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Interesse Nacional
04 julho 2018

A Privatização do Setor de Energia Elétrica

  1. As estatais comprometem o funcionamento do regime democrático

Devastada ao final da Segunda Guerra Mundial, a Europa abraçou a ideia de que a criação de sociedades de maior bem-estar estaria no socialismo. Partidos de cunho social-democrata, democrata cristão, puramente socialista e comunista ganharam grande proeminência em toda parte com exceção da Península Ibérica, onde regimes autoritários se afirmaram.
Naquele contexto, onde a reconstrução de uma infraestrutura urbana e produtiva se impunha, os Estados constituíram-se em grandes mobilizadores de poupanças nacionais e internacionais. Cada país visualizou-se como uma ilha e possuía sua indústria estatal de telefonia, automobilística, siderúrgica, de energia elétrica, de petróleo, etc. As economias de um modo geral se fecharam, e o clima das privações dos anos de guerra ajudou na aceitação de sacrifícios para concentrar recursos na reconstrução dos parques produtores. O ambiente de Guerra Fria reforçava as tendências de alinhamento político militar a blocos de poder e de autoeficiência.
A nacionalização destas indústrias também pareceu em alguns casos melhorar a distribuição de renda. Não que isto ocorresse automaticamente, pelo simples fato de o Estado criar empresas, mas como decorrência de circunstâncias peculiares de uma situação pós-guerra, em que é comum a melhor distribuição de riqueza decorrente da destruição do grande capital, como já observou o economista Thomas Piketty.
Ao final deste período de reconstrução, que durou cerca de 30 anos (“les trente glorieuses”), com a sociedade mais rica e com o empoderamento do consumidor – que nesta altura já demandava por melhores serviços, custos mais baixos e capacidade de escolher – as estatais naturalmente tornaram-se alvo de muitas críticas porque, como sempre ocorre neste tipo de empresa, serviam primordialmente a seus governos (e não a seus Estados) e/ou a seus empregados e sindicatos (e não a seus consumidores).
Tal experiência no mundo e também no Brasil indica que a privatização das atividades produtivas, especialmente dos chamados serviços de utilidade pública, prestados a todos os consumidores de forma equânime, é algo que deve ser considerado à luz do momento e do estágio da economia de cada país, da sua cultura e, ainda também, de suas potenciais condições de crescimento.
Este artigo aborda o processo de transformação do setor de energia elétrica no contexto da modernização do Estado brasileiro em curso nos últimos anos. Longe estamos da década de 1930, do “Estado Corporativo”, em que o Código de Águas foi publicado, ou do final da década de 1980, quando uma Constituição idealista e afastada do momento econômico do mundo criou dificuldades para uma adequada gestão orçamentária nacional. O setor já experimentou reformas liberais, ajustes macroeconômicos, restrição a investimentos, manipulação de tarifas, intensificação de fluxos internacionais de capitais… No plano macro, hoje observa-se a desconstrução de um mundo imperial e o surgimento da multipolarização econômica – com a emergência da China, a falência das ideologias e o crescente pragmatismo político. Enquanto isso ocorre, muitos suspiram por uma inviável volta ao passado.
Mais recentemente, com a queda do crescimento mundial, observamos o recrudescer da xenofobia, uma crise ambiental sem precedentes e a carência de canais de representação da enorme diversidade das populações do mundo por razão de nacionalidade, sexo, etnia, religião, ou por questões econômicas.
A convivência com enormes incertezas nos leva a ter que considerar, nos planos empresariais, a flexibilidade para se adequar a novos modos de morar, trabalhar, valores e costumes da sociedade que evoluem mais rápido do que as instituições, sempre um (ou mais) passo atrás e, por vezes, engessadoras do progresso.
Assim, constatou-se em estatais, pouco ágeis pelas imposições legais peculiares de entidades públicas, uma série de condições negativas comuns:

  • apropriação do poder pelas corporações de empregados em conúbio com os políticos que delas extraem benefícios para si em detrimento da sociedade e dos stakeholders;
  • crescente corrupção nas relações com o Estado e fornecedores, manifestada na concessão de contratos, benefícios e vantagens indevidas;
  • baixa eficiência, levando a pouca competitividade com os novos players locais ou de outros países;
  • forte dependência de transferência de recursos orçamentários estatais para seu equilíbrio financeiro; e
  • crescente reinvindicação dos consumidores pelo aumento na qualidade do atendimento e na diminuição do custo do serviço.

