A Opção Sul-Americana
No mundo em que vivemos, a política externa de um país não pode ser apenas um instrumento de projeção dos interesses nacionais na cena internacional. Ela é também, e talvez sobretudo, um elemento essencial do próprio projeto de desenvolvimento desse país.
O governo Lula definiu desde 2003 seus objetivos fundamentais:
• a retomada do crescimento econômico, capaz de reverter a tendência de décadas de recessão ou crescimento medíocre;
• a compatibilização desse crescimento com um processo de distribuição de renda, alicerçado na construção de um mercado de bens de consumo de massas, por sua vez ancorado na expansão do emprego e dos salários, na oferta ampliada de crédito e nas políticas de transferência de renda;
• a conquista do equilíbrio macroeconômico, que se encontrava ameaçado em 2002, e a redução da vulnerabilidade externa, em grande medida lograda pela extraordinária ampliação e diversificação do comércio exterior;
• o aprofundamento da democracia e a inserção internacional soberana do país. A todos esses elementos se somava a decisão de dar maior consistência à integração da América do Sul.
O unilateralismo que sucedeu o fim da Guer¬ra Fria revela hoje claros sinais de esgotamento. Não por acaso, os debates da atual campanha eleitoral norte-americana dão importância à necessidade de um novo tipo de presença dos Estados Unidos neste mundo em mutação.
Prossegue, a despeito das dificuldades enfrentadas, o processo de consolidação da União Européia. Toma força a emergência e a gravitação regional de potências como a China e a Índia. Tudo isso, junto com o ressurgimento da Rússia e outros fenômenos de relevância regional, indica a possibilidade de transição para um mundo multipolar.
Nesse contexto, cabe ao Brasil optar entre uma inserção solitária no mundo ou buscar uma associação com países de seu entorno, com os quais comparte história, valores e possibilidades de complementação econômica.
O Brasil optou claramente pela segunda hipótese. Por essa razão, a América do Sul transformou-se em prioridade de sua política externa.
O potencial da região
Essa opção decorre da percepção brasileira acerca das potencialidades da América do Sul no mundo de hoje, mas, sobretudo, no de amanhã.
O continente tem o maior e mais diversificado potencial energético do planeta, se levarmos em conta suas reservas hidrelétricas, de gás e de petróleo, além de sua capacidade de produção de biocombustíveis. A América do Sul possui a maior reserva de água doce do mundo.
Sua agricultura ocupa lugar de destaque, não só pela extensão e fertilidade de suas terras, como pelos avanços científicos e tecnológicos alcançados nos últimos anos. Suas jazidas minerais são enormes e diversas.
Para um mundo que se mostra (e se mostrará mais ainda) ávido de energia, água, alimentos e minérios, os fatores antes alinhados mostram quão relevante pode ser a contribuição da região para o desenvolvimento da humanidade.
Some-se a tudo isso a rica biodiversidade do continente, o tamanho de sua população, a extensão e a diversidade de seu território e clima.
A América do Sul tem um parque industrial de porte, ainda que concentrado em poucos países. Abriga universidades e centros de pesquisa científica e tecnológica de alta qualidade. Possui uma exuberante cultura.
Diferentemente de outras partes do mundo, a região é uma zona de paz, salvo o conflito interno da Colômbia, que não comprometeu até agora o funcionamento das instituições desse país, ainda que ofereça riscos de internacionalização, como se viu recentemente. Os contenciosos de fronteira são menores e tendem a ser resolvidos por via diplomática.
Por último – e não menos importante – a América do Sul conseguiu superar a era das ditaduras. Todos os seus atuais governos foram eleitos em pleitos marcados pela lisura e pela amplitude da participação popular. A efervescência social que se pode detectar em alguns países é expressão da incorporação recente de milhões de homens e mulheres – antes excluídos da cidadania real – na vida política. Isso explica, em grande medida, os choques desses novos personagens com a obsolescência dos sistemas políticos e instituições herdadas do passado.
Mas a região apresenta dois grandes desafios de cuja resolução dependerá sua presença relevante no mundo de amanhã.
