A Transparência Necessária
Dentre as mudanças resultantes da reforma do Judiciário de 2004 (Emenda nº 45), nenhuma outra foi tão assimilada pela sociedade quanto a que criou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cujo objetivo de coordenar, planejar e supervisionar a administração da Justiça ganhou uma dimensão muito além do que se esperava. Era a primeira vez que um poder até então considerado hermético passaria a ser fiscalizado por representantes da sociedade civil.
Para qualquer efeito, na visão midiática, tratava-se de efetivar o “controle externo”, considerando que os tribunais e seus respectivos ocupantes, a partir daquele momento, estariam sob as vistas de conselheiros representantes do Senado, da Câmara dos Deputados, do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil. Até caberia mais, porém isso bastou para animar uma polêmica que continua nos dias de hoje.
Controle externo sempre foi uma expressão desconfortável em algumas esferas do Judiciário pouco habituadas à participação de seres estranhos ao meio nos assuntos, que, supunham, deveriam se limitar às fronteiras dos tribunais. Afinal, se esses tribunais já possuem suas próprias corregedorias, como poderia o CNJ sobrepor-se a elas? Como era de esperar, a dúvida foi levada ao Supremo Tribunal Federal, e este, em julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade, reconheceu, no voto condutor do ministro Cezar Peluso, o que já se sabia há décadas: muitas das corregedorias estaduais são inoperantes, tornando o Judiciário, com seus vícios arraigados, muito parecido com os demais poderes da República.
Quando a atual Corregedora Nacional de Justiça, Eliana Calmon, admite a existência de “bandidos de toga”, não está de modo algum generalizando e tampouco denegrindo a magistratura da qual ela própria faz parte, mas forçando o Judiciário a reconhecer sua condição de maculabilidade. Em outras palavras, está dizendo que o magistrado não é diferente de uma autoridade pública quando apanhada em flagrante. Se errou, tem de pagar.
No entanto, é preciso compreender que o CNJ não nasceu para promover uma caça às bruxas, nem perseguir ninguém. Nasceu justamente para evitar que os erros de uns poucos comprometam a credibilidade de todo o corpo do Judiciário. Se você perde a confiança na Justiça, instala-se o caos social. As acusações, quando aparecem, precisam ser apuradas com urgência, obedecidos os princípios do devido processo legal, dando ao acusado o direito de defesa e do contraditório. Mas não podem ficar sem resposta, seja ela qual for – de absolvição ou de condenação.
Afinal, a sociedade tem o direito de saber o que está acontecendo. A dúvida em relação a um juiz atinge a todos, a todo o Poder. Um juiz corrupto macula os demais juízes e os operadores do Direito de modo geral. Não podemos também aceitar que tudo se resolva numa reunião de dois ou três juízes que decidem, no fim das contas, aposentar quem cometeu o delito. Queremos transparência.
Tentativas de diminuir o CNJ, sobretudo no que se refere à competência de realizar inspeções em tribunais, fiscalizar e punir condutas impróprias de magistrados, refletem o incômodo que essa nova realidade impôs a espíritos recalcitrantes. Mais fácil seria se o CNJ fosse um órgão doente, burocrático, e que seus membros aguardassem, com servil paciência, os relatórios e prestação de contas produzidos na velocidade e nos termos que cada Corte julgar conveniente.
Nunca se pretendeu retirar a competência dos controles internos existentes, porém nunca é demais lembrar que foi justamente em decorrência de sua duvidosa eficácia que se instaurou, no passado, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no âmbito do Legislativo, submetendo o Judiciário a um penoso processo de investigação.
A campanha de defesa e fortalecimento do CNJ levada a cabo pela OAB teve esse sentido e foi compreendida pela sociedade. A redemocratização do país, seguida pela promulgação de uma Constituição que resgatou a cidadania venceram a resistência tradicionalista e conservadora que restava presente na Justiça brasileira. O perfil da magistratura mudou, expondo suas práticas à publicidade e visibilidade, o que não significa interferência em seu julgamento nem em sua liberdade.
É aqui que cresce em importância o papel do CNJ para a coordenação, o planejamento e a supervisão administrativa do Judiciário. Desde então, a Justiça passou a trabalhar com estratégias de planejamento, metas de produtividade e projetos de informatização e incorporação da instituição à internet. O CNJ passou a ter um papel visionário, antevendo as demandas futuras de uma sociedade cujo acesso à Justiça começa a se alargar.