Tais fatores apareciam combinados a preços artificialmente reduzidos, dando impressão aos consumidores finais que elas eram muito eficientes. A realidade, porém, é que os custos reais eram (como sempre) imputados disfarçadamente à sociedade sob a forma de impostos ou de subremuneração dos ativos estatais, gerando desequilíbrio nas contas nacionais, aumento da desigualdade e inflação.
No Brasil, esta regra sempre se confirmou mesmo com o país tendo vivido situações políticas de tendências diversificadas (sendo comum em qualquer destes cenários nacionais a grande incerteza regulatória).
Getúlio Vargas, nos anos 1930, fomentou a siderurgia nacional, a nacionalização do setor elétrico e o início do setor de petróleo estatal. Juscelino Kubitschek trouxe a abertura para a indústria pesada, naval, automobilística e química. Os militares nacionalizaram o que restou do setor elétrico, os portos, as telecomunicações, os computadores, a pesquisa agropecuária e formularam a famosa política “integrar para não entregar”, responsável por um grande desenvolvimento de infraestrutura em paralelo a uma enorme agressão ambiental na Amazônia.
Estas ações entraram em forte questionamento no início dos anos 1980 e se agravaram em 1988 com a Constituição, cujo lado bom era voltado para prevenir a volta de regimes autoritários e o lado negativo era garantir a consolidação de “direitos adquiridos” no período anterior – porém impossíveis de serem pagos pelas novas gerações, como se veria. O país ficou engessado num modelo anacrônico e corporativista. Filhos e netos obrigados a pagar pela incúria dos pais.
Importantes segmentos de produção ficaram presos em tal camisa de força e pouco após a promulgação do novo texto constitucional começaram a emitir sinais de que não seria possível funcionar a contento. Não se passaram nem dois anos e os setores de energia e petróleo já enfrentavam grandes dificuldades, procurando encontrar saídas que viabilizassem as crescentes demandas da sociedade. A eleição do presidente Collor e a sua campanha de privatização das estatais (associadas pejorativamente a paquidermes) é um exemplo disso. A resistência patrimonialista dos reais “donos do poder”, como os chamou Raymundo Faoro, foi enorme, porém.
A despeito de uma série de importantes iniciativas ocorridas nos governos Collor, Itamar e FHC, o Estado voltou a se tornar presa fácil de interesses corporativos e fisiológicos devidamente mascarados com pitadas de anacrônicas ideologias.
Deste apanhado histórico uma lição fica clara: os regimes de exploração de serviços públicos estão intimamente relacionados com o funcionamento da política e da economia dos países. Quando há predomínio de estatais, há benefícios para poucos – notadamente os políticos, empresas corruptas, corporações sindicais, etc., em detrimento do povo. São regimes patrimonialistas, em que as empresas estatais lutam para sobreviver de forma a manter o status quo. Elas indiretamente viraram a maior fonte de financiamento de campanhas políticas. Juntamente com aqueles que delas se aproveitam, funcionam de modo a preservar o passado, os direitos adquiridos e seus eternos campos privativos de caça, uma verdadeira ameaça para a democracia.
Economias modernas favorecem um maior número de empresas atuando em competição. Isto exige autoridades reguladoras fortes para impedir abusos de poder econômico e, neste século XXI, parecem apontar para a importância de limitar o capital estrangeiro por país de origem a não mais de 10% a 15% dos setores de que participam, sob pena de forte descaracterização do setor nacional ou empresas de economias grandes monopolizarem serviços em países menos capitalizados. Esta questão é vivenciada no Brasil, atualmente, onde vemos um forte crescimento do capital chinês no setor elétrico.