O primeiro deles é o de superar a pobreza e a desigualdade social. O segundo é a ausência de uma efetiva interconexão dos países da região.
Em favor da resolução do primeiro problema, é bom mencionar que o crescimento econômico que a região tem experimentado, no período recente, somado aos programas sociais que, com maior ou menor eficácia, todos os governos do continente vêm implementando, representam um passo decisivo para combater a pobreza e a desigualdade. É lógico que se trata de um processo que terá resultados positivos nos médio e longo prazos. Mas no curto prazo, o processo de distribuição de renda em marcha é significativo. Seus efeitos na expansão do mercado de consumo da região explicam a atração que a América do Sul exerce hoje sobre os investimentos estrangeiros.
Já a resolução do segundo problema exigirá um esforço conjunto, persistente e dispendioso para dotar o continente de uma complexa e diversificada infra-estrutura física e energética. Do bom resultado dessas iniciativas dependerá em muito a continuidade do crescimento e o êxito no combate à pobreza e à desigualdade.
A integração comercial e seus limites
A integração da América do Sul tem também uma dimensão comercial, que apresenta relativa complexidade, como decorrência da pluralidade de sistemas comerciais na região. Bastaria lembrar a existência concomitante e em um mesmo espaço do Mercosul, da Comunidade Andina, do Caricon e de países que fizeram a opção por Tratados de Livre-Comércio bilaterais com os Estados Unidos e/ou outros países e blocos, como é o caso do Chile e, mais recentemente, do Peru. Apesar das aproximações que houve entre os países sul-americanos e do impacto desses movimentos sobre o incremento do comércio regional, é difícil pensar que se venha a ter, no curto e médio prazos, a formação de uma união aduaneira. Nesse particular, a integração da América do Sul segue um roteiro distinto daquele que predominou na Europa.
Contudo, mesmo onde a integração comercial avançou mais – ainda que insuficientemente, como no Mercosul – subsistem problemas. O maior deles é o das assimetrias econômicas que separam os países da região. Superar essa grave questão coloca para o Mercosul – e para toda a região – a necessidade de outros mecanismos de integração. Longe de uma fuîte en avant, as soluções para essa dificuldade exigem pensar de forma original a especificidade da integração na América do Sul.
O comércio exterior brasileiro com quase todos os países da região é superavitário. O único país com o qual o Brasil tem déficit é a Bolívia, o que se explica pelas massivas importações de gás daquele país.
Apesar de iniciativas para corrigir essas distorções – como o Programa de Substituição Competitiva de Importações, impulsionado pelo governo brasileiro – os resultados ainda são insuficientes. A explicação para esse desequilíbrio está, em boa medida, ligada à diversidade da economia brasileira, que garante altos níveis de auto-suficiência.
Integrar o continente: para além da agenda comercial
Essa assimetria, que pode comprometer o esforço de integração, se corrige não só pelo aperfeiçoamento de mecanismos comerciais. Isso envolve, ao lado da integração energética e de infra-estrutura física, o estímulo a mecanismos de substituição de importações em todos os países da região, o que se dará pelo aumento dos investimentos e com a complementação produtiva. Em ambas as alternativas, o Brasil poderá ter um papel mais relevante do que vem tendo.
Para só citar um exemplo, a Venezuela pode avançar mais na construção de uma indústria petroquímica, assim como no setor de siderurgia e metalurgia, mercê de suas vastas reservas minerais. Sua população de cerca de 28 milhões de habitantes, hoje beneficiada por programas de transferência de renda, constitui-se em importante mercado de bens de consumo que estimula a revalorização de sua agricultura, o incremento de indústrias de bens-salário e, em certa medida, a de bens de consumo durável. Essa pode ser uma forma de escapar à “maldição” que se abateu e se abate sobre muitas economias petroleiras, fortemente dependentes de importações agrícolas e industriais, o que acarreta graves conseqüências sociais. Desafio semelhante se coloca para a Bolívia.
