11 janeiro 2013

A Interpretação e a Segurança Jurídica no Caso do Mensalão

Durante praticamente todo o segundo semestre de 2012, assistimos a um dos maiores julgamentos da história do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Trinta e oito réus, entre os quais parlamentares e ministros de Estado, acusados de crimes contra a administração pública e o sistema financeiro nacional.

Durante praticamente todo o segundo semestre de 2012, assistimos a um dos maiores julgamentos da história do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Trinta e oito réus, entre os quais parlamentares e ministros de Estado, acusados de crimes contra a administração pública e o sistema financeiro nacional.

Em março de 2006, a Procuradoria Geral da República apresentou denúncia ao STF contra os envolvidos em um esquema de corrupção, apurado em Comissão Parlamentar de Inquérito, e que acabou recebendo o nome de “Mensalão”, em referência ao suposto pagamento mensal feito pelos líderes do governo à época, a parlamentares, em troca de apoio político.

Em agosto do ano seguinte, 2007, a ministra Ellen Gracie, primeira mulher a ocupar uma cadeira na Suprema Corte brasileira, dá os primeiros sinais de independência e amadurecimento da Corte, ao colocar em pauta a denúncia relativa ao Inquérito 2.245, e subordinar o plenário à sua apreciação. A denúncia, que tinha como alvo o partido que então ocupava a presidência da República, é recebida e transformada na Ação Penal de número 470, com um rol de 40 réus.

De certo, não é a primeira e nem a última ação judicial sobre corrupção no Brasil; nem mesmo experiência exclusivamente nacional. Mas, em lugar de uma ação pontual, tem como objeto um complexo mecanismo de distribuição de recursos do governo central para o robustecimento de sua base política, à margem do controle das autoridades competentes. Com isso, o Estado brasileiro teve oportunidade de mostrar significativa maturidade institucional ao enfrentar suas próprias mazelas, sem colapsar; e consolida-se como democracia, ao garantir a integridade de um amplo processo eleitoral durante este mesmo período. Trata-se da eleição para prefeitos dos 5.564 municípios brasileiros, ocorrida em outubro e novembro de 2012, e da qual participou, com relativo sucesso, o partido mais atingido em todo este episódio: o Partido dos Trabalhadores. Prova disso está no fato de o PT ter alcançado a prefeitura da capital do estado mais populoso da federação, que é São Paulo.

A Ação Penal 470 contém dois eixos temáticos: crimes contra a administração pública e crimes contra o sistema financeiro nacional. O primeiro bloco engloba os crimes de peculato, corrupção ativa e corrupção passiva, e o segundo, os crimes de gestão fraudulenta de instituição financeira, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, que compõem o leque dos apelidados crimes do colarinho branco. E, em decorrência do caráter organizacional de toda essa engrenagem, evocou-se também o crime de formação de quadrilha.

O STF, sob a presidência do ministro Carlos Ayres de Britto, preparou-se para missão de tamanha envergadura, com o aumento do número de sessões plenárias por semana. Em lugar de duas, passou-se a contar com mais uma sessão extra, perfazendo um total de três reuniões semanais. A primeira questão enfrentada foi a da possibilidade de desmembramento do processo, tendo em vista que apenas quatro réus contavam com o “foro por prerrogativa de função”. Os advogados dos demais réus defendiam a observância do juiz natural, na primeira instância judiciária dos respectivos estados, garantido ainda o duplo grau de jurisdição. Contudo, o Tribunal determinou o julgamento conjunto de todos os envolvidos, em primeira e única instância da Corte Suprema. O entrelaçamento dos fatos requeria uma visão conjunta sobre a responsabilidade dos diversos autores do chamado esquema do Mensalão, e o timing do julgamento deveria ser o mesmo, para não prejudicar o seu resultado. Dado o alcance da ação, tanto em termos políticos quanto jurídicos, era, ainda, de ser considerada uma tarefa para o Tribunal Superior, muito embora sua principal competência seja a da jurisdição constitucional. E o STF acabou por se mostrar um tribunal independente, a considerar o sistema de indicação de seus componentes, feita pelo chefe do Poder Executivo, com aval do Senado Federal, que tradicionalmente aprova os nomes que lhe são enviados. Não obstante, resta a indagação sobre os efeitos da opinião pública e da mídia sobre o julgamento.

