A Internacionalização da indústria farmacêutica brasileira: um caminho sem volta
Desde a década de 1990, está em curso uma forte transformação da indústria farmacêutica internacional . De um lado, a indústria se expande para além das fronteiras dos países-sede das empresas do setor, descentralizando não apenas atividades comerciais e industriais mas também processos de pesquisa e desenvolvimento dos quais resultam inovações. De outro lado, essa expansão tende a concentrar determinadas atividades em alguns países-chave, que se especializam em produtos ou em etapas da cadeia farmacêutica . Um dos principais reflexos desse movimento é o crescimento dos fluxos globais de comércio internacional de medicamentos e matérias-primas para o setor O processo de internacionalização da cadeia farmacêutica é impulsionado por diversos fatores, alguns específicos do setor, outros típicos da globalização produtiva. O crescimento da demanda por produtos farmacêuticos tanto nos mercados centrais como nos países emergentes explica em parte esse movimento. A busca de maior competitividade via investimentos na qualidade, eficiência e especialização também colabora para a internacionalização da indústria farmacêutica. Sejam quais forem os drivers, as empresas farmacêuticas tanto de pesquisa como de genéricos vêm-se posicionando para competir em um ambiente cada vez mais acirrado.
Não só está mais difícil descobrir e comercializar uma nova droga, como também as margens de lucro das empresas genéricas estão se tornando cada vez menores. Nesse sentido, uma das principais estratégias para a internacionalização da indústria farmacêutica tem sido as fusões e aquisições entre empresas do setor localizadas em países diversos.
Por meio dessas operações, as empresas buscam acesso a mercados regulados, diversificação da carteira de produtos, incorporação de tecnologias específicas, entre outros objetivos. Entre os diversos exemplos de expansão internacional por parte de empresas farmacêuticas destacam-se:
• em 2005 a Novartis fortaleceu seu braço de genéricos Sandoz comprando a alemã Hexal
e a americana Eon, tornando-se assim a segunda maior empresa de genéricos do mundo;
• a japonesa Daiichi-Sankyo fechou acordo com a indiana Ranbaxy para obter seu controle acionário;
• a israelense Teva, hoje líder global de genéricos, comprou a espanhola Bentley para fortalecer sua presença no mercado espanhol de genéricos e posteriormente comprou a quarta maior empresa de genéricos do mundo,a norte-americana Barr;
• a francesa Sanofi-Aventis fez recentemente oferta de compra das ações da empresa de genéricos Zentiva, da República Tcheca (a operação foi inicialmente recusada pelo Conselho da Zentiva) .
Na mesma linha, a internacionalização do setor é também impulsionada pela crescente terceirização e descentralização dos processos produtivos e inovadores das empresas A constante busca de inovação na indústria farmacêutica tem igualmente fomentado um movimento de fusões, aquisições e terceirização envolvendo empresas localizadas em países diferentes. Nesse sentido, é importante destacar o crescimento de serviços voltados para a inovação farmacêutica fora das sedes das matrizes das empresas do setor, muitos dos quais altamente especializados e localizados em países estrangeiros. A facilidade com que dados e informações podem ser transmitidos para qualquer local do planeta possibilitou o surgimento de redes internacionais de inovação, às quais a indústria farmacêutica está fortemente ligada em diversos elos da cadeia de pesquisa e desenvolvimento. Cabe destacar que essa cadeia envolve empresas de testes clínicos, institutos de pesquisas, empresas de biotecnologia, desenvolvedores de softwares e soluções tecnológicas, entre outros.
A viabilização de algumas dessas empresas altamente especializadas que fazem parte dessa cadeia só é possível devido à escala global em que as mesmas atendem.
As empresas Ranbaxy,da Índia, e a Teva, de Israel, são bons exemplos da estreita relação entre inovação e internacionalização via parcerias. A Ranbaxy mantém projetos de cooperação com a gsk e a Merck para o desenvolvimento de novos medicamentos. A empresa tem em seus quadros 1 200 cientistas que atuam em duas áreas:
1) inovações incrementais buscando melhorias na performance de medicamentos e
na redução de eventos adversos e
2) descoberta de novas moléculas para o tratamento do câncer, de doenças respiratórias e de doenças infecciosas.
A israelense Teva investe em P,d&I para o desenvolvimento de novas drogas em três áreas: imunologia, oncologia e desordens neurológicas.