  1. Ascenção e queda do setor de energia elétrica estatal

Embora presentes antes de 1990 – importantes pelo pioneirismo, mas insignificantes em seu peso frente ao total do mercado – foi somente no governo Collor de Mello que as privatizações no Brasil começaram a acompanhar o movimento iniciado no mundo cerca de dez anos antes.
Competitividade, informática, economia em rede, produtividade, cadeias internacionais de produção foram conceitos que passaram a ser não só conhecidos e praticados no país, mas incentivados por órgãos oficiais como BNDES, Embrapa, Ministério da Ciência e Tecnologia e outros. Em visita à Europa, o presidente Collor dirigiu um carro de última geração. Ainda sob o impacto da experiência, teve um encontro com empresários na Suíça e disparou uma de suas frases de impacto: “Os carros brasileiros são carroças”. Ao regressar, enviou para o Congresso um projeto de lei que revogava a retrógrada Lei de Informática que então vigorava. Um divisor de águas para nós.
As empresas estatais, por outro lado, encasteladas nos seus privilégios, monopólios e corporativismos variavam entre fazer corpo mole ou oposição declarada, acusando os modernizadores de “modistas”, “neoliberais, “entreguistas”, “vendidos”, etc. Não raro, interesses fisiológicos de políticos e fornecedores davam as mãos e juntavam-se a estas vozes refratárias às mudanças, o que só aumentava nossa distância de uma sociedade do conhecimento e da primazia dos consumidores.
Voltemos um pouco no tempo para tratar especificamente do setor de energia elétrica. Historicamente, este setor teve por característica sistêmica uma proteção da exposição aberta à competição e manteve-se fechado. Seu programa de expansão amparava-se no discurso da racionalidade desejável, baseada no conceito de least cost solution (solução de menor custo). Este conceito pode ser explicado como a promoção da expansão do sistema com a devida tempestividade e com o adicionamento progressivo de unidades produtivas de custo crescente. Em outras palavras, as usinas e as correspondentes linhas de transmissão iam sendo adicionadas ao sistema interligado numa escala crescente de custos. Isto permitia se ter um crescimento relativamente discreto no tempo do chamado “custo marginal de expansão”, tirando partido da diversidade das características geográficas, climáticas e da concentração de mercado existente no Brasil.
Delírio político
Esta boa metodologia foi manipulada e distorcida em larga escala quando o governo resolveu forçar a entrada de uma usina de custo mais elevado na sequência de custo mínimo: a usina nuclear de Angra I (por sinal, construção atribuída à Construtora Odebrecht, depois famosa por outros motivos). A partir daí o que era exceção virou regra. O governo Maluf, no Estado de São Paulo, incluiu na programação três hidrelétricas – Rosana, Taquaruçu e Três Irmãos – para agradar a diferentes empreiteiras, num claro desafio a uma racional programação. Encaixou-se, ademais, em pleno regime militar a grande hidrelétrica de Itaipu, deslocando dezenas de usinas hidrelétricas menores, porém mais competitivas e, ainda, assinou-se com a Alemanha um Acordo para a construção de oito usinas nucleares, tudo isso antes de 1976. Constatamos hoje, 33 anos depois, o absurdo ao ver que apenas uma delas está em operação, embora os custos do programa tenham sido estratosféricos.
Algumas ações setoriais se contrapunham a esse delírio político como a Lei de Itaipu de 1974, que disciplina a operação interligada do sistema em bases cooperativas e, mais tarde, em 1988, o Decreto que criou o Plano Decenal de Expansão do Setor de Energia Elétrica e o seu Grupo Coordenador de Planejamento da Expansão (GCPS). O Plano Decenal era construído sob a filosofia do mínimo custo de expansão. A Eletrobras, responsável pelo secretariado, reordenou a concessão de seus empréstimos para as usinas e linhas ali incluídas e, mais tarde, vinculou a inclusão das obras à obediência às regras ambientais constantes dos seus Planos Diretores de Meio Ambiente do Setor Elétrico (PDMA).
Conseguiu-se assim, mesmo sendo o setor quase predominantemente estatal até o ano de 1995, uma racionalidade de expansão pensada sempre num horizonte de 25 anos. O custo de adaptação foi significativo. Em torno de 1990, cerca de 22 hidrelétricas iniciadas por pressão política, sem fundos para implantá-las e sem mercado para consumir a energia que seria por elas gerada, tiveram que ser reprogramadas e muitas interrompidas por anos a fio. O excesso de oferta de energia foi oferecido a preços pífios via as chamadas ETST (energia temporária para substituir energias térmicas) e outras formas que amparavam um enorme subsídio à produção de alumínio, ferroligas e outros produtos eletrointensivos, favorecidos no II PND (governo Geisel) a um enorme custo orçamentário e de endividamento público.
No momento de maior visibilidade e de glória da engenharia nacional marcado pela inauguração de Itaipu, a maior usina do mundo, os bons tempos já haviam passado. Isso me lembra a inauguração da grande praça da Catedral de São Pedro no Vaticano, quando a igreja, não mais monolítica, fragmentava-se pelas inúmeras religiões da Reforma. Quando a prioridade deixou de ser construir um número limitado de obras para administrar sistemas complexos e servir milhões de consumidores que se urbanizavam, a incapacidade estatal de gestão apareceu em verdadeira grandeza.
Em 1992, era patente e inquestionável a insuficiência de fundos públicos por parte da Eletrobras. Suas controladas (Furnas, Chesf, Eletronorte e Eletrosul) tiveram que estudar novas formas de financiamento e, assim, vimos algumas usinas serem concluídas em arranjos com a iniciativa privada (via licitações). Temos os casos das usinas de Serra da Mesa (Furnas) e de Itá (Eletrosul), além da usina de Jaguara (Cemig). No contexto de um paradigma setorial mais aberto, criou-se o Sintrel (Sistema Nacional de Transmissão de Energia Elétrica), o open access ao sistema de transmissão em 1993.
No governo FHC, privatizações setoriais
Em fevereiro de 1995, o governo de Fernando Henrique Cardoso fez aprovar no Congresso uma lei permitindo que serviços públicos de energia elétrica fossem prestados em caráter de concessão pela iniciativa privada, promovendo algo carente de regulamentação desde a Constituição de 1988.
As privatizações setoriais começaram em agosto de 1995 pela distribuidora Escelsa, de controle federal. Em julho do ano seguinte, viu-se o mesmo ocorrendo com a Light, também concessionária federal na época. É de se registrar que foi um processo conduzido muito rápido. Não havia sequer uma verdadeira agência reguladora devidamente “atualizada” no setor elétrico, tendo a Aneel sido criada depois. Seguiu-se uma sucessão de privatizações de empresas estaduais, todas em precaríssimo estado de funcionamento.
Este processo de privatização iniciado pelas distribuidoras era altamente desejável, pois passando-se a dispor de ‘agentes racionais’ (em oposição aos agentes políticos de até então) na ponta de recebimento do preço pago pelos consumidores, fiscalizados por uma nova agência reguladora, criava-se um fluxo confiável de dinheiro para pagar a energia suprida na maioria pelas geradoras federais (Furnas, Chesf, Eletronorte, Eletrosul, Itaipu) e as estaduais (Cesp, Cemig e Copel). Na conjuntura anterior, era frequente e usual o calote das distribuidoras estaduais nas geradoras de energia sem que houvesse vontade política ou meios próprios para o simples corte de fornecimento àquelas que não pagavam. As privatizações, além de sanear a inadimplência interna ao setor, criavam a perspectiva de um fluxo confiável de recebíveis capaz de assegurar a compra no longo prazo de energia a ser gerada por futuras usinas a serem construídas.
Tudo parecia, portanto, caminhar bem, tendo se observado até mesmo a privatização da primeira grande geradora, a Eletrosul, adquirida pela Tractebel (hoje Engie), empresa que demonstra a maior eficiência e valorização entre empresas privadas donas de hidrelétricas (e ainda há quem afirme serem “imprivatizáveis”).
Naquele momento, 1999, o processo é interrompido em função de:

  • forte reação política comandada pelo então governador Itamar Franco, do estado de Minas Gerais à privatização das geradoras hidrelétricas, Furnas em particular, com repercussões fisiológicas e corporativas no Congresso Nacional (não possíveis de serem enfrentadas por um governo FHC de maioria parlamentar precária);
  • d
    ivulgação de um novo modelo de funcionamento do setor de energia elétrica contratado com consultora estrangeira, infelizmente eivado de profundas distorções e desconhecimento quanto ao real funcionamento do setor elétrico brasileiro; e
  • crise econômica e cambial conjugada a uma restrição na oferta de energia elétrica que pegou o governo (especialmente as autoridades econômicas) de surpresa, embora vozes tivessem cansado de apontar os riscos de racionamento.