Um destaque sobre o voto do relator

A extensão e a complexidade do caso, associadas ao número significativo de réus, fizeram com que o relator, ministro Joaquim Barbosa, aproveitasse a linha de raciocínio do Ministério Público. E, para não perder o fio da meada, opta por adotar a mesma estrutura na apresentação dos fatos, conforme consta da denúncia. Dispõe sobre a existência de um núcleo político, um núcleo operacional e um núcleo financeiro, sendo que o primeiro encontra-se subdividido em dois: a alta cúpula do partido que comandava o país, o PT, numa ponta, e, na outra, os parlamentares da base aliada. Contudo, em um esforço estratégico, apresenta-os em ordem diversa. No lugar de começar pelas informações a respeito do núcleo político, tal como fizera o Ministério Público, elabora sua narrativa a partir do crime de peculato. Juntamente com a comprovação, na sequência, da lavagem de dinheiro e da corrupção passiva, constrói um acervo de fraudes a partir do qual chega-se mais facilmente à conclusão sobre a existência de uma quadrilha capaz de liderar o comando de todos esses feitos. Diante da fragilidade das provas diretas, capazes de incriminar os possíveis mentores do esquema, dificilmente chegar-se-ia a tal conclusão. Assim, ao que parece, a Corte valeu-se de fontes indiretas ou indiciárias.

De acordo com Miguel Reale Júnior, “os indícios são elementos conhecidos da realidade a partir dos quais, segundo os dados da lógica, alcança-se a descoberta de um fato não conhecido diretamente. São elementos certos quanto à sua existência que, coordenados segundo as categorias da inteligência, por sua qualidade e quantidade, apontam, de forma unívoca, uma realidade não diretamente provada”. Assim, uma vez consubstanciados e presentes os crimes já na imaginação dos juízes, mais fácil e lógico foi concluir sobre a existência de líderes do esquema que daí se infere. Pode-se, então, lançar a pergunta: será que os acusados de liderar todo o esquema (agora comprovado) “não sabiam das fraudes realizadas?”. Inverte-se, dessa maneira, a pergunta normalmente feita no processo penal. No lugar da dúvida, a certeza. Em vez de se perguntar “será que fulano sabia?”, indaga-se: “será que fulano não sabia (daquilo que agora se mostra claro)?”. Tal inversão de perspectiva, ou ponto de partida, pode vir a comprometer o princípio da presunção da inocência. Quem acompanhou o julgamento pelas redes de televisão, percebeu claramente que a Corte tratou a sua dúvida como se fosse a mesma dúvida dos agentes de outrora.

A estratégia utilizada pelo relator, na construção da narrativa, foi fundamental até para que, na visão dos outros intérpretes que compõem o colegiado da Corte, aparecesse como óbvia a origem ilícita dos recursos, necessária para a configuração do crime de lavagem de dinheiro, que a toma como requisito. Contudo, como vimos, a obviedade que se impõe ao intérprete, a posteriori, não é a mesma dos atores que deram vida à cena. A hermenêutica jurídica, nesse sentido, em muito se aproxima da hermenêutica histórica. Em ambas, o intérprete de hoje tem domínio sobre os fatos pretéritos, porque é ele o autor da narrativa. É ele quem conta a história. Pode, inclusive, apresentar os fatos em sequência diversa da sua ordem cronológica, começando pelo final ou recortando-a livremente. Tudo, conforme o sentido intencionalmente conferido aos fatos. O intérprete busca a compreensão da realidade a partir da pré-compreensão compartilhada pelos componentes do órgão colegiado.

Mas, ainda que o historiador seja responsável por atribuir sentido aos fatos, e daí a diferença entre os diversos estudiosos, o intérprete do Direito esforça-se mais em convencer seus interlocutores, dado encontrar-se sempre envolvido com uma tarefa prática: a de resolver um problema concreto. Ambos, tanto o historiador quanto o jurista, trazem o passado para o presente, conferindo-lhe sentido a partir de suas pré-compreensões. Com Gadamer, podemos dizer que o estranhamento provocado pela experiência acumulada na tradição, que estabelece o raio de visão do intérprete, é o que provoca o esforço hermenêutico. Gadamer fala da fusão de horizontes entre passado e presente, considerada a presença histórica do intérprete. O estranhamento é justamente o que enseja a pergunta.

