda, é o que diz Montesquieu da monarquia espanhola: ela mescla dois poderes opressivos — o trono e a Inquisição — mas é justamente a tensão entre ambos que produz certo limite recíproco. São dois males que, contrapostos, produzem um (relativo) bem. Daí, sua tese central: o poder precisa ser sempre limitado por outros poderes.
É com base nessa doutrina que se estrutura o sistema constitucional dos Estados Unidos, que separa o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Essa separação retoma, em parte, a tipologia de Políbio na Antiguidade, segundo a qual haveria três formas de governo: a monarquia (o poder de um só), a aristocracia (o poder de poucos) e a democracia (o poder de muitos). Na Constituição norte-americana, o presidente cumpre o papel do monarca (Executivo), o Senado e/ou a Suprema Corte funcionam como instâncias aristocráticas, enquanto a Câmara dos Representantes expressa o princípio democrático. Ao longo de dois séculos e meio, essa estrutura permitiu aos Estados Unidos evitar golpes de Estado, rupturas institucionais e suspensões constitucionais — um feito notável na história das democracias.
Esse equilíbrio não repousa apenas sobre o texto da Constituição, mas também sobre práticas consensuais profundamente arraigadas na cultura política americana. Um exemplo é o tribunal do júri: condenações ou absolvições exigem unanimidade. Os jurados podem discutir durante dias até, mas se não houver acordo, não haverá decisão. O impasse obriga ao diálogo, fonte de consenso, e essa lógica informal permeia grande parte da vida política nos Estados Unidos.
Trump corrói o equilíbrio entre os poderes
Tal tradição está sendo corroída por Donald Trump. Durante seu segundo mandato, ele tem concentrado poder como nenhum outro presidente recente. Obteve maioria nas duas casas do Congresso e moldou a Suprema Corte com dois terços de juízes alinhados a seu partido, rompendo a tradição de equilíbrio entre indicações conservadoras e progressistas. Assim, o Executivo deixa de encontrar oposição efetiva nos outros dois poderes. Isso equivale, na prática, a uma ruptura com a doutrina de Montesquieu e com o sistema de checks and balances.
Além disso, Trump ignora sistematicamente os limites legais e institucionais. Chegou a ameaçar a demissão do presidente do Federal Reserve — algo vedado pela legislação americana —, atacou universidades, agências federais e outras instituições independentes. Isso, para não falar de suas ameaças a países estrangeiros, como o Panamá, a Groenlândia e até mesmo o Canadá. Essas ações configuram não apenas um forte descaso pelos freios constitucionais, mas também uma ofensiva contra a sociedade civil, que sempre atuou como barreira informal ao autoritarismo.
Importa lembrar que o equilíbrio de poderes, em sua concepção mais ampla, não se restringe às três esferas do Estado. A sociedade civil — imprensa, universidades, centros de pesquisa, movimentos cívicos — é parte essencial desse sistema. O princípio que sustenta o modelo norte-americano é que todo poder, para não corromper, deve ser limitado por outro. Onde não há limites, há abuso.
É verdade que outros presidentes também ultrapassaram os limites legais, mas apenas em tempos de crise grave. Abraham Lincoln suspendeu o habeas corpus durante a Guerra Civil. Franklin D. Roosevelt internou cidadãos de origem japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, ambos enfrentavam ameaças existenciais ao país. Trump, ao contrário, reivindica poderes excepcionais em tempos de paz, sem justificativa plausível. É aí que reside o perigo: ele busca um poder absoluto, não por necessidade, mas por ambição.
Essa é a diferença essencial. Os excessos de Lincoln e Roosevelt ocorreram em contextos de urgência nacional, com justificativas ligadas à sobrevivência do Estado. Já Trump subverte o sistema deliberadamente, minando os fundamentos institucionais da democracia americana em nome de seu projeto pessoal de poder. É lamentável que o “partido de Lincoln”, o Republicano, tenha renunciado ao respeito a valores fundamentais da democracia, para ficar a reboque de um extremista – que, como tal, vê como seus principais inimigos o diálogo e o acordo.
Referência:
• Montesquieu, De l’esprit des lois, 1748.
• Lorde Acton, carta a Mandell Creighton, 1887.
• Dumas, Alexandre. Le Vicomte de Bragelonne, 1847–1850.
• Constituição dos Estados Unidos da América, 1787.
• Tocqueville, Alexis de. De la démocratie en Amérique, 1835–1840.
• Woodrow Wilson, Constitutional Government in the United States, 1908.
• Federal Reserve Act, 1913.
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