O crescimento e diversificação da industrialização brasileira, assim como a da Argentina, permitem pensar também no impulso a mecanismos de complementaridade produtiva entre os países sul-americanos. Aproveitando as vantagens competitivas em alguns domínios de países de economia menor (o software uruguaio, por exemplo), é possível avançar na produção de bens mais sofisticados – nas indústrias aeronáutica, bélica ou mesmo automobilística, para citar três casos relevantes – em vários pontos do continente.
A retomada do Mercosul
A retomada do Mercosul, facilitada nos últimos anos por uma maior harmonia das políticas macroeconômicas e dos projetos de desenvolvimento de seus países integrantes, acabou por exercer atração sobre as demais economias da América do Sul. Não só a Venezuela solicitou sua adesão plena ao bloco, como os demais países da região aproximaram-se, na condição de associados, juntando-se ao Chile e à Bolívia, que já possuíam esse estatuto. Dessa aproximação surgiu a idéia de formar uma Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), que viria mais tarde desembocar na União das Nações Sul-Americanas (Unasul), cujo Tratado Constitutivo encontra-se em fase final de elaboração.
A Unasul responde a essa tendência de fortalecer uma política continental, mais além de sua dimensão comercial, ainda que não a descartando. Por essa razão, privilegia a construção de uma infra-estrutura física e energética regional, as políticas sociais e a criação de mecanismos financeiros próprios.
Não se trata apenas do projeto do Banco do Sul – em vias de constituição –, mas também de outros instrumentos financeiros que estimulem o investimento, o comércio e os mecanismos de garantias para essas operações. Dentro desse campo, inscreve-se a ampliação dos Convênios de Crédito Recíproco (CCR) e o comércio regional em moedas nacionais, como foi decidido por Argentina e Brasil.
Foi a predominância dessa concepção de integração – que, por certo, não se faz sem idas e vindas – que frustrou o projeto original da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), rejeitado na cúpula de Mar del Plata por Argentina, Brasil, Paraguai, Venezuela e Uruguai, atitude que seria acompanhada pouco depois por Bolívia e Equador. O que pesou basicamente na inviabilização do projeto da Alca foi o fato de que ele não dava respostas a questões cruciais, como a dos subsídios agrícolas, que estavam sendo debatidas num foro mais amplo (OMC), enquanto exigia fortes concessões em matéria de produtos industriais, serviços, investimentos e propriedade industrial. Ao aceitá-las, tornar-se-ia irreversível a assimetria entre os Estados Unidos e as economias sul-americanas, especialmente aquelas que têm mais complexidade ou que podem vir a tê-la numa associação mais simétrica, como é o caso do Mercosul.
A Venezuela no Mercosul
O ingresso da Venezuela no Mercosul pode representar uma mudança qualitativa no bloco. Do ponto de vista geopolítico, amplia suas fronteiras para o Norte do continente. Do ponto de vista econômico, incorpora um país importante por suas reservas energéticas e minerais, por seu potencial de desenvolvimento agrícola e pelas dimensões de seu mercado interno.
A alegada “instabilidade” da Venezuela deve ser vista como uma razão suplementar para apressar o ingresso desse país no Mercosul. Deve-se a todo custo evitar o isolamento de Caracas do contexto sul-americano.
Por algum tempo houve quem invocasse a “cláusula democrática”, que rege a vida do Mercosul, como empecilho para a adesão da Venezuela ao bloco. Essa cláusula é de vital importância para a região, sobretudo tendo em vista os problemas que muitos países enfrentaram num passado não muito distante.
O governo do presidente Hugo Chávez vem de recente eleição, reconhecida pelos observadores internacionais como limpa. O polêmico projeto de reforma constitucional que Chávez submeteu ao país, por muitos qualificado como “autoritário”, foi derrotado no referendo e teve essa derrota aceita pelo presidente venezuelano. Ruíram por terra os argumentos políticos contra o ingresso da Venezuela.
Por outro lado, o incremento extraordinário das relações econômicas e comerciais entre o Brasil, os demais países do Mercosul e a Venezuela só vieram a fortalecer a necessidade de apressar sua plena incorporação ao bloco.