Desta situação resultou um corajoso e detalhado relatório elaborado no governo FHC e na condução de mais uma reforma da regulação do Setor de Energia Elétrica, desta vez materializada por Dilma Rousseff, então ministra de Minas e Energia já no governo Lula da Silva. Embora com o grande mérito de criar uma estrutura interessante para os novos leilões das hidrelétricas e das linhas de transmissão, outros problemas – como a sistemática de formação dos preços e a promoção de uma boa engenharia de projetos – não foram atacados como se deveria.
MP 579 levou o setor à ruína
Cabe aqui adicionar duas notas lamentáveis sobre a atuação governamental nesta época. A primeira, vimos distribuidoras estaduais de energia das regiões Nordeste e Norte que não haviam sido privatizadas e, portanto, imersas em todo tipo de vícios corporativos e ineficiência que as caracterizavam, serem “transferidas” para a Eletrobras. A segunda, para forçar uma redução tarifária, o governo emite a MP 579, saudada na época como “excelente” pela curta visão peculiar das federações de indústrias e outros áulicos. Ao se transformar em lei, a MP levou o setor à ruina. Os conselheiros da Eletrobras que votaram a favor da adesão aos seus termos foram multados pela CVM. Vale notar que a Aneel coonestou a ação daquele governo. Essa MP extraiu valores da base de remuneração das empresas e impôs tabelas de custos operacionais irreais.
Ao final do período Dilma, o setor de energia elétrica comandado pelo que há de pior na política corrupta e fisiológica (com poucas exceções, como o correto presidente da Eletrobras), encontrava-se estruturado da seguinte maneira:

  • uma empresa federal, a Eletrobras, tentando controlar uma grande bagunça formada por empresas que representavam 30% da geração do país (Furnas, Chesf, Eletrosul, Eletronorte, Itaipu e Nuclebras) e cerca de 50% do sistema interligado de transmissão, além de deter em torno de 49% do capital de cerca de 170 sociedades de propósito específico;
  • um parque gerador de propriedade da Cemig, Copel, Cesp e de algumas empresas privadas que vieram adquirindo usinas destas empresas dentre as quais a State Grid, EDP, Engie e dezenas de outras empresas na área de geração eólica;
  • um significativo número de empresas de transmissão proprietárias de linhas e instalações de transmissão;
  • empresas privadas de distribuição atendendo a cerca de 70% do mercado brasileiro, (grande parte hoje de controle internacional) com a notável exceção da Energisa, uma empresa nacional com mais de 100 anos de idade.
  • menos de 10% do mercado total atendido por empresas federais de distribuição (a caminho de privatização ou venda de concessão), geridas predatoriamente pela Eletrobras, localizadas nas regiões Norte e Nordeste;
  • cerca de 20% do mercado nacional atendido pelas empresas estaduais Copel, Cemig, Celesc e CEEE com diferentes graus de dificuldades operacionais e financeiras para manter suas concessões;
  • um dinâmico mercado livre com mais de 100 comercializadores de energia, responsáveis por cerca de 30% da energia consumida no país.

Além disso, órgãos de coordenação e fiscalização, em geral vítimas das mesmas distorções, como Aneel, ONS, CMSE, CCEE, EPE e miríades de representações corporativas povoavam o quadro de entidades atuantes.


