A Renovação Administrativa do Poder Judiciário pela Cultura da Transparência
A administração do Poder Judiciário ainda é uma “caixa-preta”?
“A transparência não é um favor, mas um dever da administração pública”.A afirmação não causaria qualquer emoção ou surpresa, em um ambiente em que os cidadãos estão acostumados a respeitar a coisa pública e os governantes, a prestar contas de seus atos. A visibilidade é um dos critérios distintivos do governo democrático. Ele já foi definido como aquele no qual o poder público se exerce em público, isto é, à vista dos cidadãos.
Quando a apologia da transparência é feita pelo presidente de uma das mais altas cortes do país, referindo-se à administração da Justiça, faz pensar sobre as transformações que observamos nos últimos anos. Elas renovaram a face daquele que sempre foi considerado o mais hermético dos Poderes da República. Para além do efeito retórico, sinaliza que uma mudança de mentalidade está em curso, embora longe de esgotar seu potencial prático de transformação.
Na administração dos negócios judiciários, a tradicional propensão ao segredo vem cedendo lugar à sedimentação de uma cultura da transparência. As resistências ainda são fortes, mas podemos citar vários exemplos de como o Judiciário está superando um atraso administrativo notável em relação ao Executivo. Como e por que o mais fechado dos Poderes vem se abrindo aos olhos da sociedade?
O marco fundamental é a Reforma do Poder Judiciário, implantada por meio da aprovação da Emenda Constitucional nº 45. A Constituinte já prenunciava o desejo de uma estrutura mais aberta. Mas, o processo de modernização administrativa só recebeu impulso político efetivo em 2004. De lá para cá, podemos observar alguns resultados efetivos do programa institucional da Reforma do Judiciário.
Ao localizar, precisamente, no tempo, as bases fundamentais da mudança, não se desconhece a existência de outros esforços anteriores na direção da transparência. A criação da TV Justiça, em 2002, é um exemplo pontual de iniciativa que contribuiu para aproximar os cidadãos do Judiciário. Alguns críticos afirmam que as lentes das câmaras distorcem o processo de deliberação. De fato, artifícios cênicos poderiam ser evitados. Contudo, o balanço da exibição em tempo real dos julgamentos é positivo, sobretudo, por seu caráter pedagógico.
A diferença do processo iniciado com a Reforma do Judiciário está no seu sentido mais geral e abrangente. Naquele momento, pensava-se em oferecer respostas estruturais a problemas administrativos históricos. Um dos eixos fundamentais do projeto de modernização era fazer a Justiça mais aberta e acessível ao cidadão, tornando públicas todas as decisões administrativas.
A Constituição foi mudada para dissipar a percepção generalizada de uma instituição distante das pessoas, porque debruçada sobre si mesma. Foram abolidas, por exemplo, as sessões secretas dos tribunais em matéria disciplinar. Imaginou-se um Poder mais próximo do povo ao qual deve servir.
Aquela aura de solene mistério, que alguns antropólogos associam à dissimulação da violência inerente à função judicial, deveria ser conciliada com os anseios democráticos de controle e fiscalização. Era sabido que, à sombra de prerrogativas legítimas para a garantia da independência funcional, vicejavam alguns privilégios abusivos. A essas medidas somaram-se outras destinadas a racionalizar a prestação jurisdicional, como a instituição das súmulas vinculantes.
A pedra fundamental da Reforma do Poder Judiciário, contudo, foi a criação do Conselho Nacional de Justiça. Faltava um órgão de administração superior, capaz de formular estratégias nacionais para um arquipélago de tribunais espalhados por todos os estados da Federação. Boas práticas de gestão poderiam ser agora difundidas e implantadas de maneira mais uniforme. O Conselho é a expressão institucional do desejo da sociedade por maior transparência no Poder Judiciário.
A administração dos tribunais passou a ser fiscalizada por meio de inspeções in loco, coisa que antes da reforma não era sequer imaginável. A conduta disciplinar dos juízes mereceu maior atenção. O Supremo Tribunal Federal confirmou que os julgamentos de infrações funcionais precisam ser realizados em sessões públicas, ainda que isso traga constrangimentos pessoais a magistrados acusados, algumas vezes, de forma excessiva.