A empresa sustenta parcerias com start-ups israelenses e instituições acadêmicas para ter acesso imediato a projetos promissores ainda nas suas fases iniciais. Em 2008, a Teva começou a buscar projetos similares em nível global. Rumo à internacionalização.
No Brasil, apesar de haver uma cadeia bastante avançada, constituída por empresas de capital nacional e estrangeiro, ainda são tímidos os movimentos de internacionalização das empresas locais Mesmo que empresas como a Biolab e a Eurofarma já mantenham parcerias com universidades brasileiras, essas parcerias ainda são mais exceção do que regra.
Tradicionalmente, o mercado farmacêutico no Brasil era segmentado da seguinte maneira:as empresas de capital estrangeiro fabricavam e comercializavam produtos inovadores(também chamados de produtos de marca) e as empresas de capital nacional eram responsáveis pela produção e vendas de produtos genéricos ou similares, ou seja, produtos que já tiveram suas patentes expiradas . A própria representação setorial da indústria segue essa lógica, já que os dois grupos tinham agendas estratégicas distintas É importante destacar, no entanto,que nos últimos anos o setor vem passando por um movimento bastante intenso de consolidação, fortalecendo algumas empresas nacionais e dando massa crítica para o desenvolvimento de inovações por parte dessas empresas,o que certamente terá reflexo numa maior internacionalização de toda a cadeia Além de incentivos diversos por parte do governo brasileiro para promover a fabricação e o desenvolvimento de medicamentos no país, o crescimento de algumas empresas domésticas,sobretudo dentro do mercado de genéricos,vem proporcionando uma capitalização ímpar do setor . Na mesma linha, as operações das empresas multinacionais no país vêm-se sofisticando para além de processos industriais e estratégias comerciais, muitas vezes em parceria com empresas locais que atuam em diversos elos da cadeia produtiva e inovadora.
Do ponto de vista industrial, outro fator importante que impulsiona a expansão internacional
das empresas é a facilitação de trâmites de comércio internacional, o que possibilita a concentração de linhas produtivas em países que oferecem as melhores condições, do ponto de vista de competitividade econômica, segurança dos investimentos, disponibilidade de recursos, entre outros fatores. A facilitação dos trâmites de comércio internacional, por sua vez, pode ser explicada por diversas razões, entre as quais, a redução progressiva das tarifas aplicadas aos produtos farmacêuticos, seja no âmbito multilateral, seja dentro de blocos comerciais, a redução dos custos logísticos, a estruturação de serviços de transporte e a armazenagem especializa da para a indústria farmacêutica. É justamente por conta dessa maior facilidade em deslocar matérias-primas e produtos finais que as empresas vêm concentrando suas linhas produtivas nos países que oferecem melhores condições para a especialização.
O mercado latino-americano
Um dos destaques desse duplo movimento é o crescimento das exportações de produtos farmacêuticos do Brasil,sobretudo para países da América Latina (ver tabela 1) Seguindo a lógica verificada nos mercados internacionais,as exportações de medicamentos a partir do Brasil podem ser explicadas parcialmente pela concentração da produção de algumas linhas globais de empresas multinacionais no país, de onde são fornecidas para todo o mundo Trata-se fundamentalmente de comércio intrafirma,não apenas de produtos finais, mas também de insumos,matérias-primas,materiais para embalagens,etc. Essa tendência é ainda mais intensa do ponto de vista regional,dado que o Brasil vem-se consolidando como hub produtivo de diversas linhas de produtos para toda a América Latina. Outro fator que explica a ampliação das vendas internacionais de medicamentos pelo Brasil é o crescente interesse das empresas de capital nacional em expandir suas operações para além das fronteiras do país.
Além da proximidade geográfica e cultural, essas empresas enxergam a América Latina como área de expansão natural de seus mercados, como resultado das margens de preferência tarifárias estabelecidas pela rede de acordos de livre comércio assinados pelo Brasil na região e do alto nível regulatório exigido pela Anvisa (ver tabela 2 na página seguinte) Esse padrão de regras na maior parte das vezes possibilita a obtenção de licenças nos países da América Latina sem que haja a necessidade de grandes ajustes nos produtos e processos fabris. O Brasil é signatário de acordos de livre comércio com os seguintes países da região:
• Argentina,Paraguai e Uruguai (Mercosul);
• Chile (ace 35 – Mercosul–Chile);
• México (ace 53 – Brasil–México);
• Colômbia,Equador,PerueVenezuela (ace59 – Mercosul–can);
• Bolívia (ace 36 – Mercosul–Bolívia);
• Cuba(ace 43 –Brasil–Cuba) .