  1. O setor de energia elétrica no governo Michel Temer

O presidente Michel Temer tomou posse em maio de 2016. Uma nova composição do Conselho da Eletrobras se deu em 25 de julho de 2016 e sinalizava o propósito de privatização com uso da maior experiência histórica neste tipo de processo visando valorizar o patrimônio público e assegurar o funcionamento adequado para os consumidores pós-privatização.
Antes que pudessem pensar em qualquer futuro no médio prazo, os membros do Conselho eleitos em 2016 tiveram que se debruçar em questões operacionais da holding e suas controladas. Não lhes foram disponibilizados meios adequados de apoio, porém, e com frequência se viam engessados pelas inflexibilidades e controles – legais e/ou burocráticos – das estatais que, se corrupção não previnem, ineficiência, pelo menos, asseguram. Frustrando ainda mais as pretensões de quem almejava uma mudança expressiva na condução da política de energia elétrica, viram-se muitos dirigentes executivos de sofrível desempenho (indicações políticas sem o devido respaldo de competência técnica) das controladas serem mantidos em seus postos.
Ciente de sua responsabilidade histórica, o Conselho eleito concentrou esforços na melhora de controles, apoio às ações executivas ligadas ao arquivamento dos relatórios 20F, sustados pela SEC desde 2014, e na criação de condições que evitassem a exclusão da Eletrobras na Bolsa de Nova York (o que implicaria o vencimento imediato de R$ 30 bilhões em dívidas).
O Conselho igualmente acompanhou e colaborou da melhor forma com a Comissão de Investigação presidida pela ministra Ellen Gracie na difícil tarefa de identificar e quantificar operações de desvio de fundos efetuadas e apontar responsáveis.
A partir de 12 de outubro de 2016, com os balanços de 2014 e 2015 aprovados pela SEC e BNY devidamente arquivados, a empresa suspirou aliviada. Apesar de auxiliado pela Lei das Estatais, o Conselho teve então que se dedicar a uma ferrenha resistência às abundantes tentativas de nomeações políticas para cargos no setor. De forma surpreendente, após anos de atos de gestão questionável – especialmente no que se refere à ocupação indevida de cargos-chave para a boa eficiência do setor – parecia que a lição não estava aprendida.
Na Assembleia de abril de 2017 – quando aos dois balanços em atraso anteriormente aprovados somaram-se a aprovação e o sucessivo arquivamento do balanço do ano de 2016 –, deixaram de integrar o quadro de conselheiros, já ao final de seus respectivos mandatos: José Luiz Alquéres, Mozart Araújo (ex-presidente da Chesf) e Ana Paula Vescovi (da Secretaria do Tesouro Nacional). A nova presidente do Conselho, conselheira Elena Landau, renunciou dois meses depois. Até então, apesar de cobranças do Conselho e do interesse do presidente executivo da Eletrobras, nada de relevante no tocante ao progresso das privatizações havia ocorrido. Na realidade, para muitos ficou claro que não haveria vontade política maior para levar uma privatização correta a cabo.
Em julho, o MME apresentou a Consulta pública CP 33 com propostas diversas sobre a reforma do Setor Elétrico. Embora com algumas omissões de pontos importantes, tinha o mérito de levar o assunto ao debate público, tendo recebido nos meses subsequentes um número significativo de sugestões dos agentes setoriais (cerca de 900!).
Compensação para a Eletrobras
Uma das propostas da CP33 consistia na chamada “descotização” de usinas controladas da Eletrobras. Isto é, a possibilidade de a Eletrobras devolver ao poder concedente a concessão antes recebida para explorar as referidas usinas hidrelétricas, notadamente aquelas que tiveram o preço da energia gerada baixado por força da MP 579 do governo Dilma. Com isso, o poder concedente poderia realizar nova licitação, e os interessados em explorar o potencial de geração de tais usinas poderiam agora fazê-lo com preços praticados no mercado livre. Naturalmente, isto permitiria uma arrecadação substancial de recursos via cobrança de outorga para a União, além de uma compensação para a própria Eletrobras, que se viu antes lesada pela infeliz MP 579. O estranho, porém, é que havia possibilidade da própria Eletrobras utilizar a dita compensação para participar dos certames novamente e, assim, voltar a explorar tais geradoras (desta vez sendo remunerada em bases de mercado). Explicar esta “aberração” é simples: a mesma Eletrobras que devolve a concessão recebida (que rende pouco) poderia vencer depois uma licitação e obter nova concessão (que renderá mais do que a atual sob o novo contrato) pagando “en passant” uma nova outorga à União. Fica patente, porém, o primarismo do artifício legal que se pretende empregar.
Foi neste contexto então, às pressas, anunciada como complemento a esta “criativa” maneira de fazer caixa para a União a diluição do controle da Eletrobras sob forma de sua transformação em um tipo societário denominado “corporation”.Trata-se de modelo de sociedade anônima raro no Brasil, que permitiria a existência de um verdadeiro paradoxo gerencial: fundos de investimento e investidores denominados de curto prazo deterem o comando de um negócio que obrigatoriamente deve olhar para um futuro bem à frente e estudar calculadamente cada passo e investimento, diferindo-se bastante das atividades típicas de investidores puramente financeiros.
O descaramento público anunciado para aprovar esta solução sob a forma de medidas para comprar apoio de deputados no Congresso é por demais vergonhoso para se repetir aqui. Aparentemente não vai funcionar.
Havia dentre outros descuidos na proposta a questão da impossibilidade constitucional de privatizar Itaipu e Nuclebras, para as quais posteriormente anunciou-se criar estatais para assumi-las.
Para piorar as coisas, 20 meses depois de a Assembleia da Eletrobras de julho de 2016 aprovar a privatização das distribuidoras federais, o governo parecia surpreendido com o montante das dívidas e sem saber ao certo quem deveria assumi-las: a Eletrobras ou a União? Diga-se, dívidas estas resultantes do lastimável estado que a politicagem as deixou sob complacentes gestões anteriores à atual da Eletrobras e omissão da própria Aneel.
Entre o início do segundo ano do governo Temer e o início do terceiro, agora em maio de 2018, nenhum progresso objetivo ocorreu, a não ser a recém anunciada “perda de interesse” do governo na privatização, que, parece, era motivada mesmo por pressão da área econômica para arrumar algum recurso para fechar o balanço anual.
Em suma, pode-se dizer que nesta fase mais recente, a partir de 2016, ocorreram alguns progressos operacionais representativos na governança e na repressão à corrupção. Decepciona, porém, a estagnação na condução de uma privatização correta, o que aparentemente nunca foi levado a sério pela área política do governo – tendo sido seu anúncio inicialmente animador para alguns técnicos de alta competência e outros iludidos de boa-fé e que hoje se encontram descrentes do compromisso e da capacidade do governo.