Tática do relator

Assim, o relator da Ação Penal 470 produziu uma interpretação sobre o ocorrido a ponto de concluí-la com uma pergunta cuja resposta mostrou-se óbvia. “Será que não houve uma liderança na condução de todo esse processo?” A resposta aparece como necessariamente positiva: “sim”, pois do contrário o esquema não funcionaria. Por isso, não foi necessário um esforço maior de interpretação, após a história contada, para se chegar à mesma conclusão do relator. Do contrário, caso a narrativa se iniciasse com a apresentação de uma suposta quadrilha, possivelmente estaria destituída de sentido. Não haveria conteúdo que caracterizasse a ação. Contudo, cabe perguntar: será que os atores de então detinham o mesmo conhecimento dos intérpretes de agora, de forma a poderem ser responsabilizados na extensão com que fez a Corte ao condená-los? Esta pergunta cabe na medida em que para a responsabilização penal concorre o elemento subjetivo do dolo. Há de ser comprovada a intenção do sujeito para praticar o crime, ciente de todas as suas nuances. E, como o esquema pretendia dar aparência de licitude ao que era ilícito, conhecer a origem ilícita dos recursos e as verdadeiras intenções dos agentes da cúpula torna-se indispensável à configuração do crime.

Este segundo aspecto, conhecer as verdadeiras intenções dos agentes da cúpula, incide sobre a existência do vínculo necessário entre o corruptor e o corrompido, por meio do “ato de ofício”. É necessário que o corruptor queira que o corrompido faça alguma coisa de seu interesse, mediante contrapartida vantajosa. Essa relação tem que ser clara. Do contrário, outros compromissos assumidos anteriormente entre a cúpula partidária e a base aliada, como o pagamento das dívidas de campanha, poderiam restar caracterizadas. Muito embora o repasse de verbas por meio de um esquema paralelo, conhecido como “Caixa 2”, configure ato ilícito, não se confunde com o crime de corrupção. São coisas distintas, a produzir consequências também distintas. Para o crime de corrupção a pena é de 3 a 12 anos de prisão, e para o “Caixa 2” eleitoral, de acordo com a Lei 9.504, de 1997, é de multa. Não foram poucas as vezes que, durante o julgamento, pudemos assistir aos ministros considerando que, uma vez comprovada a origem ilícita dos recursos, como supor o contrário? Contudo, tal comprovação deu-se no momento do julgamento, e não necessariamente antes, de forma a estar ao alcance de todos os envolvidos no momento em que as ações foram realizadas. Daí podermos concluir que a tática de interpretação do ministro relator foi determinante para o sucesso de sua abordagem. Seu poder de convencimento, frente aos pares, deveu-se, em grande parte, à coerência do discurso que construiu.

Por fim, a linha de raciocínio, indutiva, que parte do particular para o geral, fez com que a Corte acatasse o que entende como “teoria do domínio do fato”, no sentido de que para a complexa engrenagem de repasse do dinheiro haveria um mentor, ou responsável último, o qual, apesar de não deixar documentado nada que pudesse incriminá-lo, tinha o controle final do fato e de suas circunstâncias a ponto de poder impedir o comportamento indevido por parte dos demais atores, se quisesse. Era alguém que se mostrava presente, em diversos encontros com os demais incriminados, pelo cargo que ocupava e pelas funções que realizava. Por conclusão lógica, suas ações, ainda que ocultas, teriam sido determinantes para o sucesso do plano. Ele dominaria “a vontade da ação”. De acordo com Lenio Streck, “algo como os autores sempre têm o domínio do fato; já os partícipes, não, porque sua ação é acessória”. Para Streck, “o problema é que a dogmática jurídica pode vir a transformá-la em uma tese indeterminada.” Assim, uma das principais consequências desse julgamento será justamente a repercussão da teoria do domínio do fato nos diversos ramos do Direito.

O problema da segurança jurídica

O valor primordial do Estado de Direito, e para o qual convergem os valores da igualdade e da liberdade, é o da segurança jurídica. É a segurança oferecida pela lei, previamente estabelecida, de forma a evitar o arbítrio. Um problema, portanto, de previsibilidade sobre o que se pode ou não se pode fazer; sobre o que é lícito e o que é ilícito. Trata-se do que teremos certeza de que o poder público irá garantir. Entretanto, a lei, como texto, não se confunde com a norma, resultado da interpretação sobre a conduta prescrita a ser por todos seguida. Tomemos, então, como ponto de partida, que o Direito é interpretação.

