A Gestão de Clubes de Futebol –Regulação, Modernização e Desafios para o Esporte no Brasil
No mundo, o futebol é considerado um grande negócio, apresentando crescimento contínuo e valores vultosos de receitas com patrocínio, salários de atletas e rendas de jogos divulgados amplamente nos meios de comunicação. Observam-se, ao longo do tempo, diversas transformações no ambiente das organizações esportivas que têm influenciado suas formas de gestão. A modernização que se espera para o futuro dos clubes que comandam o futebol profissional deve influenciar os vários níveis organizacionais dessa indústria de lazer e, principalmente, um melhor entendimento dos seus verdadeiros papéis social e econômico.
Analisando o ranking divulgado pelo Banco Mundial do Produto Interno Bruto (PIB) de 150 países, em 2009, o Brasil se encontra em oitavo lugar, posição que retrata fielmente o bom desempenho da economia no século XX. De forma similar, o País tem papel destacado no cenário do futebol mundial, tendo conquistado o maior número de títulos em Copas – cinco no total – além de uma série de outros títulos internacionais. Observa-se, entretanto, um elevado grau de fragilidade econômica e financeira nos demonstrativos financeiros dos principais clubes do futebol brasileiro, característica que não se harmoniza com o potencial econômico e a força do futebol. Segundo Leoncini, “os clubes de futebol se veem diante de uma situação inusitada: por um lado, a pressão social revestida pela Lei Pelé; por outro, a situação financeira da maioria dos clubes brasileiros (endividados e sem caixa) assume caráter simbólico de ineficácia administrativa e desvalorização de seu produto ou marca”.
Este artigo apresenta o processo histórico da regulação aplicável ao futebol brasileiro, discute as principais fontes de renda dos clubes, as dificuldades de controle de custeio, algumas proposições para otimização da performance financeira e a inépcia administrativa refletida na estrutura organizacional dos conselhos. A conclusão evidencia o diagnóstico sobre a sustentabilidade e contempla recomendações para melhoria da gestão dos clubes de futebol no Brasil.
Evolução histórica da regulação no futebol no Brasil
Apartir de 1933, o futebol brasileiro foi alvo de sua primeira grande transição, quando o amadorismo foi gradativamente substituído pelo profissionalismo dos atletas. Inserida no escopo de uma legislação trabalhista que passaria a vigorar em praticamente todos os setores da economia, durante o governo de Getúlio Vargas, foi criada, então, a profissão de jogador de futebol.
Apenas em 1938, o profissionalismo foi amplamente adotado pelos principais clubes brasileiros, sob o comando da então denominada Confederação Brasileira de Desportos (CBD). Esta foi criada como resultado de uma fusão entre a primeira versão da CDB – que representava os interesses dos clubes amadoristas – com a Federação Brasileira de Futebol – que representava o profissionalismo de outras organizações. Em 1941, foi criado o Conselho Nacional do Desporto, quando o Estado brasileiro assumiu de forma explícita a gestão do futebol.
A primeira Lei que tratou de forma mais direta a relação clube-jogador foi a “Lei do Passe” (Lei n.º 6.354/76). Esta garantia aos clubes formadores de atletas a possibilidade de usufruir o direito econômico sobre estes, ou seja, o clube poderia transacionar um atleta mesmo após o término do contrato de trabalho. Por se tratar de um bem para a instituição, o clube poderia alienar o direito sobre o jogador, para honrar os custeios ou sanar dívidas. Porém, este poder sobre o destino de atletas não trouxe necessariamente boa saúde financeira aos clubes. Naquela época, o esporte não movimentava o mesmo volume de recursos que atualmente, e os torneios não eram transmitidos ao vivo pela televisão, fator que hoje representa a maior parte das receitas dos clubes.
A principal novidade apresentada pela Lei Zico (Lei n.º 8.672/93) foi a possibilidade de os clubes serem gerenciados por entidades com fins lucrativos, indicando a intenção do governo de transformar os clubes em empresas. A lei não foi bem recebida pelos dirigentes, visto que o enquadramento neste novo conceito eliminaria uma série de vantagens fiscais que os clubes possuem até hoje.
