30 julho 2021

A Política externa como política pública: prioridades

A política externa é, antes de tudo, uma política pública. Trata-se de uma obviedade, dirão alguns. E, efetivamente, não há aí nada de novo. Talvez pelas especificidades típicas da atividade diplomática, porém, a política externa é tão frequentemente vista como uma realidade estanque, é tão frequentemente associada a abstrações alheias ao concreto do país de que emana e do mundo a que se dirige, que não será demais reafirmar: a política externa – ao lado de tantas outras – é, sim, antes de tudo, uma política pública, conduzida, no caso do Brasil, pelo presidente Jair Bolsonaro, assessorado pelo ministro das Relações Exteriores.

A política externa é, antes de tudo, uma política pública. Trata-se de uma obviedade, dirão alguns. E, efetivamente, não há aí nada de novo. Talvez pelas especificidades típicas da atividade diplomática, porém, a política externa é tão frequentemente vista como uma realidade estanque, é tão frequentemente associada a abstrações alheias ao concreto do país de que emana e do mundo a que se dirige, que não será demais reafirmar: a política externa – ao lado de tantas outras – é, sim, antes de tudo, uma política pública, conduzida, no caso do Brasil, pelo presidente Jair Bolsonaro, assessorado pelo ministro das Relações Exteriores.

O passo seguinte é extrair as consequências desse fato. Se é política pública, a política externa que faz sentido é aquela que está a serviço do interesse público. No nosso caso, é aquela que atende ao conjunto dos brasileiros, que responde a suas necessidades e a seus valores. Necessidades e valores formulados, como deve ser em uma democracia, pelo governo eleito, segundo determina a Constituição.

A tarefa de levar adiante política externa assim entendida é sabidamente complexa – tanto pelo dinamismo de uma sociedade diversa como a brasileira, quanto pelas indefinições de um sistema internacional que, se tem espaços certos de cooperação, tem também instâncias de inegáveis tensões. Mas, complexa que seja, a tarefa é essencial. E o desafio primeiro do Ministério das Relações Exteriores é o de auxiliar o presidente da República a desempenhá-la.

O ponto de partida, a cada etapa, é identificar aquilo que os brasileiros esperam. Aquilo que esperam no calor da hora, aquilo que esperam no longo prazo. A partir daí se opera a política externa, que, estando o Brasil e o mundo em constante transformação, é sempre obra aberta.

Hoje, como assinalei já em meu pronunciamento de posse como chanceler, a sociedade brasileira confronta-se com três grandes urgências, que o presidente Jair Bolsonaro expressamente me instruiu a atacar: o combate à pandemia, a recuperação econômica e o desenvolvimento sustentável. Não são urgências exclusivas do Brasil, é claro, mas são muito fortemente urgências também do Brasil. Neste momento, portanto, estão no topo das prioridades de nossa política externa. 

Sem dúvida, nenhuma delas esgota-se na perspectiva da política externa. Todas exigem, igualmente, e em larga medida, esforços internos, esforços que são objeto de outras políticas públicas, a cargo de outros órgãos que não o Itamaraty. Por isso é fundamental o diálogo permanente e fluido que nosso Ministério mantém não só com a sociedade, mas com os demais entes do Estado – no Executivo e além dele. O Congresso Nacional, por exemplo, tem aportes cruciais a oferecer no processo de construção de uma política externa sólida e eficaz.

Cuidemos de cada uma daquelas urgências, a começar pela de natureza sanitária. A pandemia, por definição, afeta os mais diferentes quadrantes do mundo. Desse modo, nada mais natural – e necessário – do que fazer-lhe frente em coordenação com outros países. Sobretudo o acesso a vacinas e a outros insumos médicos, indispensável na luta contra a Covid-19, depende de bem articulados exercícios de cooperação internacional. Daí a diplomacia da saúde em que nos lançamos.

É consensual que o mais grave gargalo para a aquisição de produtos farmacêuticos reside atualmente nas cadeias de suprimento, que se mostram aquém das demandas impostas pela pandemia. Junto a atores centrais daquelas cadeias, entre os quais sobressaem China, Estados Unidos e Índia, temos trabalhado para assegurar as doses de imunizantes e os ingredientes farmacêuticos ativos (IFAs), necessários à continuidade de nosso programa nacional de vacinação. Da mesma maneira, temo-nos engajado pela transferência da tecnologia que nos permitirá produzir IFA no País. E, em foros como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), temo-nos empenhado em otimizar o uso das capacidades instaladas mundo afora e em remover as barreiras que persistem a uma disseminação mais ampla de remédios – valendo-nos, inclusive, das flexibilidades previstas no Acordo da OMC sobre Aspectos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS, na sigla em inglês).