Mais do que apenas fiscalizar, o Conselho Nacional de Justiça promoveu políticas de incentivo à transparência e procurou dar clareza às regras éticas de conduta dos magistrados. Todas essas medidas encontraram no Conselho o seu vetor privilegiado. Na transição da cultura do sigilo para a cultura da transparência, foi sendo progressivamente aceita a ideia de que a publicidade é uma estratégia eficiente de prevenção dos desvios administrativos. A relação entre o custo e o benefício da política a torna altamente recomendável.
Ao longo de seus poucos anos de existência, o Conselho Nacional de Justiça consolidou o papel de indutor da transparência no Poder Judiciário, legitimando-se pela sua própria atuação. Editou normas administrativas de aplicação geral, que dão forma jurídica à vontade de difundir a todos os tribunais uma política ativa de revelação de informações sobre o real funcionamento da Justiça. Foi regulada a divulgação de dados relativos à gestão financeira e orçamentária dos órgãos judiciários.
CNJ e política-modelo de transparência
O Conselho Nacional de Justiça propôs-se a atuar não somente como um órgão fiscalizador, mas se colocou na vanguarda dos esforços de atualização das práticas administrativas destinadas a dar maior visibilidade aos assuntos da Justiça. O órgão publica, regularmente, relatórios de suas atividades para, posteriormente, oferecer espaço à divulgação de informações que recebe dos tribunais.
Nas diferentes gestões do Conselho, essas boas práticas foram se firmando, de modo a alcançar uma concepção madura de publicidade. Como é devido, numa democracia aberta, a divulgação ativa de informações públicas estabeleceu-se como regra, restando ao sigilo um lugar residual, desde que justificado por excepcionais razões de interesse público.
O Conselho Nacional de Justiça institucionalizou uma política-modelo de transparência para todos os órgãos administrativos do Poder Judiciário. Seu sítio eletrônico é exemplo do que se espera em toda administração da Justiça: informações de fácil acesso, divulgadas ativamente pelo agente público, com espaço reservado à interação com os cidadãos, por meio de serviços especializados de atendimento. As competências da ouvidoria não são apenas passivas, como o próprio nome – herança da administração colonial – poderia enganosamente sugerir.
Tal como projetado na Reforma do Poder Judiciário, o Conselho se transformou num farol da administração da Justiça, orientando planos de ação com alcance nacional.
A título de registro histórico, é justo destacar o papel desempenhado pelo Ministério da Justiça, desde 2003, como laboratório de experiências em políticas públicas, que orientaram decisivamente o esforço coletivo de transformação do Estado brasileiro, nos anos posteriores.
Em relação ao tema da publicidade, basta lembrar o lançamento do pioneiro programa de transparência, cujo modelo se difundiu por toda a Esplanada; a criação da secretaria de Reforma do Judiciário, que elaborou o primeiro diagnóstico sobre a situação administrativa daquele Poder; a crítica ao “sigilo eterno” de informações de interesse público e a gestação da lei de acesso à informação. Ali foram lançados os fundamentos de um projeto consistente de política pública governamental de transparência.
As sementes renderam bons frutos. No presente ano, por exemplo, o Tribunal Superior Eleitoral mandou divulgar, pela rede mundial de computadores, as doações feitas a candidatos e partidos políticos já durante o período eleitoral. Um controle que era feito somente depois das eleições pode ser exercido ao longo da campanha, graças à onda da transparência na qual mergulhou o Estado brasileiro. Trata-se de mais uma evolução institucional que merece ser registrada, pelo efeito benéfico que desejavelmente produzirá sobre nossos costumes políticos.
O impacto da Lei de Acesso à Informação sobre o Poder Judiciário
A Lei nº 12.527, que entrou em vigor em maio de 2012, deu sentido mais concreto à regra constitucional da publicidade. O acesso à informação é tanto um direito fundamental do cidadão como um dever legal imposto a todos os órgãos do Estado – inclusive ao Poder Judiciário. A nova lei regulamentou mecanismos que dão maior visibilidade à atuação dos órgãos públicos e proscreveu velhas práticas de segredo, ainda inspiradas pela razão de Estado.