Em 1998, foi lançada a Lei Geral sobre os Desportos – a Lei Pelé (Lei n.º 9.615/98). Essa regulamentação apresentou algumas novidades. Uma delas foi a extinção do passe, impedindo que os clubes negociem os direitos sobre atletas, o que reduziu sensivelmente as receitas potenciais com vendas de jogadores. É preciso que se diga que o passe não foi totalmente extinto naquele momento. Os clubes poderiam firmar contratos com jogadores por eles formados até a idade de 23 anos, momento em que o atleta teria os direitos sobre o seu passe, podendo assinar novos compromissos com qualquer outro clube. Outro ponto bastante polêmico da Lei Pelé foi a obrigatoriedade de os clubes se tornarem empresas. Transformar os clubes em empresas tornou-se um verdadeiro pesadelo para boa parte dos dirigentes brasileiros. O fato é que a mudança poderia ser muito benéfica para os clubes, mas seria um ameaça aos interesses dos seus responsáveis.
Em 2003, outras duas regulamentações alteraram significativamente o ambiente para as entidades desportivas. A primeira foi o denominado “Estatuto do Torcedor” (Lei n.º 10.671/2003) que dispõe sobre os direitos dos torcedores no tocante ao respeito do cliente do futebol. A segunda (Lei nº. 10.672/2003), que recebeu o nome de “Lei de Moralização do Futebol”, prevê a possibilidade de transformação das associações desportivas em clube-empresa. Além disso, trouxe a obrigatoriedade da aprovação das contas em assembleia geral de associados. É importante destacar que esta regulamentação exige a publicação das demonstrações contábeis devidamente aprovadas por auditores independentes. E, por último, um dos pontos mais marcantes versava sobre a responsabilização dos dirigentes em caso de má administração dos clubes.
Receitas, custos e governança corporativa
Apartir da década de 1990, alguns agentes econômicos, visualizando o potencial financeiro do futebol, intensificaram a profissionalização na gestão dos clubes, com a inserção do conceito de lucratividade como fator de sucesso.
O primeiro sinal de clube-empresa surgiu na Itália, passando pela Espanha e culminando de forma material na Inglaterra. O cenário do futebol inglês estabeleceu novos paradigmas para a profissionalização do esporte, extraindo de outros setores econômicos as características das empresas lucrativas, trazendo à tona uma nova economia do esporte.
Para Ekelund (citação no livro “A Nova Gestão do Futebol”), o futebol é um catalisador para um novo modelo econômico que precisa ser definido e que pode dar grandes vantagens não apenas à sociedade, mas também aos torcedores e investidores (ligando razão e emoção). Entretanto, para que o produto futebol tenha as duas características (resultado no campo e retorno financeiro) é necessário que ações individuais e coletivas sejam tomadas pelos clubes, observando-se tanto os fatores associados ao resultado do evento (função esportiva dos clubes) quanto os fatores associados à administração dos eventos (negócio ou mercado, pensando-se na função de marketing e serviços do clube), que afetam a satisfação de seus principais clientes (torcedores, patrocinadores, televisão, etc).
Cabe, então, discutir o que significa “sucesso” na indústria do futebol. Se perguntarmos aos torcedores “qual o objetivo principal de um clube de futebol?”, certamente a quase totalidade responderia “vencer os jogos e conquistar campeonatos”. Se fizermos esta mesma pergunta para os antigos dirigentes, com certeza, uma resposta similar seria dada por boa parte dos consultados. Contudo, essa questão apresentada a dirigentes de clubes com ações em Bolsa de Valores teria a seguinte resposta: “lucros e títulos”.
A nova realidade do futebol mundial requer uma reflexão sobre a lógica do “negócio futebol” para que as medidas de desempenho, que refletem o modelo de gestão, possam ser definidas e monitoradas. Se, por um lado, os dirigentes do Arsenal e do Real Madrid conseguiram transformar seus clubes em negócios extremamente lucrativos, por outro, clubes como Botafogo, Flamengo, Atlético Mineiro, Bahia e Vitória (BA), entre outros, acumulam expressivos déficits sequenciais. Os dois últimos, clubes-empresas, chegaram a estar, em 2006, na 3ª divisão do campeonato brasileiro.
Na Tabela 1, analisando a divulgação dos indicadores financeiros dos principais clubes de Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, observa-se a notória fragilidade financeira, tanto com respeito à solvência quanto à sustentabilidade financeira de longo prazo.