É nessa direção que apontam a Iniciativa sobre Comércio e Saúde, que integramos na OMC, e a proposta que copatrocinamos, em maio de 2021, na Assembleia Mundial da Saúde. É nessa direção que apontam, ainda, iniciativas como o ACT-Accelerator, a Solidarity Call to Action e a Covax Facility. A adesão à Covax Facility deverá garantir ao Brasil 42,5 milhões de doses de vacinas.

Em suma, o Brasil atua e seguirá atuando em favor de movimento internacional que contribua para o fim da pandemia aqui e em toda parte, com atenção especial para os países em desenvolvimento. E que contribua, a partir do aprendizado da Covid-19, para que o mundo esteja mais bem preparado em face de crises sanitárias futuras.

Outra urgência do nosso bloco de prioridades é a recuperação econômica 

Em fins de 2019, progredíamos em agenda de reformas decisiva para a retomada do crescimento e dos empregos. Aprováramos a reforma da Previdência e prosseguíamos em pauta de consolidação fiscal e aumento da produtividade. Em 2020, a pandemia chegou a nosso País. Fomos rápidos em adotar políticas monetária e fiscal consistentes, que garantiram a liquidez dos mercados e preservaram a renda das famílias. Mas, se o impacto sobre a economia brasileira foi mitigado, ele, ainda assim, como era inevitável, fez-se sentir. 

Agora, nosso governo envida esforços redobrados para o que será a retomada do crescimento pós-pandemia. O rumo na frente doméstica está dado. Em síntese, é o da modernização da economia. Pois é para esse horizonte que também a política externa se volta.    

Capítulo relevante é o do comércio e dos investimentos internacionais. Uma maior e melhor inserção nos fluxos globais de bens, serviços e capitais é condição para mais competitividade e mais empregos. 

É nessa ordem de ideias que o Brasil defende o fortalecimento do sistema multilateral de comércio. Na mais recente Cúpula do G20, o presidente Bolsonaro enfatizou o imperativo de se revigorarem os três pilares da OMC: o das negociações, o da solução de controvérsias e o de monitoramento e transparência. No pilar das negociações, perseguimos, especialmente, normas mais rígidas contra restrições e contra subsídios distorcivos ao intercâmbio de bens agrícolas; acordo sobre facilitação de investimentos; acordo sobre comércio eletrônico que, ao promover aquela modalidade de comércio, contenha salvaguardas de proteção da privacidade; e acordo sobre regulamentação de serviços, para a harmonização e a simplificação de requisitos.  

Ao mesmo tempo, vimos conduzindo, com nossos sócios, uma atualização do Mercosul. O esforço contempla uma redução gradativa da Tarifa Externa Comum e a celebração de novos instrumentos internos ao bloco, como o acordo de facilitação de comércio eletrônico. Contempla, ainda, e esta é vertente fulcral, a intensificação da agenda de negociações externas. 

Concluímos as negociações de acordos de livre comércio do Mercosul com a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA) e, após tratativas que se estenderam por duas décadas, com a União Europeia (UE). Temos a expectativa de assiná-los no mais breve prazo. Estamos cuidando de dissipar as percepções infundadas, em determinados segmentos na Europa, de que o acordo com a UE poderia ter efeitos negativos para o meio ambiente. Conforme recorda o próprio Comissário de Comércio da UE, aquele acordo incorporou os mais completos dispositivos de desenvolvimento sustentável entre os negociados até então por Bruxelas. De mais a mais, é reconhecido o caráter sustentável da agropecuária brasileira, cuja produtividade provém da inovação tecnológica, não da depredação ambiental.

Em paralelo, tencionamos ampliar o alcance dos acordos já em vigor com o México, a Índia e Israel; estamos negociando acordos de livre comércio com o Canadá, a Coreia do Sul, o Líbano e Singapura; e exploramos o caminho para negociações abrangentes com os Estados Unidos, o Japão e o Reino Unido. 

Sobre as relações com os Estados Unidos, nosso governo trabalha para internalizar o Acordo de Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação (RTD&E) em matéria de defesa, firmado em março de 2020 e que intensificará iniciativas bilaterais de P&D de produtos de defesa; e o Protocolo sobre Regras Comerciais e de Transparência, assinado em outubro passado, em linha com os objetivos do Acordo de Comércio e Cooperação Econômica Brasil-Estados Unidos (de 2011) e composto por três anexos: i) facilitação de comércio e administração aduaneira; ii) boas práticas regulatórias; e iii) anticorrupção. O protocolo tem por objetivo simplificação de trâmites de comércio exterior e diversificar os fluxos bilaterais de comércio e investimentos.