Alguns órgãos que não tinham qualquer política de transparência administrativa estão sendo obrigados a se adaptar ao novo marco legal. No caso do Poder Judiciário, a lei não impactou dessa forma, pois já havia iniciativas em curso. Um exemplo é a Resolução nº 102, de 2009, que o Conselho Nacional de Justiça expediu para disciplinar a divulgação de informações relativas à gestão financeira e orçamentária dos tribunais.
Porém, seria falso afirmar que a nova lei não teve impacto algum. Bastou que transcorresse uma semana de sua entrada em vigor para que o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, resolvesse divulgar informações ainda não disponíveis em seu sítio eletrônico: a remuneração de ministros e servidores judiciários. A decisão administrativa exemplar do órgão de cúpula do Poder Judiciário logo foi adotada por todos os tribunais superiores do país.
Não é de hoje que o Supremo Tribunal Federal entende que a divulgação de vencimentos não viola a intimidade dos servidores. Falar em privacidade, em matéria típica de organização do serviço público, é um contrassenso. Já em 2011, antes mesmo da promulgação da Lei de Acesso à Informação, o Plenário do Supremo havia autorizado o município de São Paulo a divulgar a remuneração dos servidores municipais.
O fenômeno que observamos hoje, contudo, é diferente. Pretende-se generalizar a aplicação de uma iniciativa até então isolada. A transparência da folha de pagamentos custeada pelos esforços da sociedade é instituída como política ativa para todo Judiciário. O Supremo chegou à conclusão de que não deve haver segredo sobre a remuneração dos magistrados brasileiros.
Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça criou um grupo de trabalho para verificar como as inovações da Lei de Acesso à Informação se aplicam ao Poder Judiciário. De suas conclusões parciais, foi editada uma nova norma administrativa para regulamentar a divulgação de vencimentos de magistrados, de acordo com os princípios da lei, em todos os tribunais. O resultado dessa iniciativa é positivo. O Conselho tem ajudado tribunais a superar dificuldades técnicas nessa fase de adaptação. São raros os que ainda não divulgam as informações, na forma determinada pela lei.
O mais importante é que, graças a um grande empenho coletivo, a regra da publicidade vem abrindo o seu caminho, no mais fechado dos Poderes. A cultura da transparência veio para ficar, embora ainda encontre resistências.
Transparência que ainda incomoda
A mudança de uma praxe secular de obscuridade no trato das informações públicas não acontece da noite para o dia. Trata-se de um lento processo de sedimentação cultural. Há notáveis esforços para afirmar a primazia da regra da publicidade. Os movimentos de mudança sempre encontram resistência. A transparência no Poder Judiciário também tem de superar a reação corporativa de setores da magistratura acostumados a beber a água fresca da sombra.
Desde que o Conselho Nacional de Justiça editou norma administrativa que obriga a divulgação da remuneração dos magistrados, ações têm sido ajuizadas para questionar o dever de prestar informações completas sobre a política remuneratória praticada no âmbito dos tribunais.
A iniciativa do órgão de orientação administrativa do Judiciário vem sendo confirmada pela jurisdição. Os tribunais superiores têm sido uníssonos ao afirmar que a medida de transparência remuneratória é legítima e válida. Ela não desrespeita direitos à intimidade dos agentes públicos. Ao contrário, sobreleva o direito fundamental de acesso à informação a respeito de matéria de interesse eminentemente geral.
O exemplo do Supremo Tribunal Federal vem sendo replicado por outros tribunais. Seja no campo administrativo, seja nos precedentes jurisdicionais, vem se formando um consenso a favor da mais ampla publicidade das informações que interessam a toda coletividade, e não apenas aos membros da magistratura.
A regra da transparência tem prevalecido sobre a exceção do sigilo, apesar das resistências. Podemos afirmar que existe hoje uma tendência de garantir o pleno acesso às informações administrativas, no âmbito do Poder Judiciário. O esforço do Conselho Nacional de Justiça em prol da transparência já tem seu reconhecimento nos casos judiciais em que ele é contestado.
Sinal dos tempos: a própria Justiça vem admitindo o direito dos cidadãos de conhecer quanto pagam aos seus juízes. Manifestação de maturidade institucional no processo de afirmação da ética republicana em nosso país.
A administração da Justiça se tornou uma “caixa de vidro”?