  1. Diretrizes que a privatização deve considerar

4.1 A questão tecnológica
Existe a mais absoluta unanimidade nas políticas energéticas de todos os países que elas devam ser desenvolvidas tendo em mente um futuro mais sustentável para o planeta. Isto implica a presença cada vez maior de fontes de geração descentralizadas renováveis, com o mix de produção de energia mais adequado a cada região.
Pelas dimensões continentais brasileiras, é de se esperar que venham a existir mais eólicas e solares no Nordeste ou mais gás natural no Sudeste (associado ao pré-sal). É esperado também um maior peso da autoprodução, da redução dos custos dos painéis solares e de melhoria da eficiência e do custo das baterias de acumulação (o que hoje limita o uso dos painéis fotovoltaicos). A expansão das redes inteligentes transformará os consumidores em “prosumidores”, ou seja, eles poderão tanto receber quanto produzir/fornecer energia para a rede pública.
As empresas devem se acomodar a estas geografias de produção diferenciadas. A era das grandes usinas e extensas linhas de transmissão acabou. A decisão de fazer Itaipu, por exemplo, foi tomada quando a capacidade instalada do Brasil era inferior à da Usina (12 GW comparáveis aos 12,6 GW originais de Itaipu). Mesmo prevendo crescimento do mercado de uma forma conservadora, daqui a 20 anos Itaipu estará atendendo a menos da metade da carga da região Sul, tornando-se, portanto, um recurso local.
O sistema elétrico nacional deve ser pensado em torno de umas 8 ou 10 macrorregiões elétricas, tão autossuficientes quanto possível, interligadas por linhas de transmissão em corrente contínua. Isto deve se dar de forma distinta da que ocorria no passado, quando linhas de transmissão eram construídas para escoar a energia de uma nova usina para centros de carga distantes. As mudanças da natureza da carga (mercado) e da topologia do sistema elétrico recomendam que a transmissão seja estruturada em sistemas regionalizados, que possuam padronização e responsabilidade técnica integrada na fase de operação e manutenção, o que exigirá alteração na forma atual de se efetuar os processos licitatórios da expansão da rede básica.
Somando estas duas tendências da geração e transmissão, vemos que tanto a confiabilidade dos sistemas quanto a boa competição sugerem unidades regionais distintas tanto de geração quanto de transmissão. Manter tudo concentrado como está – na Eletrobras – contraria esta tendência, limita a velocidade da evolução tecnológica e não favorece a busca da competitividade. Isto já se observa, aliás, na teimosia em desenvolver usinas no frágil ecossistema da Amazônia, construir linhas de transmissão de 2.400km de extensão até o Sudeste e outras concepções hoje injustificáveis, podendo até estas linhas de transmissão ficarem subcarregadas antes de serem amortizadas, gerando um sobrecusto gravoso para os consumidores.
4.2 A adequada gestão ambiental
No contexto em que 195 países do globo firmaram o Acordo de Paris, o compromisso assumido pelo Brasil foi aumentar a participação de bioenergia sustentável em sua matriz energética para aproximadamente 18% até 2030, restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares de florestas, bem como alcançar uma participação estimada de 45% de energias renováveis na composição da matriz energética em 2030. A grandeza e a importância do Brasil como país que ainda tem o privilégio de contar com reservas naturais expressivas em relação ao resto do mundo não parecem compatíveis com a proposta de modernização do setor elétrico que tem sido divulgada atualmente pelo governo.
Tome-se como exemplo a gestão de bacias hidrográficas. A proposta em curso indica que o problema estaria equacionado por meio do pagamento de cerca de R$ 350 milhões reais/ano para um programa de recuperação de nascentes dos afluentes do rio São Francisco. É algo extremamente acanhado face ao valor da energia gerada pela atual capacidade instalada do Grupo Eletrobras e, indo além, representa apenas um valor irrisório diante das necessidades desta bacia. Agravando-se a situação, nada se menciona a respeito de outras bacias.
A constituição desta nova Eletrobras, uma megaempresa integrada, não atende às diversidades ambientais e sociais do nosso país e nem a um modelo moderno de gestão integrada visando aos usos múltiplos da água.
4.3 Valorização do patrimônio público
Hoje, é ponto pacífico na avaliação das empresas que uma parte crescente do seu valor apresenta-se sob a forma de capital intangível. Sua marca, suas patentes, suas pessoas, sua reputação, sua capacidade de atuar nos contextos em que desenvolve suas atividades, em suma, sua cultura empresarial. As empresas controladas da Eletrobras, neste aspecto, são profundamente diferentes entre si, como não podia deixar de ser, atuando em regiões diversificadas e enfrentando, cada uma com suas peculiaridades, problemas de toda ordem. Estas controladas vêm ao longo de seus vários anos de atuação adquirindo valorosa bagagem e enriquecendo sua cultura empresarial própria.
Não surpreende, portanto, que tais empresas sejam procuradas por diversos investidores nacionais ou estrangeiros para parcerias de investimento em virtude do profundo grau de conhecimento adquirido localmente. A Eletrobras participa de mais de 170 diferentes Sociedades de Propósito Específico (SPE) que atuam na geração ou na transmissão. O modelo proposto de diluição do capital, fazendo que os 49% a serem detidos pela Eletrobras não pesem mais do que 10% em termos de voto, representa uma devastadora destruição deste capital intangível formado por importantes culturas técnicas, comerciais e institucionais diferenciadas e construídas ao longo dos últimos 70 anos.