Para comparação, apresentamos na Tabela 2 as métricas financeiras, evidenciadas em dólar americano para Barcelona, Real Madrid, Arsenal e Bayern de Munique. A escolha desses clubes foi feita em função de todos estarem entre os cinco primeiros no ranking de receitas na temporada 2010/2011, conforme a publicação da Football Money League.
Todos os clubes da pesquisa registraram superávits em seus exercícios fiscais de 2009 e 2010, com exceção do Barcelona, que em 2010 registrou déficit devido ao provisionamento de impostos, encargos trabalhistas e perdas com desvalorização de terrenos de sua propriedade. Nota-se ainda que os clubes europeus detêm uma estrutura de capital equilibrada quando se compara o endividamento líquido às suas receitas.
Receita com publicidade e bilheteria
As principais fontes geradoras de receitas para os clubes de futebol são a publicidade, a bilheteria dos jogos, a negociação de direitos federativos dos atletas, a licença para transmissão de jogos pelos meios de comunicação, com destaque para as televisões de canal aberto ou TVs a cabo, e a venda do direito de exploração de nome nas arenas esportivas.
A renda de publicidade é derivada de contratos realizados entre clubes e empresas – em geral do setor de bens de consumo – para anúncio de suas marcas nos uniformes, nas placas de propaganda dos estádios ou dos centros de treinamento. Utiliza-se também o pagamento de royalties aplicados como fração do total das vendas de produtos licenciados, mercadorias ou serviços vinculados à imagem dos clubes ou de seus atletas.
A gestão das marcas é uma das raras atividades desenvolvidas no futebol brasileiro com elevado nível de profissionalização. Essa atividade tornou-se relevante para os clubes nos últimos cinco anos com a inclusão nos quadros de profissionais de especialistas em marketing, como, por exemplo, no Internacional-RS, ou mediante contratação de agências especializadas. O Corinthians optou pelo segundo modelo e hoje dispõe de 90 lojas franqueadas, além de uma loja virtual para atender um público potencial de cerca de 20 milhões de torcedores.
O Internacional-RS tem se destacado no gerenciamento de marketing. O clube está entre as 500 maiores empresas da Região Sul e desde o lançamento de seu programa de sócio-torcedor, em 2006, já angariou aproximadamente 100 mil sócios. Podemos classificar esses sócios como um público fidelizado: um segmento que adquire permanentemente não apenas ingressos de jogos a preços diferenciados, como também produtos. Para o Internacional, as receitas oriundas de publicidade, que incluem os recursos provenientes das mensalidades do programa sócio-torcedor, representam 40% do total da receita bruta, o que é suficiente para cobrir a folha de pagamento dos atletas.
Na Tabela 3, apresentamos a razão da receita anual para cada um dos clubes pesquisados sobre as respectivas médias de público nos campeonatos nacionais. Os valores apresentados são indicativos da efetividade de exploração das marcas dos clubes e capturam a receita além da bilheteria, em especial as receitas com transferência de atletas. Nota-se que os clubes de São Paulo, além do Internacional, são aqueles que mais se aproximam da realidade dos times europeus.
Receitas com exploração de estádios
O direito de exploração do nome de arenas esportivas é pouco utilizado no Brasil. Entre a segunda e terceira década do século XX, período em que o futebol deixou de ser considerado esporte de elite, alguns clubes iniciaram a construção de seus estádios, com uso de recursos de seus torcedores, em especial aqueles oriundos de “colônias”, como no caso do Parque Antártica, do Palmeiras, inaugurado em 1933, e do estádio de São Januário, fundado em 1927, de propriedade do Vasco da Gama.
Entre 2005 e 2008, o Atlético-PR protagonizou o único caso de exploração dos direitos de um estádio, com o contrato firmado com a empresa japonesa Kyocera MitaAmerica, com valor estimado em R$ 2 milhões por ano. O Arsenal, da Inglaterra, inaugurou, em 2006, o Emirates Stadium, com capacidade para 60 mil torcedores. Para a execução do projeto, cujo valor foi de 357 milhões de libras, foi firmado um contrato de 100 milhões de libras, a serem pagos em 15 anos, para que a companhia aérea Emirates Airlines explorasse sua marca no estádio. Caso o modelo de exploração de nome de arenas fosse aplicável aos estádios brasileiros reformados para a Copa, levando-se em conta a avidez de empresas em destacar suas marcas no crescente mercado brasileiro, isto significaria potencialmente uma liberação de recursos para outros projetos a serem financiados pelo BNDES.