Obviamente, não estamos em condições de dizer, como cientistas políticos de outros países, “que transparência demais obscurece a transparência”. Ainda não chegamos a esse ponto.
Embora seja justo reconhecer o movimento de abertura que aconteceu nos últimos anos, convém voltar os olhos para o futuro, pensando prospectivamente nos problemas que ainda remanescem. Afinal, outra coisa não é o homem senão um ser permanentemente inacabado. Ao menos, é o que dizem os filósofos para quem o projeto é uma das condições da existência do indivíduo em sociedade.
Seria possível mapear onde estão, hoje, os “pontos cegos”, com vistas ao aperfeiçoamento da instituição judiciária? Alguns temas certamente podem ser colocados em evidência. O dever de publicidade vai muito além das páginas do Diário Oficial, embora, no regime de exceção, nem isso fosse respeitado.
Transparência do processo de nomeações de juízes para os tribunais superiores
A velha questão sobre o modo como são preenchidos os cargos mais altos do Poder Judiciário é um dos temas. O concurso público é a porta de entrada para os estágios iniciais da carreira. As progressões aos níveis de segundo grau se dão por antiguidade na magistratura e pelo merecimento no desempenho da função judicial.
Nos órgãos judiciários de cúpula, como o Supremo Tribunal Federal e tribunais superiores, as nomeações – como é comum em outros sistemas constitucionais – prestigiam critérios de legitimação política.
Os ministros do Supremo, por exemplo, são nomeados pelo presidente da República, após aprovação de seu nome pela maioria absoluta do Senado Federal. Deles, a Constituição exige notável saber jurídico e reputação ilibada, além da maturidade que se presume alcançar aos 35 anos de idade.
Mas quais são, afinal, os critérios que determinam concretamente a escolha das pessoas que desempenharão funções tão relevantes? Quais são os pretendentes e quem os apoia? Caberia tornar mais rigorosas as arguições públicas realizadas pelo Senado, de modo a buscar mais efetivamente, para além dos rapapés de praxe na vida da Corte, o real sentido político da escolha presidencial? Que mudanças conceituais na jurisprudência sobre temas relevantes trará a nomeação do indicado? Quais são os seus posicionamentos políticos e doutrinários?
O voto aberto dos senadores, seja na Comissão de Constituição e Justiça, seja no Plenário, colaboraria para dar mais transparência ao processo de nomeação? Ou intimidaria os senadores que poderão ser posteriormente julgados pelos ministros cujos nomes têm o encargo de aprovar? É conveniente e necessário gastar energia política para mudar, por emenda constitucional, o processo de nomeação próprio de um regime presidencialista, que está de acordo com uma antiga praxe republicana brasileira? São imprescindíveis as reformas institucionais na essência do modelo constitucional, ou bastaria que a sociedade se organizasse para acompanhar mais atentamente o processo político de nomeação em lugar de pretender burocratizá-lo?
Em matéria de desenho institucional, formular as questões corretas é o primeiro passo para encontrar as respostas adequadas. O mais é pura especulação. Para além de todas essas indagações, a verdade é que a política judiciária ainda é desconhecida da maioria dos cidadãos. Norberto Bobbio talvez visse aí um daqueles “segredos das arcas do império” que convém desenterrar.
Publicação dos critérios de organização das pautas de julgamento
Mas, nem todas as indagações giram em torno de temas relativos à constituição do centro vital do poder. Para um observador atento, algumas questões cotidianas não podem passar despercebidas. Devemos nos perguntar, por exemplo, como é escolhida a pauta de julgamentos pelo presidente de um Tribunal. Quais critérios ele utiliza para pautar determinados casos, e não outros? Excetuando as obrigações legais e regimentais, podemos ter clareza dos motivos que levam um caso a ser pautado? Trata-se de decisão puramente discricionária ou a construção da pauta é uma matéria de tal forma relevante que deve ser justificada à luz de critérios públicos e transparentes? A evolução da sociedade brasileira no caminho da transparência impõe que essas questões sejam respondidas de maneira mais clara.