É também consenso no mundo empresarial e no mercado de capitais que aquele que paga mais por uma empresa (reconhece maior valor) é o chamado acionista estratégico. Há mesmo uma gradação em Bolsa de Valores do tipo de investidores. O especulador compra barato e sai quando tem um ganho compensador, na maioria das vezes rápido. Sair significa vender para um aplicador mais estável: um Fundo de Investimento, que manterá certa quantidade de ações em sua carteira e as irá trocando na medida das suas necessidades e do seu potencial de valorização. Este, por sua vez, sai – desinveste –, vendendo para um Fundo de Pensão que tem mais ou menos as mesmas necessidades, mas, em geral, pode manter a ação mais tempo em carteira, desde que sua performance seja boa. Este último, por sua vez, no devido tempo de honrar resgates dos contribuintes dos seus planos de previdência, vende as ações detidas para um investidor estratégico, assim chamado por ser uma empresa do mesmo setor do projeto. A ideia é que este investidor estratégico torne-se dono do controle da empresa para poder consolidar o resultado em seu balanço, retirando mais valor da operação eficiente e não tendo a intenção primordial de se desfazer das ações com sua valorização, mas sim remunerar-se com dividendos.
Ora, conforme declarações de representantes do governo, a intenção é “vender a Eletrobras para investidores financeiros como forma de democratizar o capital”. Vimos acima que o modelo proposto no Projeto de Lei segue o formato denominado “Corporation”, um tipo societário incomum no Brasil. Na prática, isto implica perder o chamado “prêmio de controle”, pois o formato proposto é favorável à entrada de especuladores em detrimento de um desejável investidor estratégico. Ressalto que não quero com isso depreciar de forma alguma a importância do especulador na dinâmica do mercado de capitais (onde ele tem seu papel). Vemos que há um abuso da expressão “democratização do capital” neste caso, pois aqui o maior benefício para o consumidor e para o Estado seria ter a Eletrobras sendo gerida de maneira eficiente, com visão de longo prazo e estrutura operacional experiente e familiarizada com o setor. Deve-se evitar ao máximo a má experiência da Corporation observada no caso da “Oi”, empresa de telefonia na qual grupos societários que detêm participação no controle vivem em implacável disputa (bem documentada quase diariamente nas páginas da imprensa especializada), enquanto a empresa tenta sobreviver com uma dívida imensa.
Vinculado ao ponto acima está a total impropriedade de se ter acionistas de curto prazo determinando decisões estratégicas em negócio de longuíssimo prazo e de permanentes responsabilidades ambientais. Há lições como as do desastre de Mariana a se ter em mente. Hoje, a Vale honra seu compromisso histórico com o vale do Rio Doce que lhe deu o nome e procura uma solução para os problemas causados pela Samarco, uma empresa da qual participava do controle. E se ela fosse uma Corporation de acionistas eventuais? Certamente estes levariam o investimento à perda e desapareceriam nas brumas de longas ações judiciais.
A criação de uma “golden share” é outro ponto absolutamente negativo na visão do mercado de capitais. Desvaloriza a companhia. Para quê? Para nomear um conselheiro presidente e ter uns poderes de veto em matérias meio obscuras, poderes em geral que podem não vir a ser razoáveis como temos visto com frequência ocorrer quando partem do governo.
4.4 Contexto setorial com regras definidas
Apesar das notáveis melhorias operacionais na Eletrobras conseguidas sob a liderança de seu competente presidente, os aspectos positivos destes dois anos agora completados do governo Michel Temer se devem mais aos atos de alguns poucos gestores abnegados do setor elétrico do que à vontade política. As grandes definições setoriais, os passivos de GSF, passivos do programa nuclear, passivos das empresas do Amazonas com a Petrobras e Eletrobras, valores de CDE questionados pela Aneel, dívidas das distribuidoras, impairments em balanços, investigações de corrupção em curso e outros muitos problemas escondidos atrás de siglas enigmáticas para a maioria das pessoas restam em aberto. A quanto monta este total de passivos? Quanto dele vai recair na Eletrobras ou na União? Qual será a arte para fazê-lo aterrissar no bolso dos consumidores? São pontos importantes a serem resolvidos já, ou pelo menos, perfeitamente balizadas as suas consequências sobre a Eletrobras.
O Brasil necessita de um setor eficiente, competitivo, com baixo risco regulatório para amparar a desejada retomada de investimento de que necessita. Esta retomada só se conseguirá com boa parte dos ativos da Eletrobras privatizados – não há dúvida – e de algumas de suas empresas controladas. Existem outras, porém, como as nucleares e Itaipu em que isto não é possível constitucionalmente. Há o caso de uma geradora como a Chesf, de complexa privatização face os usos múltiplos da escassa água da sua bacia, em que sua atuação transcende a mera responsabilidade setorial no campo da eletricidade para ser a grande fonte de água para 30% da população brasileira. Lembro aqui que esta empresa e seus negócios deverão ser profundamente afetados por eventual – e provável, ao que parece – transposição de águas da bacia do Rio Tocantins para a do São Francisco.
Em suma, regras bem definidas devem preceder a privatização, especialmente num governo de baixíssima credibilidade pública.
 4.5 Monopólio público, monopólio privado?
A história nos mostra que não foi desejável e, de fato, não se fez no passado a privatização do conjunto da Telebras, da Portobras, da Siderbras e outras holdings criadas em momento de concentração autoritária dos poderes no governo federal. Teve-se em mente o esforço de Roosevelt em quebrar monopólios e incentivar a forte competição que leva ao progresso. Esta privatização de uma Eletrobras unificada neste país patrimonialista e de instituições frágeis, conforme proposto no Projeto de Lei, pode se constituir em grande ameaça à própria democracia brasileira, criando um “polvo multitentacular” privado já ruim em si – e, por incrível que pareça, pior ainda se for eficiente porque, além de inibir completamente a competição e asfixiar os players privados de menor porte (que ele poderá ir adquirindo ao seu bel prazer), teria um poder de pressão sem similar no país. Seria como uma espécie de PDVSA, gigante petrolífera que é o pilar da economia venezuelana. A recente greve de caminhoneiros nos dá dimensão do que seria a eventual paralização de um gigante que proporciona serviços essenciais – como esta Eletrobras concebida no Projeto de Lei.