Integração regional e conflito político nos Andes
Mas é importante reconhecer que a América do Sul vive uma situação paradoxal, que introduz, por vezes, complexidades na implementação da política externa do Brasil no continente.
O paradoxo reside no fato de que a atual conjuntura sul-americana – em função de fatores econômicos e políticos – propiciou condições extremamente favoráveis para um processo de integração, mas, ao mesmo tempo, oferece dificuldades para que essa integração se materialize na velocidade necessária.
Todos os governos são democráticos. Um grande número deles responde a uma matriz de esquerda ou de centro-esquerda, ainda que sejam muito diferenciados entre si. As economias crescem e faz-se sentir uma melhoria das condições sociais em toda a região.
No entanto, em alguns países, sobretudo em parte da área andina, verifica-se uma aceleração da luta política e, não raro, uma intensificação dos conflitos sociais.
Muitos analistas não hesitam em caracterizar o fenômeno como “renascimento do nacionalismo-populista”, qualificado como “arcaísmo”, posto que remeteria às problemáticas dos anos 1950 na região.
A aceleração dos conflitos políticos não é mais do que um sintoma do processo de democratização por que passam alguns países, após o colapso dos seus esgotados sistemas políticos. Esse foi o caso da crise do bi-partidarismo venezuelano, que explica a ascensão de Chávez; da forte instabilidade institucional do Equador (oito presidentes em dez anos); da Bolívia (quatro presidentes em quatro anos) e, em certa medida, do Peru, durante o período Fujimori.
A entrada de novos atores na cena política desses países – em alguns casos sobredeterminada pela presença da questão indígena – colocou na ordem do dia o tema da refundação institucional. Não por acaso na Venezuela, na Bolívia e no Equador convocaram-se Assembléias Constituintes, para fazer com que as mudanças que estavam ocorrendo na sociedade pudessem refletir-se nas instituições políticas.
A denúncia do “nacionalismo populista” como “arcaísmo” é ela mesma “arcaica”, política e conceitualmente. Reflete, em versão atualizada, os mesmos preconceitos que marcaram a avaliação de fenômenos como o peronismo na Argentina, ao qual se procurou, muitas vezes, colar a etiqueta “fascista”.
Diferentemente dos nacionalismos europeus dos anos 1930 – que se expressaram no fascismo, no nacional-socialismo ou no franquismo, para citar três exemplos relevantes – as vertentes dominantes do nacionalismo sul-americano tiveram historicamente uma dimensão antiimperialista, vinculada a uma agenda de reformas econômicas e sociais. Se não deram ênfase suficiente à democracia política em seus programas – como a direita e os liberais também não o fizeram – não chegaram, na imensa maioria de suas formulações, a propugnar um ideário autoritário.
Não pode passar despercebido que o nacionalismo que impregna muitos dos movimentos sociais e políticos da região é o mesmo que coloca a integração continental em primeiro lugar, escorregando, muitas vezes de forma açodada, para propostas de supranacionalidade.
Em economias primário-exportadoras, marcadas pela concentração de renda, sobretudo nos países cuja economia repousava na exploração mineira e/ou petrolífera e gasífera, a luta pela apropriação do excedente transforma-se em determinadas conjunturas em agudo enfrentamento social com intensos desdobramentos políticos.
Mas isso ocorreu em sociedades mais complexas também. As mudanças que o peronismo operou na Argentina, o trabalhismo no Brasil ou o cardenismo no México também enfrentaram resistências. Elas contribuíram para a diversificação produtiva desses países, para processos mais ou menos intensos de distribuição de renda e para a extensão da cidadania a milhões de homens e mulheres que viviam à margem do sistema político. Aquilo que muitos qualificaram de “ingresso das massas” na política latino-americana produziu em realidade uma considerável ampliação da democracia política, na esteira da expansão da democracia econômica e social.