Ainda há muito campo para pesquisa sobre o comportamento das instituições judiciárias
Ressalvado o conhecido trabalho da professora Maria Tereza Sadek, entre outros autores, ainda há relativamente poucos estudos aptos a responder, de maneira satisfatória, às questões institucionais que desafiam a organização do Poder Judiciário. Falta, por exemplo, uma pesquisa etnográfica sobre o real funcionamento dos tribunais e do próprio Conselho Nacional de Justiça, como aquela realizada por Bruno Latour, que dissecou os comportamentos e tendências no âmbito do Conseil d’État francês.
A exceção do sigilo que se justifica para proteger a vida do magistrado não contraria a regra da publicidade
A Constituição afirma que os cidadãos devem ter amplo acesso à informação pública. Os casos de sigilo, quando constitucionalmente permitidos, são excepcionais. Somente outras razões relevantes de interesse público podem justificar o condicionamento temporário e excepcional à regra da mais ampla publicidade, segundo um juízo público de proporcionalidade e de razoabilidade, sujeito à fiscalização de um terceiro não diretamente interessado na manutenção do segredo.
Com base nessas premissas constitucionais, podemos examinar a nova lei que restringe a divulgação do voto vencido em casos nos quais são julgadas organizações criminosas que coloquem em risco a integridade física do julgador. Em tais circunstâncias, a Lei nº 12.694, de 2012, faculta a constituição de um grupo de juízes de primeira instância. As decisões não são tomadas individualmente, de modo a minimizar a ameaça ao julgador originariamente responsável pelo processo..
Tais limitações legais à publicidade não constituem uma exceção à tendência geral de permitir o amplo acesso dos cidadãos às informações de interesse público, desde que não desvirtuado o propósito de proteger o direito fundamental do magistrado à incolumidade física. As críticas que se pode dirigir à lei dizem respeito à restrição da ampla defesa do acusado, mas essa é outra questão.
Sobre o dever de fundamentação pública e substantiva das decisões judiciais
O processo de transparência no Poder Judiciário também deve evoluir qualitativamente, de modo a atingir não apenas a administração da Justiça, mas iluminar a própria fundamentação da decisão judicial.
Quanto à forma da argumentação jurídica, há pelo menos três pontos a ressaltar: (a) convém tornar explícitos todos os motivos determinantes da decisão, recusando o conforto da motivação padronizada e o formalismo meramente ornamental; (b) é preciso comunicar o sentido das decisões jurídicas de modo preciso e claro, superando as barreiras impostas por vícios da linguagem de boca de foro; (c) observar criticamente as práticas tendentes a escamotear o juízo autônomo e próprio do julgador, em favor das transcrições literais de peças dos autos.
O tema da fundamentação “per relationem” – denominação rebuscada do popular “recorta-e-cola” – ainda causa polêmica nos tribunais superiores. Eles vêm firmando entendimento no sentido contrário às mais rigorosas exigências de demonstração do raciocínio jurídico, talvez por razões práticas de conveniência administrativa. A motivação, numa decisão judicial, não é mera formalidade.
A exibição pública do raciocínio do juiz ainda é uma das fontes principais de legitimação de um poder que não haure a sua legitimidade do voto popular, mas diretamente da Constituição. Daí toda a atenção que se dá ao dever substantivo de fundamentar publicamente a resolução dos conflitos, tanto no direito como na prova dos autos.
O Supremo Tribunal Federal aceitou, em algumas decisões, a reprodução literal de trechos de outras peças, como único fundamento da decisão, eximindo o julgador de exibir os motivos próprios pelos quais se convenceu a aderir à tese simplesmente transcrita.
A mitigação prática do dever de fundamentar pode ser compatível com a esperada celeridade das decisões judiciais, mas traz claro prejuízo ao jurisdicionado, que não recebe a atenção devida de um julgador que, em alguns casos, sequer elabora os fundamentos pelos quais diz o direito.
O Direito Constitucional contemporâneo impõe um maior ônus argumentativo a quem tem o poder de restringir a aplicação de direitos básicos do ser humano. Cobra maior transparência e qualidade também na exposição dos fundamentos constitucionais de uma decisão que regulamenta a convivência entre direitos fundamentais.
Um diálogo aberto com a sociedade também pressupõe a adequação de linguagem, sem perder o rigor técnico. Por falar em objetividade, concisão e clareza, Graciliano Ramos recorda, em suas Memórias do Cárcere, que “nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer”.