Com a realização da Copa em 2014, deve-se incentivar a exploração do nome das arenas, objetivando uma maior rentabilidade para estes ativos que, em geral, demandam elevados investimentos, com baixa utilização posterior. A maior parte dos estádios brasileiros é de propriedade de municípios ou estados, que arcam com todas as necessidades de investimento, o que está sendo observado também para a Copa de 2014. No programa Pró-Copa, para construção e modernização dos estádios, são projetados investimentos totais da ordem de R$ 3 bilhões, conforme estudos da Área Social do BNDES.
A despeito de ser o “país do futebol” e do advento de um mercado consumidor doméstico que emergiu nos últimos anos, observa-se que o público nos jogos da Série A do Campeonato Brasileiro está muito aquém da fama do futebol nacional. A Tabela 4 mostra que a média de público da primeira divisão do campeonato, em 2010, foi menor do que aquela observada no campeonato argentino do mesmo ano, tendo sido também superada pelo campeonato holandês de 2009/2010, pela Série B do campeonato inglês de 2010/2011 e pela liga norte americana em 2010. Nota-se, ainda, que a média de público da Série A do Campeonato Brasileiro supera somente a segunda divisão do campeonato alemão e as médias de público dos campeonatos escocês e português.
Observa-se uma discrepância significativa entre a escala da economia brasileira e o “consumo” do futebol que, segundo estudos recentes, tem características de baixa elasticidade-preço e alta elasticidade-renda. Nos demais setores de bens de consumo, o Brasil está entre os cinco maiores mercados do mundo. Efetivamente, o gerenciamento da receita de bilheteria não está entre as prioridades dos dirigentes brasileiros. Observa-se, quando da divulgação das rendas dos jogos de futebol, que o número de convidados representa uma parcela não desprezível do público total ou que o público anunciado é aparentemente menor do que o presente ao estádio. A explicação é que a distribuição gratuita de ingressos significa um instrumento de agrado político tanto para as torcidas organizadas quanto para grupos privilegiados.
Atualmente, muitas empresas prestam serviço de venda de ingressos e acesso ao local do evento nos mais variados tipos de espetáculos, como shows e festivais. Entretanto, esse tipo de serviço é pouco utilizado pelos clubes brasileiros, sob a alegação da falta de previsibilidade do calendário. Em outros países, a prática comum é a venda por meio de carnês e da internet.
Receitas com direitos de transmissão
A venda dos direitos de negociação para as TVs aberta e a cabo representa a maior parte da receita dos clubes brasileiros. Para os campeonatos brasileiros de 2012 a 2015, ocorreu uma disputa acirrada para aquisição dos direitos de transmissão entre as emissoras. Os clubes optaram pela negociação individual de suas cotas, dispensando a intermediação do Clube dos 13 (C13). A Rede Globo, detentora dos direitos de transmissão, pagou ao C13 a quantia aproximada de R$ 1,40 bilhão para adquirir os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de 2009 a 2011 (R$ 460 milhões por ano). Comparativamente, os times da Liga Espanhola para a temporada 2009/2010 receberam a cifra aproximada de € 625 milhões por ano. Enquanto os campeonatos europeus são transmitidos a diversos países, a Série A do Campeonato Brasileiro ainda não é divulgada internacionalmente.
Receitas com transferências de atletas
As leis que regem as relações de trabalho no futebol são as leis Zico e Pelé. A lei Zico regulamentou o trabalho do atleta e garantiu ao clube formador a celebração do primeiro contrato com duração de até quatro anos. A Lei Pelé impôs aos clubes perda imediata de receitas em função da extinção do “passe”. Dessa forma, os clubes perderam o direito sobre o passe do atleta acima de 23 anos. Destacamos que, ao final dos anos 1990, vários jogadores se desligaram de seus clubes, sem que recebessem compensação financeira pela transferência ou formação de seus atletas. Enquadram-se, neste caso, por exemplo, Ronaldo Gaúcho, do Grêmio, Adriano, do Flamengo, e Juninho, do Vasco. Para minimizar as perdas de receita em função da nova regulação, os clubes passaram a fazer contratos de longo prazo com cláusulas de multa em caso de rescisão.