Um rol de “tarefas mínimas” foi criado para a primeira instância das Justiças Estaduais, Federal, Trabalhista e Militar, com o objetivo de localizar os pontos críticos de cada tribunal, reduzir os custos administrativos da Justiça, implantar projetos de “governança corporativa” e permitir que as varas sejam administradas de modo mais profissional.
Dar celeridade à justiça
Em um país que registrava, até o ano passado, 40 milhões de processos em fase de execução, algo precisava ser feito para dar celeridade à Justiça. Partiu do CNJ a iniciativa das metas, prevendo a redução de pelo menos 10% do acervo de processos na fase de cumprimento e execução. A sociedade tem todo o direito de retirar de seu convívio os criminosos com julgamento definitivo, sem prejuízo, no entanto, dos valores que alicerçam a dignidade humana.
Quando o Estado, por falta de infraestrutura e preparo, impõe outras formas de punição de crueldade aos presos, além daquelas a que foram submetidas por força da lei, está ilicitamente promovendo a degradação humana. A pena justa, imposta pelo Estado por meio do devido processo legal, acaba sendo acrescida de uma outra pena, que é a mais cruel, do aviltamento e degradação do ser humano. E é pela voz da OAB que esse tipo de mazela vem a conhecimento público, na expressão, mais uma vez, da defesa dos direitos individuais e da dignidade humana.
A verdade é que o Estado brasileiro, sob a ideia central de preservação da ordem pública, contribui e muito para a degradação da vida de muitos grupos. O Estado não está preparado para educar, para resgatar a dignidade de pessoas que cometem delitos, para lhes oferecer um tratamento decente nos cárceres.
Partiu também do CNJ, com amplo apoio da OAB, a norma que acaba com o nepotismo no Judiciário. Pela regra, os familiares dos juízes estão impedidos de exercer direção e assessoramento. Impede, inclusive, a contratação cruzada – quando um magistrado contrata os parentes de outro – e a prestação de serviço por empresas que tenham essas pessoas da família dos juízes como empregados. O Supremo Tribunal Federal resolveu estender a proibição também a cargos de chefia. A Corte editou a Súmula Vinculante nº 13, vedando a prática do nepotismo nos três Poderes, no âmbito da União, dos estados e dos municípios.
Política de moralização
A ação do CNJ se estendeu desde a implantação de uma política de moralização dos cartórios públicos à questão dos vencimentos de magistrados que recebiam acima do teto fixado em lei. Desenvolveu campanha em defesa da infância e disponibilizou um cadastro para os juízes inserirem dados de crianças aptas para a adoção e dos pretendentes a pais e mães de todo o país. Além disso, juízes foram motivados a garantir gratuitamente a certidão de nascimento a todas as crianças e também aos adultos que não possuem o documento. O CNJ avaliou que entre 12% e 13% das crianças nascidas em hospitais não são registradas, sendo privadas de cidadania, não tendo acesso à escola, aos projetos sociais e a nenhum outro programa da rede pública.
Como já foi dito, o CNJ pôs à mostra o muito de errado que existe em alguns Tribunais país afora – nem todos, claro, pois há honrosas exceções. Mas em alguns as coisas andavam tão mal que medidas drásticas eram necessárias. O exemplo mais vívido ocorreu no Mato Grosso. O CNJ determinou que três desembargadores e sete juízes daquele estado fossem aposentados compulsoriamente. Eles foram condenados administrativamente por desviar dinheiro do Tribunal de Justiça local para saldar uma dívida da Loja Maçônica Grande Oriente, de Cuiabá.
Por iniciativa da Corregedoria Nacional e com o apoio de todos os membros do CNJ, tocou-se onde nunca se tocava. Até corregedor-geral da Justiça foi afastado, por ter se omitido na investigação de infrações praticadas por juízes.
O programa “Justiça em Números” deu ao Brasil a radiografia de sua Justiça. Por ele é possível acompanhar os dados existentes em cada Tribunal, a estrutura, o número de casos distribuídos e julgados.
Por fim, o CNJ é a grande diferença no Judiciário brasileiro. Este é o verdadeiro sentido da mudança, e, nesse caminho, a Ordem dos Advogados do Brasil sente-se no dever de defender sua independência como forma de aprimorar a Justiça, consolidar o regime democrático e fortalecer os direitos individuais e coletivos.
É presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (oab).
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