Entre o hermetismo da linguagem especializada – que tende a distanciar o povo de seu juiz –, e a verbosidade fora dos autos – que enganosamente os aproxima, apelando à vulgaridade dos chavões – há muito que pensar sobre a comunicação dos juízes com a sociedade. Começando pelo cumprimento das regras do Código de Ética da Magistratura Nacional, outra iniciativa louvável do Conselho Nacional de Justiça.
O magistrado tem o dever ético de se comunicar, respeitando o segredo de justiça. É orientado a prestar informações “de forma útil, compreensiva e clara”, valendo-se de “linguagem escorreita, polida, respeitosa e compreensível”.
“Na sua relação com os meios de comunicação social”, deve “comportar-se de forma prudente e equitativa”, “abster-se de emitir opinião sobre processo pendente de julgamento” e respeitar a independência funcional de outros colegas. A liberdade de opinião e de expressão do juiz está sujeita a um regime jurídico diferenciado, tendo em vista a natureza especial da função social que exerce.
De todo modo, o dever de prestar contas não afasta a obrigação “de evitar comportamentos que impliquem a busca desmesurada por reconhecimento social, mormente a autopromoção em publicação de qualquer natureza”.
A relação entre Judiciário e opinião pública precisa encontrar um ponto mais satisfatório de equilíbrio, num momento em que aquele Poder tradicionalmente inerte é chamado a atuar em relevantes questões da agenda nacional. Ao mesmo tempo, dele se espera que cumpra a missão constitucional de proteger os direitos e garantias fundamentais.
Se de um lado deve ser permeável às críticas oferecidas no espaço público do debate com a sociedade, de outro precisa manter saudável independência em relação aos poderes políticos, econômicos, religiosos e até em relação aos próprios meios de comunicação, como é da própria essência da função jurisdicional.
A postura de independente abertura ao diálogo constitucional – observando reserva crítica em relação à opinião majoritária –, é a que mais parece se harmonizar com o papel do Poder Judiciário, quando se trata de garantir a existência dos direitos fundamentais, sobretudo em matéria penal.
Como em tudo o que diz respeito à Justiça, há de ser encontrado um prudente equilíbrio entre a consciência do juiz e a voz da rua; entre atenção devida à crítica social e a relativa autonomia das razões jurídicas. Num regime republicano e democrático, a soberania popular não pode aniquilar os direitos fundamentais constitucionalmente garantidos. O interesse público se define em função deles, e não o contrário. As razões de Estado cedem lugar, na consciência ética, às razões atinentes à dignidade humana.
O presidente do Supremo Tribunal Federal tinha toda razão quando dizia, na abertura do ano judiciário, que o debate público em torno das questões submetidas à jurisdição constitucional é indispensável. “O aumento da transparência e a abertura do Judiciário às contribuições de outros Poderes e da sociedade estão na raiz do debate sobre a modernização já em curso”. Ou seja, secundando o diagnóstico do Ministro Peluso, “ainda há muito por avançar, mas esse fato não deve obscurecer os progressos já alcançados”.
Regulamentação da Lei de Acesso no âmbito do Judiciário
Além dessa evolução qualitativa na forma de comunicação tradicional, constata-se que o potencial renovador da Lei de Acesso à Informação está longe de exaurir suas possibilidades. No sítio eletrônico do Conselho Nacional de Justiça, por exemplo, as informações públicas são apresentadas de modo claro e acessível, demonstrando que o órgão de fato implantou uma política ativa de transparência administrativa.
O sistema de atendimento pessoal ao usuário, contudo, pode ser aperfeiçoado. Falta dotar a ouvidoria dos meios adequados para desempenhar sua importante tarefa. O treinamento adequado desses servidores também deve merecer atenção especial, considerando que a cultura da transparência é recente entre nós.
Nota-se a falta de normas mais claras a respeito dos procedimentos para aplicação da Lei de Acesso à Informação nas varas e tribunais. O próprio Conselho Nacional de Justiça, órgão legalmente responsável por conhecer as decisões administrativas que, em grau de recurso, negam acesso às informações requeridas pelo cidadão, trabalha para produzir uma regulamentação mais completa, mas que ainda não foi editada. O procedimento de recurso ainda não foi regulamentado e as Resoluções nº 102 e 151 do Conselho Nacional de Justiça, as mais importantes em matéria de transparência judiciária, não respondem à questão.