No âmbito de nossa diplomacia econômica, a China, como é evidente, tem lugar de destaque. Estamos concentrados em ampliar e diversificar nossas trocas com aquele que já é o primeiro destino das exportações brasileiras. Esse é um dos objetivos da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), mecanismo que se deverá reunir antes do fim de 2021. 

Por fim, a aproximação crescente à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), com vistas a uma acessão plena, é outra via pela qual a política externa concorre para a modernização da economia brasileira. A OCDE, ademais de plataforma de definição de regras que não raro ganham curso generalizado no mundo, é celeiro de políticas públicas de qualidade. Estar ligado à OCDE significa influenciar padrões que acabam por consolidar-se em escala global e abrir-se a boas práticas em áreas que vão da gestão do Estado ao manejo de recursos naturais, passando pelo comércio e pelos investimentos. 

A terceira urgência que mobiliza nossa política externa é o desenvolvimento sustentável 

É certo que, na promoção do desenvolvimento sustentável, somos movidos, primordialmente, pela compreensão de que o planeta é um só e que urge preservá-lo para as gerações futuras. Não se pode negar, contudo, que a sustentabilidade adquire, no século XXI, ainda uma outra dimensão. Em distintas sociedades, a preocupação do consumidor com os aspectos ambientais e sociais das cadeias de produção torna-se variável de peso na equação econômica. Analogamente, fundos de investimento com atuação internacional, cada vez mais, pautam-se por critérios ambientais e sociais. Com isso, não é exagero dizer que a sustentabilidade é, hoje, para além de seu inequívoco valor intrínseco, tema de acesso a mercados e de atração de investimentos. 

A boa notícia é que o Brasil não tem motivo para assumir atitude defensiva. Antes, o que se afigura aí, para nós, são oportunidades. Temos a nosso lado uma longa trajetória diplomática em torno do desenvolvimento sustentável – conceito, aliás, consagrado na Conferência do Rio de Janeiro de 1992. Acumulamos um notável patrimônio de soluções nesse domínio – agropecuária intensiva em tecnologia, matriz energética das mais limpas, rigorosa legislação de proteção ambiental. Esses são fatores que nos dotam de autoridade perante o mundo. 

Autoridade que decorre, também, do nível de ambição de nossos compromissos internacionais. Em dezembro de 2020, o Brasil anunciou, ao amparo do Acordo de Paris sobre mudança do clima, como parte de sua Contribuição Nacionalmente Determinada, o compromisso de redução de 37% na emissão de gases de efeito estufa, em 2025, e de 43%, em 2030 (sobre valores de referência de 2005). Por ocasião da Cúpula dos Líderes sobre o Clima, em abril de 2021, o presidente Bolsonaro agregou, a este, três compromissos adicionais: antecipação da meta de neutralidade climática de 2060 para 2050, duplicação do orçamento de fiscalização ambiental e eliminação do desmatamento ilegal até 2030. É esse sentido de responsabilidade que continuará a orientar a atuação do Brasil.

Combate à pandemia, recuperação econômica, desenvolvimento sustentável: essas são, pois, as urgências da política externa brasileira. 

Isso não quer dizer, no entanto, que nos limitemos a elas. Nesta etapa da vida nacional, são as que mais ostensivamente clamam por nossa ação diplomática, de modo que, como observei, estão no topo de nossas prioridades. Mas a lista dessas prioridades é naturalmente mais extensa e comporta múltiplos recortes. 

A busca da institucionalidade multilateral, ferramenta por excelência de um país que se insere no mundo pela força do argumento e sob o primado do direito; a organização do espaço sul-americano, nossa vizinhança imediata, em função das possibilidades de integração, do enfrentamento de ilícitos que não respeitam fronteiras e da plena vigência da Carta Democrática Interamericana; a cooperação com a África, continente a que somos vinculados por laços históricos e em que crescem as oportunidades econômicas; o contínuo aperfeiçoamento dos serviços consulares com que contam mais de 3,5 milhões de brasileiros em mais de 100 países. 

A enumeração ainda não é exaustiva. Mas, somada às urgências que resumidamente apresentei, já dá a medida do universo de prioridades de nossa política externa. Política pública, reitero, que, reflexo da pluralidade do Brasil e intimamente imbricada com outras políticas públicas, só se realiza no diálogo também para dentro do País.


Carlos Alberto Franco França é diplomata, advogado e atual ministro das Relações Exteriores do Brasil. Graduou-se em Relações Internacionais (1986) e em Direito (1990) pela Universidade de Brasília.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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