  1. Sugestão para a privatização

A rota da privatização deve ser outra, e não a do atual Projeto de Lei. Um modelo de privatização é algo complexo que demanda estudos profundos. Além dos cuidados apontados no item 4 acima, devemos lembrar de algumas importantes diretrizes.
Tratemos primeiro das distribuidoras de energia federalizadas. No caso (nada improvável) de falta de interessados no leilão previsto no Projeto de Lei, deveriam tais distribuidoras ser objeto de oferta para operação por prazo de oito anos por empresas concessionárias já estabelecidas no Brasil e que estejam em dia com suas obrigações. Poderia haver uma cláusula prevendo que o governo, ao final deste período e caso os gestores queiram exercer a opção de se tornar proprietários, receba o valor igual à metade da valorização das ações conseguida por eles no período, sendo que as empresas gestoras seriam obrigadas a abrir cerca de pelo menos 40% do capital destas distribuidoras ao final do quarto ano.
As SPE de Transmissão, Eólicas e outras já estão sendo vendidas e deverão ser integralmente repassadas ao setor privado. Em paralelo, todos os ativos operacionais poderiam ser passados para uma pessoa jurídica holding de participações societárias (algo como uma “Eletropart” – talvez a LightPar possa ser usada para isso). Tal holding teria uma estrutura societária de controle “espelho” da Eletrobras, abrigando sua participação nas ações das controladas. Isso não requer qualquer mudança legal.
Em seguida, aqui deve se estudar os aspectos societários. Poderia se oferecer a troca de ações dos acionistas privados da Eletrobras por ações desta “Eletropart”. É bem possível que isso já permitisse que ficassem na Eletrobras apenas as suas funções constitucionais (Itaipu, Nuclear e outras) e na “Eletropart” as operacionais e, assim, estes temas bem melhor resolvidos do ponto de vista funcional.
Evitar concentração de propriedade do setor
A “Eletropart”, que deteria os ativos operacionais das controladas e das SPE, poderia, então, cuidar da respectiva privatização. A prioridade seriam as linhas de transmissão das empresas controladas da Eletrobras, compostas em sistemas regionais que deveriam ser vendidos em conjunto. Em seguida, as geradoras regionais, respeitando as bacias hidrográficas, o que exigirá um maior cuidado para não se destruir o imenso patrimônio técnico e empresarial intangível construído por estas diferentes culturas empresariais de praticamente 70 anos de funcionamento. A Chesf deve ficar fora desta operação bem como a bacia do Rio Tocantins, que deverão ser profundamente estudadas em conjunto para efeito de transposição e integração de gestão.
A concentração de propriedade do setor deveria ser evitada com instrumentos próprios. Por exemplo, nenhuma empresa individualmente ou grupo de empresas com capital de origem de um país estrangeiro poderia deter mais de 10% a 15% dos ativos de cada tipo (geração, transmissão, distribuição).
Permaneceria existindo a Eletrobras, detentora dos ativos nucleares e Itaipu, como determina a Constituição, com as funções promocionais de desenvolvimento, redução de desequilíbrios regionais, gestão do Cepel e outras que possam ser necessárias num ambiente de transição energética.
O mercado livre deve ser ampliado com redução do atual nível de carga para que os consumidores a ele tenham acesso, resguardada a condição de fornecedores de “última instância” para as distribuidoras.
É importante para ensejar a convergência do gás/eletricidade a criação de novo marco legal energético para o gás. O atual é simplesmente vexaminoso e responsável pelo atraso do país neste campo vital para a competitividade.
Por fim, deve-se ter em mente que a desestruturação das últimas décadas vai exigir estudos prévios do novo ambiente regulatório para que a privatização, ainda que rápida, atenda ao maior interesse público e deixe estruturado um setor apto a responder às demandas de um mundo em profundas mudanças tecnológicas em todas as atividades produtivas. Não é aceitável o modelo proposto pelo governo no atual Projeto de Lei que compromete irremediavelmente o futuro do setor elétrico, além de desvalorizar o patrimônio público.

José Luiz Alquéres é engenheiro civil, ex-presidente do Conselho de Administração da Eletrobras, ex-presidente da Light, da Eletrobras, ex-secretário nacional de Energia. Presidiu a Associação Comercial do Rio de Janeiro. É vice-presidente honorário do Conselho Mundial de Energia e conselheiro do Clube de Engenharia.

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