Todos eles estabelecem margens de preferência tarifária para produtos farmacêuticos. Em alguns casos essa margem chega a 100%,garantido um diferencial competitivo em relação
a empresas que exportam os mesmos produtos a partir de outros países. A estratégia de iniciar as atividades internacionais pela América Latina é bastante comum em diversos segmentos industriais e de serviços do Brasil Da mesma forma, empresas multinacionais costumam ter no Brasil sua sede paraoperações em toda a região,sejam elas no setor produtivo sejam no de serviços. Do ponto de vista industrial, notadamente no setor químico, de bens de capital, eletroeletrônico, de higiene pessoal, de produtos de limpeza, entre outros, a região é atrativa por existir de manda por produtos similares aos oferecidos no mercado brasileiro . Uma vez estabelecidas operações nesses países, as empresas em geral passam a entender a dinâmica internacional de seus segmentos e buscam oportunidades em mercados fora da região .
Mercados globais
Apesar do crescimento das exportações brasileiras de medicamentos, é fato que a inserção internacional das empresas do setor continua muito aquém de suas possibilidades . Uma das
empresas pioneiras na busca da inserção internacional no Brasil é a ems-Sigma . Além de exportar para mais de quinze países,a empresa atuana Itália comum centro de pesquisas e tem uma joint venture em Portugal. Outra empresa bastante atuante em mercados internacionais é a Cristália . Além de exportar princípios ativos e produtos acabados para diversos países na América Latina, Ásia e Oriente Médio, a empresa disponibiliza também tecnologias para parceiros internacionais. A Pharmacopedia dos EUA reconheceu recentemente cinco substâncias sintetizadas pela empresa,considerando-as reference standards .
Mesmo que um mercado do tamanho do Brasil propicie a escala necessária para ganhos significativos de competitividade, a regionalização e internacionalização das empresas nacionais é um passo fundamental a ser dado,seja por meio de aquisição de empresas, celebração de parcerias estratégica, colaboração em pesquisa ou mesmo expansão de operações comerciais próprias em países estrangeiros . Diversas empresas brasileiras de outros segmentos já incorporaram a expansão internacional em suas estratégias,entre as quais Petrobrás, csn, Gerdau, Ambev, Votorantim, CitrosucoeEmbraer . Além de proporcionar acesso a novos mercados e tecnologias, a internacionalização reduz os custos de capital das empresas, na medida em que os riscos operacionais são pulverizados em vários mercados Para o Brasil, a internacionalização das empresas tem um impacto importante nas contas públicas a médio e longo prazo, já que as mesmas tendem a remeter lucros edividendos de volta para o país .
Políticas para o setor
A importância da internacionalização como instrumento fundamental para o fortalecimento das empresas e o aumento da competitividade já foi incorporada pelas políticas públicas do governo brasileiro. Nesse sentido, em 2005 o BNDES aprovou a primeira operação de financiamento voltada especificamente para a internacionalização de
empresas brasileiras :a Friboi – a maior empresa frigorífica de carne bovina do país – recebeu Us$ 80 milhões para a compra da empresa argentina Swift Armour S.A.
Especificamente para a indústria farmacêutica, o BNDES lançou, em maio de 2004, seu Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutica (Profarma),como instrumento da Política Industrial,Tecnológica e de Comércio Exterior (PItce). Até dezembro de 2007 foram financiados 49 projetos com apoio financeiro de R$ 1,03 bilhão,nas áreas de produção; fortalecimento de empresas nacionais e investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação (ver tabela 3). Vale destacar que os dois últimos subprogramas do Profarma (fortalecimento de empresas nacionais e investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação) promovem de maneira indireta a internacionalização das empresas nacionais . Um dos objetivos do Profarma, em sua segunda fase, inaugurada em 2008, é criar uma empresa de controle nacional com faturamento superior a Us$ 1 bilhão e com forte presença internacional. Essa presença internacional, por sua vez, seria assegurada pelo desenvolvimento de produtos inovadores para exportação,assim como fuso e se aquisições com empresas do setor em outros países . O mesmo apoio dado pelo BNDES à Friboi seria oferecido a essa companhia .