Sabe-se que existe uma demanda dos cidadãos por informações que não são disponibilizadas eletronicamente. A divulgação desses dados é controlada por órgãos administrativos internos. No Conselho Nacional de Justiça, por exemplo, a ouvidoria divulga relatórios trimestrais com esses números. Esse tipo de publicação é importante para que os interessados recebam informações públicas relevantes. Um exemplo são as estatísticas sobre quanto um determinado órgão tem sido demandado.
Não se divulga, porém, o inteiro teor dos pedidos de informação, nem as respectivas respostas a eles oferecidas. A omissão é criticável ao menos sob dois aspectos. Do ponto de vista da publicidade, não é desejável que matérias de interesse público fiquem reservadas ao âmbito interno de um órgão administrativo.
Os cidadãos têm o direito de saber quais as respostas anteriores e, se o pedido de acesso à informação pública foi negado, por qual razão. Se não conseguem acessar o conteúdo da informação, por alegadas razões de sigilo, devem poder controlar a legitimidade dos critérios empregados para a denegação do pedido de acesso.
Do ponto de vista da racionalidade da organização administrativa, a falta de um banco de dados com orientações concretas sobre acesso à informação também pode gerar trabalhos redundantes. Se houvesse um corpo de decisões publicamente disponível, algumas consultas não precisariam ser repetidas. De resto, o cidadão teria meios de controlar as razões que justificam o alegado sigilo, no âmbito da administração do Poder Judiciário.
Embora o processo eletrônico tenha sido implantado com êxito, o Conselho Nacional de Justiça deverá aperfeiçoar, nos próximos anos, os mecanismos de pesquisa dos seus precedentes administrativos. Falta constituir um banco de dados mais acessível e confiável de suas decisões, em geral, e das orientações sobre acesso à informação, em particular. A direção desse trabalho em andamento é correta.
Processo de adaptação institucional
Outro tema relevante é a publicidade dos critérios de compartilhamento de dados e informações entre a Corregedoria Nacional de Justiça e os órgãos estatais de repressão e fiscalização, como o Ministério Público, a Polícia e a Receita Federal, ou de inteligência financeira, como o COAF. A quebra indiscriminada de sigilos constitucionais, fora de processos sujeitos a um rigoroso controle de legalidade, é inadmissível no Estado Democrático de Direito.
É ocioso lembrar que ainda está em curso o processo de adaptação institucional aos deveres impostos pela nova lei. O próprio Poder Executivo não instalou, até o momento, a comissão encarregada de decidir, em última instância, sobre a negação dos pedidos de acesso à informação. Também lá não existe uma “jurisprudência administrativa” sobre os critérios objetivos que justificam a restrição proporcional ao direito fundamental.
Na organização administrativa do Poder Judiciário, esse poder deverá ser exercido pelo Conselho Nacional de Justiça, órgão que já é composto por quadros externos à magistratura (dois cidadãos, dois advogados e dois membros do Ministério Público). O decreto que regulamentou a Lei de Acesso à Informação no âmbito do Poder Executivo, ao contrário, depositou todo poder de sigilo nas mãos do próprio Estado. A falta do olhar externo da cidadania, na composição da Comissão Mista de Reavaliação de Informações, mais alta instância da Administração Pública Federal, não deixou de se fazer notar.
Enfim, concluímos que a administração judiciária é hoje um canteiro de obras. As fundações da renovação administrativa foram bem lançadas pela Emenda Constitucional de 2004. A obra de modernização da Justiça superou etapas importantes, nos anos seguintes, sobretudo em matéria de transparência e gestão. O edifício solene, que parecia sólido e inabalável, soube se beneficiar amplamente do inadiável processo de reforma.
Reconhecer o papel da cultura da transparência, nessa transformação administrativa, não nos impede de esboçar as tendências para sua completa afirmação entre nós. Afinal, “são injustas todas as ações referentes ao direito dos outros homens, cujas razões não se harmonizem com a publicidade”. A exemplar formulação kantiana fez história no mundo das ideias e chegou à Constituição brasileira. Em matéria de transparência, oferece um projeto sempre atual, porque orientado em direção ao futuro, para o aperfeiçoamento de nossas mais respeitáveis instituições.
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