O número de ações trabalhistas impetradas por jogadores aponta falhas jurídicas nos contratos de trabalho. Os clubes deveriam profissionalizar os seus departamentos jurídicos com a constituição de um cargo executivo remunerado, objetivando aprimorar a gestão dos contratos para o equilíbrio financeiro dos clubes.
Atualmente, a proliferação de empresários controladores de clubes que não participam dos principais campeonatos, mas são extremamente ativos no mercado de negociação de atletas, tornou-se frequente. O potencial de lucratividade de negociação de atletas justifica claramente a existência desses intermediadores, e não há razão para que os clubes não participem ativamente deste mercado. A Lei Pelé proíbe que os clubes firmem contratos com atletas de idade inferior a 16 anos, o que incentiva os empresários a firmarem contratos com os jovens valores da “base”, antes que estes possam assinar o primeiro contrato profissional com o clube. Dessa forma, não causa espanto que muitos jovens saiam para jogar no exterior sem nunca terem disputado uma partida pelos clubes que os formaram.
Custos de um clube de futebol
A maior parcela dos gastos de um clube é proveniente de pagamento de salários, premiações e demais atividades correlatas às atividades do futebol profissional. Segundo a tabela apresentada abaixo, para cinco dos clubes estudados, a média desta categoria de custos como proporção da receita nos anos de 2009 e 2010 foi de 69% e 66%, respectivamente.
Os economistas Szymanki e Kuypers (autores do livro “Soccernomics”) elaboraram um estudo com os clubes das diversas ligas do futebol inglês, incluindo aqueles participantes da Premier League, e obtiveram por meio de análises econométricas os seguintes resultados: a variável que melhor explica o desempenho de um clube de futebol numa determinada competição é o gasto com os jogadores; ou seja, os clubes com maiores valores de folha de pagamentos detêm os jogadores mais talentosos, o que, por seu turno, se traduz em melhores colocações nas tabelas de classificação. Outra análise interessante feita pelos estudiosos é que há uma forte correlação entre o crescimento das receitas e o crescimento com os custos salariais. Resumidamente, percebe-se que a geração de riqueza no futebol em grande parte termina por se concentrar nas mãos de alguns, em especial dos atletas mais habilidosos, e provavelmente de seus empresários e agentes.
As ligas de esporte profissional nos Estados Unidos mitigam a questão da alta proporção de riqueza capturada pelos grupos listados acima, através do mecanismo denominado “salarycap”, ou teto salarial. Observa-se na NFL (National Football League), na NBA (NationalBasketbalAssociation) e na MSL (Major Soccer League) que mecanismos de determinação de tetos salariais para atletas são estabelecidos no início das temporadas, seja na forma de valor absoluto ou como percentual da receita auferida. Esses dispositivos autorregulatórios das ligas americanas geram benefícios claros para as franquias esportivas, que passam efetivamente a gerar lucros e a investir na estrutura de preparação dos atletas. Por consequência, geram retornos sociais, ao estabelecerem vínculos com instituições de ensino para promover o esporte universitário e para contratação de novos atletas.
No Brasil, os contratos dos atletas, em que constam informações acerca dos salários dos jogadores, são registrados na CBF e nas federações – instituições privadas e sem fins lucrativos. A ausência de transparência sobre a titularidade dos direitos econômicos dos atletas e, principalmente, a falta de informação, sobre o valor previsto para a folha de pagamentos dos jogadores, ainda que de modo consolidado, inviabilizam qualquer análise financeira prospectiva.
Constata-se ainda um significativo conflito de interesse sobre a questão da titularidade dos direitos econômicos, visto que há registros de que dirigentes, treinadores ou agentes mais próximos às administrações dos clubes detêm participações nos direitos de alguns jogadores dos clubes em que trabalham, o que gera o potencial absurdo de que, em caso de transferência lucrativa do atleta, o clube acabe por não ser compensado financeiramente. Ou seja, há um claro processo de apropriação indébita da geração de valor, quando na verdade deveria haver retorno para as instituições (conforme corroborou a CPI do Futebol em 2001). Esse quadro é agravado pela existência de “clubes de fachada”. Uma vez que a legislação define que um atleta só possa ter contrato profissional com um clube de futebol, algumas empresas de gestão esportiva constituem clubes com o simples objetivo de negociar e lucrar com a venda de jovens talentos.