Caminho para a inovação
Há uma forte relação entre internacionalização, competitividade e inovação . Ao contrário das indústrias tradicionais, empresas de tecnologia (como é o caso da indústria farmacêutica)
utilizam-se da internacionalizaçãoparateracessoarecursosfinanceirosehumanospara pesquisa e desenvolvimento e fortalecer sua base tecnológica. Por exemplo,em junho deste ano a Novartis adquiriu a norte-americana Protez Pharmaceutical para fortalecer sua linha de antibióticos hospitalares e, em julho,a britânica gsk fez uma parceria com a Harvard Stem Cell Institute da Harvard University para o desenvolvimento de pesquisa em células-tronco .
Essa relação é discutida por Glauco Arbixem seu livro Inovar ou Inovar: A Indústria Brasileira entre o Passado e o Futuro (Ed . Papagaio,2007) Arbix conclui que existe uma relação positiva entre o desempenho exportador de um país e o estabelecimento de subsidiárias de suas empresas no exterior. Na mesma linha,o autor demonstra que os movimentos de internacionalização motivados pela busca da inovação – ou capacitação para a inovação – podem efetivamente melhorar o desempenho das vendas externas das empresas brasileiras Conclui que investimento direto no exterior está fortemente relacionado com a obtenção de preço-prêmio nas exportações Em outras palavras,as empresas internacionalizadas com foco em inovação exportam mais do que aquelas que não se internacionalizaram, etornam-se mais competitivas devido à incorporação de inovações tecnológicas advindas de tal processo.
A relação entre inovação e internacionalização é bastante evidente na indústria farmacêutica, sobre tudo na área de pesquisa e desenvolvimento. Um produto farmacêutico inovador tem como mercado natural o mundo e não apenas o país em que foi desenvolvido . A escala global é necessária inclusive para justificar os altos investimentos realizados em processos inovadores na indústria farmacêutica. É justamente esse foco no mercado global que viabiliza que países
pequenos como a Irlanda, Cingapura, Taiwan e Israel tenham uma indústria inovadora .
Aliança com universidades
Diversas empresas brasileiras vêm percebendo a importância de se diversificar com produtos inovadores e vêm investindo em estratégias similares
Alguns exemplos de empresas do setor que vêm seguindo esse caminho são a Ache e a Biolab Ambas investem em pesquisa e desenvolvimento e mantêm parcerias com o setor acadêmico para o desenvolvimento de novos e melhores medicamentos . Há inclusive um consórcio entre
as duas empresas e a União Química, o Coinfar, voltado justamente para a pesquisa e desenvolvimento de inovações radicais, dedicando-se à descoberta de novas moléculas de alto potencial terapêutico a partir da biodiversidade brasileira. O Coinfar foi criado em 2002 e mantém projetos em colaboração com instituições importantes como a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),o Instituto de Pesquisa Tecnológica de São Paulo (IPT) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Cabe ainda mencionar o amplo portfólio de pesquisa na área de saúde e fármacos dessas e outras entidades acadêmicas do Brasil, com destaque para a Unicamp . Com a Lei de Inovação foram criadas condições para parcerias público-privadas e isso deve no médio e longo prazo impactar a estratégia de inovação das empresas, dando impulso à internacionalização da indústria farmacêutica brasileira. Deve-se ter em conta que as cadeias de inovação são absolutamente internacionalizadas, inclusive com mobilidade de cientistas e pesquisadores,e que o Brasil,ainda que timidamente,já integra algumas dessas redes .
Conclusão
Nota-se assim que a indústria farmacêutica do Brasil está muito próxima de acompanhar os passos que empresas do mesmo setor em outros países em desenvolvimento já deram em direção a mercados internacionais . Os ganhos desse movimento para as empresas e para o país são muito grandes, como já foi mencionado aqui.
Conclui-se assim que as principais questões estruturais que condicionam a internacionalização de empresas já estão equacionadas no país e restam apenas alguns ajustes a ser feitos para que a internacionalização se torne regra e não exceção O consenso político e social em torno da promoção de inovação e da melhoria da competitividade na indústria certamente terá um impacto positivo nesse sentido . Por último, vale ressaltar que as empresas multinacionais presentes no mercado brasileiro podem ser um vetor importante da internacionalização da cadeia farmacêutica, como já ocorre em outros setores como tecnologia da informação e indústria automotiva.
É presidente da Novartis do Brasil.
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