Um segundo ponto é o da hierarquia sistêmica do modelo brasileiro, à semelhança de vários outros. No ápice da pirâmide normativa, conforme a metáfora extraída da obra de Hans Kelsen, encontramos a Constituição Federal. E, no topo da estrutura judiciária, está o Supremo Tribunal Federal, encarregado de interpretar e aplicar a Constituição. É o intérprete máximo do nosso ordenamento jurídico, dado que todas as leis convergem para a Constituição e dela retiram o seu fundamento de validade. É o STF quem detém o poder da última palavra sobre o conteúdo das normas.

Consideradas, assim, as premissas do Direito como interpretação e da supremacia da Constituição, é fácil concluir que as decisões do STF repercutem por todo o sistema jurídico brasileiro. Os tribunais de primeira e segunda instâncias judiciais, nos estados, hão de seguir, ou pelo menos considerar, as diretrizes do STF, emanadas de suas decisões, sob pena de macular não apenas o princípio da igualdade, que exige tratamento igual para situações essencialmente semelhantes, como afetar o princípio da segurança jurídica, que supõe certeza e garantia sobre o que pode ou não pode ser feito. Ressalta-se o aspecto normativo das decisões judiciais, notadamente quando exaradas pelo tribunal que ocupa posição de superioridade hierárquica. É o STF quem diz, em última instância, o que diz o Direito.

É próprio do Direito os atributos da generalidade e abstração. A lei é para todos os que recaem sob o seu escopo e cujas condutas correspondem ao que prevê. Assim o juiz, quando decide, tem em mira que a decisão por ele proferida é própria a todo e qualquer caso semelhante. Sua validade é universal, garantida por um discurso prático moral. Existem razões fortes para decidir que se apresentam como justificativa a legitimar a atuação do juiz. Por isso, o juiz é obrigado a fundamentar suas decisões, sob pena de nulidade, conforme dispõe a Constituição Federal. As partes não apenas têm o direito de conhecer as razões de sua condenação, para recorrer, se for o caso, como os cidadãos devem conhecer o Direito, de forma a pautarem acertadamente sua conduta. Trata-se de considerar a norma como parâmetro para a ação.

Proporcionalidade das penas

Nesse sentido, os resultados da Ação Penal 470 são paradigmáticos, e raros são os momentos em que o Supremo Tribunal Federal se debruça sobre matéria de Direito Penal. Além da teoria do domínio do fato, já apontada, é importante perceber quais os critérios utilizados na determinação da proporcionalidade das penas. O que o STF entende como crime continuado, notadamente nos casos de evasão de divisas e de corrupção. Práticas que, não raramente, dão-se em etapas. O que significam crimes de mesma espécie? Como o Tribunal aufere as circunstâncias que pesam na determinação da pena base: personalidade, circunstâncias do crime,antecedentes criminais, conduta social, comportamento da vítima, motivos e consequências do crime?Quais as circunstâncias necessárias para se determinar o regime inicial de cumprimento da pena: se regime fechado, semiaberto ou aberto. Como deve ser compreendido o crime de formação de quadrilha? Se é necessário restar caracterizada a ofensividade social do grupo, em detrimento da paz pública, ou se tal requisito não é exigido? Qual a diferença entre coautoria e quadrilha? Em que medida há de estar configurado o ato de ofício, para tornar-se manifesta a corrupção? Em que extensão é exigido o dolo eventual para a configuração do crime de lavagem de dinheiro, ou seja, até que ponto o receptor de determinada quantia tem que ter certeza sobre a licitude da origem desses recursos? Ainda: a ocultação no recebimento de propina consiste no simples exaurimento do crime de corrupção passiva ou caracteriza recebimento dissimulado que, além de ocultar, simula também operação lícita, dando ensejo à configuração do crime de lavagem de dinheiro? A sentença criminal pode determinar a perda do mandato de parlamentar? São perguntas cujas respostas deverão coincidir com o entendimento dos tribunais inferiores.

O resultado dessas indagações deve ser buscado no inteiro teor do acórdão. Ocorre que no Brasil, diferentemente de outros países, como os Estados Unidos, a Espanha, a França e a Alemanha, em lugar de os magistrados das cortes colegiadas aderirem ou dissentirem do voto do relator, eles apresentam seu voto em separado. Votos que guardam uma coerência interna, de raciocínio, mas que nem sempre combinam entre si. Não raramente os ministros, por vias diversas, chegam ao mesmo resultado, como, por exemplo, se o pedido deve ou não ser deferido; se a ordem deve ou não ser denegada; se a lei é ou não constitucional; se há uma interpretação conforme a constituição, conforme o caso e assim sucessivamente. Mas, o problema é que, como precedente judicial, os acórdãos devem ser coerentes. Afinal, a opinião é do Tribunal e não de seus membros isoladamente. Tanto os juízes quanto os jurisdicionados devem poder compreender a linha de raciocínio da decisão para, como dito, pautarem devidamente suas condutas.