Na Europa, o Comitê Executivo da UEFA já estabeleceu que, em 2012, será instituído o fair play financeiro. Este é um programa que tem como alvo introduzir a disciplina financeira nos clubes europeus, incentivar a capacidade de investimento em formação e infraestrutura, objetivando retorno social, e reduzir a pressão sobre os valores salariais.
A despeito da isenção para vários tributos e encargos, os clubes apresentam elevadíssimos estoques não quitados de dívidas junto à Previdência Social e às prefeituras. Em 2011, a prefeitura do Rio Janeiro enviou projeto de lei para anistiar a dívida de ISS dos quatro grandes clubes, o que corresponde a valores superiores a R$ 300 milhões.
Dívidas dos clubes
Com relação às dívidas com a Previdência Social, foi criada a loteria Timemania, que tinha como objetivo garantir recursos aos clubes brasileiros para pagamentos de suas dívidas com a Previdência. Além dos recursos injetados nos clubes pela Timemania, o governo concedeu o parcelamento de seus débitos em até 240 meses com redução de 50% no valor das multas, além da possibilidade de minimização ou isenção, dependendo da arrecadação da loteria. A execução judicial dessas dívidas, em moldes análogos aos de qualquer empresa privada, levaria grande parte dos clubes brasileiros à falência. Esta decisão teria um custo político elevadíssimo e pouca probabilidade de êxito para quitação dos débitos junto aos órgãos oficiais. Desta forma, perpetua-se a crescente situação de dívidas dos clubes; o elevado endividamento chega a gerar propostas esdrúxulas, sem quaisquer contrapartidas com respeito à responsabilização da gestão. João Havelange recentemente afirmou: “No dia em que o governo quiser acabar com os clubes, é só cobrar. A situação é delicada e, por isso, faço um apelo aos governos: que zerem as dívidas com base no fato de que o esporte tranquiliza e é importante na educação das gerações”.
Sistematicamente, ao longo dos últimos anos, a maioria dos clubes utilizou-se de adiantamento de cotas de direito de transmissão de jogos pela TV para cobertura de déficits e demais compromissos financeiros. Concomitantemente, poucas instituições financeiras detêm a capacitação para mitigação de riscos legais, como a necessidade de anuência das principais fontes pagadoras. Tais bancos conseguem prover financiamento de curto prazo com elevadíssimas taxas de juros, o que fica bem claro através da observação do elevado volume das despesas financeiras constantes dos resultados financeiros dos clubes.
Governança corporativa: “O calcanhar de Aquiles”
A governança corporativa talvez se configure como o “Calcanhar de Aquiles” dos clubes brasileiros, o que dificulta uma correta gestão operacional e financeira. De um modo geral, os conselhos dos clubes são formados por centenas de pessoas, distribuídas em dois grandes grupos, quais sejam: os beneméritos, sócios que fizeram alguma contribuição financeira expressiva ao clube em algum momento, e os eleitos, que são conduzidos ao cargo por meio de eleições diretas, da qual todo o quadro de sócios pode participar.
Podemos afirmar que a maior parte dos insucessos nas tentativas de modernização do futebol brasileiro reside nos conselhos dos clubes. Entre o final da década de 1990 e meados da primeira década do presente século, houve uma tentativa de evolução da gestão dos clubes através das parcerias com investidores privados e/ou grupos estrangeiros, interessados especialmente em investir em mercados emergentes, cujo setor econômico possui elevadíssimo potencial de consumo. A despeito de algumas variações, o modelo consistia basicamente na cessão da administração do departamento de futebol dos clubes para as empresas, como ocorrido nas associações entre o Flamengo e a ISL, Corinthians e Hicks Muse, Vasco da Gama e Nations Bank, Palmeiras e Parmalat, Bahia e Opportunity.