Esse quadro repete-se hoje, tardia e diferentemente, em parte da América do Sul e introduz muitas vezes um sentimento de “imprevisibilidade”, quando não de insegurança sobre os destinos da região. A política externa brasileira tem de lidar com essas circunstâncias históricas.
A internacionalização do conflito colombiano
Os recentes acontecimentos que envolvem Colômbia, Equador e, em certa medida, Venezuela constituem um novo desafio para os projetos de integração sul-americana.
Contrariando aqueles que buscaram ver um viés “ideológico” na atual política externa – discutindo mais pessoas do que idéias –, o Brasil buscou, e conseguiu, manter uma relação equilibrada com todos os seus vizinhos. Nesse, como em outros aspectos, não houve “dualismos” na presença brasileira na América Latina ou no mundo.
A Colômbia não foi exceção. Antes mesmo da posse de Lula, o governo Uribe foi informado pela assessoria do futuro Presidente de que não haveria ambigüidade nas posições brasileiras. O novo governo do Brasil teria um só interlocutor na Colômbia – seu governo constitucional. Com isso desfazia-se uma série de especulações sobre supostas simpatias do PT para com as Farc, que não encontravam o mínimo amparo na realidade, sendo veiculadas no exterior por órgãos de extrema direita como o Washington Times, ligado à Seita Moon, e repetidas no Brasil por pessoas do mesmo calibre intelectual.
É evidente que o conflito colombiano – que começou há décadas – preocupa todos aqueles que apostam na integração sul-americana. Ele golpeia um país com um enorme potencial econômico, político e cultural, para o qual no passado o Brasil nem sempre deu a atenção devida. Mas essa preocupação nunca se traduziu em qualquer tipo de intromissão por parte do atual governo brasileiro.
O Itamaraty ofereceu o território brasileiro para uma eventual negociação entre o governo colombiano e os grupos guerrilheiros. O Brasil contribuiu ativamente para a superação das tensões entre Colômbia e Venezuela a partir do “affaire Granda”, o dirigente das Farc seqüestrado pelos serviços de inteligência colombianos em Caracas. A presença do assessor de política externa do presidente Lula nas negociações entre o governo e os sindicatos colombianos ou na comissão de garantes que foi a Villavicencio para receber os reféns das Farc se fez com conhecimento e anuência de Bogotá. Mereceu o reconhecimento do presidente Uribe.
É exatamente essa posição, desprovida de qualquer parti-pris ideológico, que tem permitido ao governo brasileiro desempenhar um papel de mediador nos contenciosos que se avolumaram na esteira da recente crise colombiana.
É compreensível a preocupação de Bogotá em não internacionalizar seu conflito interno. Por essa razão, o governo brasileiro não tomou, no curso destes cinco últimos anos, nenhuma iniciativa que pudesse parecer interferência nos assuntos daquele país.
Em relação às Farc, particularmente, o governo brasileiro não lhe conferiu o estatuto de “força beligerante”, como o fez inadequadamente o governo venezuelano. Tampouco qualificou-as, como alguns pediam – não assim o governo colombiano – como “terrorista”. Não o fez porque o Brasil não é uma agência de certificação, como alguns países se arrogam ser. Segue nesse particular as orientações das Nações Unidas a quem cabem essas funções. Mas a decisão brasileira também obedece a razões de natureza prática. Qualificar uma organização como “terrorista” significa inabilitar-se para negociar com ela no futuro, caso se coloque a necessidade de participar em tratativas para um acordo humanitário.
Tal atitude não significa, no entanto, alguma leniência em relação ao terrorismo, seja ele praticado por grupos políticos ou por Estados. Menos ainda alguma simpatia pelas posições e atitudes concretas deste e de outros grupos armados. Repugnam ao governo brasileiro seqüestros, atentados terroristas, promiscuidade com o narcotráfico, não importam os valores políticos, ideológicos ou religiosos de que venham revestidos. Por essa razão o governo – e o presidente Lula, em particular – condenaram com ênfase todas as violações aos Direitos Humanos praticados pelas Farc.