O problema da segurança jurídica, sob o seu aspecto objetivo, exige, assim, a compreensão clara dos parâmetros da decisão; como o Direito é objetivamente posto, pelo intérprete e aplicador da lei, de forma a se mostrar claro aos jurisdicionados. Mas, em um contexto de judicialização da política, onde assuntos normalmente afetos aos demais poderes do Estado chegam ao Judiciário, não aparelhado, em termos técnicos e de legitimidade, para decidi-los, esse problema se agrava. Não raramente direitos relativos a políticas públicas, relativas à saúde, educação e meio ambiente, por exemplo, são demandados diretamente ao Judiciário, enquanto deveriam ser exigidos do poder competente pela sua criação. Daí o crescimento vertiginoso de audiências públicas promovidas pelo Supremo Tribunal Federal. Quando, também a título de exemplo, questões que deveriam ser decididas pelo Congresso Nacional, como as relativas à exploração das terras ocupadas pelos indígenas, a regulamentação da greve no serviço público e a perda do mandato parlamentar, são levadas ao Judiciário, ele decide no vácuo da manifestação parlamentar e sem o devido apoio político e técnico-administrativo. São situações que acabam forçando um ativismo da Corte com possível prejuízo no acerto de suas decisões. A Corte torna-se também não raramente morosa em suas manifestações. Votos longos e robustos, marcados pela eloquência, passam a formar verdadeiras peças de doutrina, arrastando, muitas vezes, o julgamento para além do razoável. Tal situação pode afetar a segurança jurídica sob o seu aspecto subjetivo, na medida em que as pessoas diretamente atingidas por aqueles direitos não contam com a ação efetiva do Estado para a sua garantia.

De acordo com J.J. Gomes Canotilho, o princípio geral da segurança jurídica abrange a ideia de proteção da confiança.

A segurança e a proteção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios atos. Deduz-se já que os postulados da segurança e da proteção da confiança são exigíveis perante qualquer ato de qualquer poder – legislativo, executivo e judiciário.

O problema aumenta, se considerarmos que a publicidade do julgamento em tempo real, por canal de televisão, demanda dos juízes uma performance toda especial, em função do cargo que ocupam.

Conclusão

Além dos aspectos propriamente jurídicos, questões de natureza institucional também afloraram durante o julgamento da AP 470. Primeiramente, a acumulação da competência comum com a constitucional mostrou congestionamento na pauta e o consequente prejuízo no andamento de questões de repercussão geral, de cujas respostas dependem várias ações judiciais em primeira e segunda instâncias estaduais. Nesse sentido, ainda que sob a perspectiva pragmática, indaga-se sobre a propriedade do foro por prerrogativa de função, quando cabe à Corte processar e julgar originariamente autoridades públicas. Em segundo lugar, vem o problema do prejuízo do duplo grau de jurisdição para as ações julgadas em primeira e única instância pelo STF. Em terceiro lugar, ainda que não menos importante, aparecem questões relativas à própria dinâmica do julgamento. O fato de os ministros do Supremo Tribunal Federal normalmente levarem seus votos prontos, impede a abertura para o diálogo. Aquilo que se espera de um tribunal colegiado, onde teses e pontos de vista distintos podem ser apresentados à consideração dos demais, dificilmente ocorre. Os argumentos, forjados com antecedência, perdem sua força de convencimento, pois, o auditório a que se destina (os demais ministros), da mesma forma já encampou um determinado entendimento. As opiniões de uns tornam-se refratárias à opinião dos demais. Não necessariamente por convicção, mas por falta de oportunidade. A maioria que indica a posição da Corte acaba sendo alcançada pelo somatório de posições individuais, cujos fundamentos nem sempre se ajustam. O contrário seria se houvesse uma dinâmica de adesão ou dissenção em torno dos argumentos do relator, como ocorre nos Estados Unidos, por exemplo. Pelo que se percebe, ainda, a falta de reuniões preparatórias dificulta o afinamento das posições, provocando surpresa durante o julgamento, até mesmo entre relator e revisor. Por tudo, e a título de sugestão, entendo que os juízes brasileiros deveriam conversar mais.


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