Nesse modelo, a administração financeira passaria a ser feita pela empresa administradora, que apresentaria um orçamento de médio prazo ao presidente e ao conselho, e seria responsável por todo o custeio do futebol – inclusive folha de salários e aquisição de jogadores – e também por recolher todos os recursos das fontes pagadoras, como contratos de publicidade, cotas de televisão, bilheteria, etc. Apesar do sucesso considerável durante os primeiros anos, o modelo fracassou e os executivos que viveram o dia a dia destas associações apontam três motivos fundamentais para o fracasso deste modelo. O primeiro é, como afirmou um entrevistado, que “quem colocava o dinheiro efetivamente não mandava”. O segundo se deve ao poder dos conselheiros e dirigentes que terminavam por querer utilizar recursos na aplicação de outras finalidades, como subsidiar os demais departamentos esportivos e até para investimentos e reformas em parques aquáticos. O terceiro motivo foi o não reconhecimento, de fato, por parte das principais fontes pagadoras (emissoras de TV) da constituição do consórcio clube-empresa, o que levava essas fontes a fazer os créditos nas contas correntes dos clubes, às quais os executivos não tinham acesso.
Duas hipóteses para o não cumprimento formal destas atividades podem ser apontadas. A primeira é o fato de que os principiais clientes dos clubes não estariam interessados em fortalecer estas instituições a ponto de terem de negociar com experientes profissionais de mercado, o que significaria maior transferência de valor para os clubes. A segunda é o risco jurídico que corriam por não creditarem diretamente aos clubes, sendo esta hipótese factível de mitigação com o devido amparo de bons escritórios de advocacia.
Dois elementos fundamentais para o funcionamento de uma empresa participante de um mercado competitivo não estão presentes no futebol: i) a responsabilidade limitada em caso de geração de prejuízos seguidos com o registro de patrimônios negativos, o que faz o risco moral dos dirigentes ser praticamente inexistente (apesar das episódicas denúncias feitas em reportagens nos grandes jornais) e ii) a falta de remuneração dos dirigentes eleitos que fazem a gestão do dia a dia, o que acaba gerando interesses escusos, como na participação dos direitos econômicos de alguns jogadores, ou no possível desvio de recursos.
As proposições de alteração na estrutura da governança corporativa dos clubes certamente não virão das federações, CBF ou da FIFA. Em recente entrevista, publicada na revista Piauí, o então presidente da CBF afirmou sobre a instituição que comandava: “Não tem dinheiro público, não tem isenção fiscal”. Segundo estimativas, para a Copa do Mundo de 2010, a África do Sul gastou cerca de 3,7 bilhões de libras esterlinas com investimentos de infraestrutura geral, enquanto a FIFA – que não aporta recursos, apenas faz exigências –, para a realização deste tipo de evento, auferiu uma receita estimada em 2,5 bilhões de libras esterlinas.
Conclusões e propostas
Transformar o futebol brasileiro e inseri-lo no conceito regular de atividade econômica não é trivial. Diferentemente do que ocorre nos demais setores econômicos, no âmbito do futebol, o competidor, seu eterno rival, é mutuamente importante, o que significa que angariar mercado objetivando a redução do mercado (torcida) do adversário não é um objetivo de longo prazo. A busca pela maximização de retorno financeiro, através de constituição de monopólio em determinados segmentos, ou especialização em nichos de mercado é indesejável. Clubes com desempenhos erráticos ao longo de anos não perdem seus mercados cativos de torcedores instantaneamente, como nos demais setores. O futebol é extremamente estável: todos os clubes da Série A do Campeonato Brasileiro estão próximos dos 100 anos de atividade regular, desde suas fundações. Ao mesmo tempo, das empresas que compunham o Ibovespa em 1970, 20% faliram.
Os déficits operacionais ou patrimônios líquidos negativos apresentados pelos clubes não penalizam nenhuma das partes que têm ingerência sobre essas variáveis, quais sejam: sócios, dirigentes e CBF. Os grandes prejudicados por esse cenário são a sociedade, o governo e, em menor escala, os próprios atletas. O volume de recursos públicos utilizados para a realização dos campeonatos de futebol, como segurança, transporte coletivo, iluminação pública, limpeza urbana, sem falar dos pesados investimentos para construção e manutenção dos estádios – a maior parte de propriedade dos estados – são motivos suficientes para se exigirem contrapartidas concretas dos clubes de futebol. A dicotomia da utilização de recursos públicos para fins privados no esporte é corroborada pela opinião da economista Elena Landau, que em recente entrevista afirmou: “(…) o Brasil privatizou – e privatizou mal – os esportes. Entregaram sem critério nenhum para federações e confederações, que não passam de feudos políticos. Então, quem cuida do esporte brasileiro? Quando é conveniente, o esporte é público, e aí pede dinheiro ao governo… quando não é conveniente, quando tem que prestar contas, ser transparente, reclama-se da interferência do governo em assunto privado”.