A possibilidade de internacionalização do conflito colombiano acentuou-se com a ação contra as Farc no território equatoriano, que configurou gravíssima infração do Direito Internacional.
Não condená-la seria aceitar que se introduzissem na América do Sul práticas militares que, em outras regiões do mundo, além de ilegais, têm-se revelado absolutamente ineficazes. A reação unânime da América do Sul mostrou a aguda sensibilidade dos governos da região para com os riscos que tais atitudes teriam para o futuro do continente, justamente quando ele discute formas superiores de integração.
Mas os riscos de internacionalização do conflito também existem em função de outros fatores. Aí se alinham a sensibilidade do governo francês vis-à-vis a sorte de Ingrid Betancourt, o papel que Hugo Chávez desempenha nas negociações sobre a libertação de reféns e sua ofensiva retórica contra Uribe e a própria participação dos Estados Unidos na política de segurança interna do governo colombiano. A todos esses fatores soma-se a porosidade das fronteiras, que pode levar à reprodução dos graves incidentes como os que resultaram da morte de Raúl Reyes.
Diferentemente do que ocorreu nos anos 1970/1980 na Indochina – quando o conflito vietnamita alastrou-se para o Cambodja e o Laos – a América do Sul não oferece condições para uma contaminação político-militar semelhante, ainda que as conexões com o tráfico de drogas e de armas não devam ser subestimadas.
O máximo que tem ocorrido é a utilização de territórios limítrofes como “santuários” para a guerrilha, problema que se coloca não só para os países “invadidos”, que têm dificuldade de exercer controle sobre amplas e difíceis fronteiras, como também para a Colômbia, que admite iguais dificuldades no controle de partes de seu próprio território, incluindo zonas fronteiriças.
O governo Uribe, a partir do fracasso da experiência negociadora de seu predecessor Pastrana, optou por uma política de enfrentamento militar com as Farc, ainda que tenha aberto negociações com o Exército de Libertação Nacional (ELN) e tenha chegado a acordos com os paramilitares, de direita.
Não cabe ao Brasil julgar essa estratégia, definida por um governo soberano, que contou por duas vezes com o respaldo do voto popular. Mas o Brasil não pode omitir-se quando a política interna de qualquer país incide de forma adversa no entorno sul-americano.
Não se trata de prescrever fórmulas para solucionar os problemas colombianos, o que seria uma intolerável intromissão na realidade política daquele país. Trata-se, antes, de pensar em mecanismos regionais que impeçam o extravasamento de conflitos locais para o resto da região.
Obedece a essa idéia a iniciativa que o presidente Lula pretende apresentar a seus colegas sul-americanos de constituição de um Conselho Sul-americano de Defesa, que avoque a si, entre outras atribuições, o enfrentamento das questões relacionadas com a segurança coletiva do continente. Tal conselho pode ser um dos instrumentos de contenção de movimentos que ameacem desestabilizar a região.
Da mesma forma, a intensa atividade diplomática que se seguiu aos incidentes da fronteira Colômbia–Equador, buscando, ao mesmo tempo, baixar a tensão política, apurar responsabilidades e prevenir outros incidentes, é de fundamental importância para chamar a atenção de todos os envolvidos para a necessidade de preservar o essencial, isto é, a unidade da região.
Porque a política não é destino, mas construção humana, sobre condições históricas dadas, a percepção e as iniciativas do Brasil na América do Sul têm de estar orientadas pela necessidade de articular realidades distintas, muitas vezes contraditórias. A integração far-se-á no respeito à diferença, porque não há mais espaço para a homogeneidade da submissão.
A complexidade que essa tarefa introduz na política externa resulta do fato de que o governo brasileiro – respeitoso do princípio de não-intervenção – não ultrapassa as fronteiras que estabelece a soberania nacional, mas, ao mesmo tempo, não fica alheio àquilo que está ocorrendo em cada um dos países da região.
Não interferência, por certo. Mas tampouco indiferença
É professor licenciado do Departamento de História da Unicamp. Foi assessor especial de política externa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003–2010), função que mantém na presidência de Dilma Rousseff
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