Se não por outros motivos, as crescentes dívidas resultantes da inadimplência de impostos devidos aos governos federal e municipal, a despeito da criação da “Timemania”, justificam o interesse oficial no assunto. A gestão temerária impõe um elevado grau de incerteza aos atletas quanto ao fiel cumprimento de seus contratos. Segundo Kuper e Zimanski, “os clubes de futebol precisam saber o que são…, como museus…, organizações voltadas para o público que têm como meta servir a comunidade e, ao mesmo tempo, se manterem razoavelmente solventes”.
As principais ações para a melhoria da administração dos clubes brasileiros e seu fortalecimento institucional devem estar centradas na regulação por parte do governo e na governança corporativa destas entidades esportivas. Nesse sentido, a principal proposição deste artigo é a criação de uma Lei de Responsabilidade Esportiva – LRE para regular as atividades do esporte no Brasil, a começar pelo futebol. Os clubes deveriam apontar uma Diretoria Executiva remunerada, indicada pelos Conselhos Deliberativos e Fiscais, que seria a unidade responsável pela geração de informações demandadas no âmbito da referida Lei.
Mecanismos de responsabilização
A LRE exigiria a transparência da estrutura de detenção dos direitos econômicos dos atletas, a divulgação dos valores a serem aplicados na formação humana e na estrutura física dos clubes, a publicação de relatórios financeiros na internet e a definição de critérios mínimos quanto ao processo eleitoral dos clubes. Além disso, caberia a discussão do conceito de utilização do salarycap (teto salarial), variável imprescindível para que a cadeia de geração de valor possa fortalecer as instituições esportivas, e a definição de penalidades aplicáveis aos clubes e a seus diretores executivos e presidentes, em caso de não cumprimento das metas estabelecidas. Ainda sob a ótica regulatória, a Justiça Federal poderia instituir a centralização das ações judiciais relacionadas ao esporte, em uma determinada vara judicial, para auxiliar no ordenamento jurídico das atividades das entidades de desporto.
No âmbito da LRE, entre as atribuições imputáveis à CBF, estaria a administração de uma câmara de compensação financeira com relação aos direitos econômicos de clubes/investidores sobre os atletas profissionais. As informações transacionais ficariam à disposição do Estado através de seus órgãos de fiscalização, em especial o Banco Central e a Receita Federal.
A Diretoria Executiva e o presidente de cada clube seriam responsáveis por administração, solvência e probidade administrativa. Entre suas atribuições de prestação de contas, destaca-se a apresentação dos planos orçamentários para um horizonte prospectivo de até três anos.
A despeito da tentativa de profissionalização da gestão do futebol no Brasil e das iniciativas de gestão autônoma por parte de investidores especializados, fica claro que este processo foi interrompido. A Lei 9.981/2000 facultou aos clubes a transformação em sociedade com fins lucrativos, dispositivo que era obrigatório de acordo com o texto original da Lei Pelé. Tal alteração contou com o apoio de dirigentes dos clubes, uma vez que a transformação de clubes em empresas lhes impunha responsabilização, de acordo com as leis aplicáveis, e a necessidade de pagamentos de tributos federais.
Observa-se, então, que o problema do futebol no Brasil é mais estrutural do que parece e não se limita às dificuldades financeiras enfrentadas pelos clubes. O esporte, pelo número de praticantes, deveria ser o elemento motriz para a instituição de políticas públicas que dessem condições às entidades para o desenvolvimento de atletas. Estimuladas pelas potencialidades resultantes de um arcabouço político e fiscal favorável, empresas e universidades participariam do desenvolvimento do esporte como atividade econômica e meio de formação de cidadãos.
A permanência dos clubes como entidades de prática esportiva sem fins lucrativos não é impeditiva para que haja excelência na gestão dos negócios no futebol. Todavia, para que os clubes possam se fortalecer institucionalmente e proporcionem retornos efetivos à sociedade, tendo em vista os recursos púbicos e privados de que fazem uso, é indispensável que os mecanismos de responsabilização e de cobranças sejam devidamente constituídos.
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