A vez da mulher no clima: contribuições brasileiras à agenda de gênero e mudança do clima
8 Gênero e Clima
Resumo Executivo
O objetivo deste documento é fornecer subsídios para que o governo federal incorpore a agenda de gênero transversalmente à agenda climática, uma vez que as mudanças climáticas exacerbam as desigualdades sociais existentes, inclusive de gênero. Incorporando as duas agendas, as políticas climáticas poderão garantir justiça social e equidade, promovendo o desenvolvimento econômico sustentável do país. Apesar das adversidades, as mulheres são também líderes na resposta à emergência climática. Portanto, não somente vítimas, são sobretudo agentes de transformação. O papel catalisador feminino deve ser estimulado com maior inclusão das mulheres nas negociações internacionais. A COP 30, no Brasil, será uma vitrine para o Brasil mostrar ao mundo seu compromisso com uma agenda climática sensível a gênero. Este policy paper foi elaborado a partir da mesa “A vez da mulher no clima: contribuições brasileiras à agenda de gênero e mudança do clima”, parte do evento A trilha Dubai-Baku-Belém: os Desafios das Negociações Internacionais sobre Mudança do Clima, realizado em setembro de 2024 em Brasília. O painel teve a participação de Jocicleide Aguiar, assessora de Meio Ambiente e Justiça Climática do Ministério das Mulheres; Tatiana Castelo Branco, coordenadora de Mudanças Climáticas da Prefeitura do Rio de Janeiro; e Liuca Yonaha, vice-presidente do Instituto Talanoa.
Introdução
Das secas e incêndios na Amazônia e no Pantanal à enchente histórica no Rio Grande do Sul, brasileiras e brasileiros testemunham e sofrem as consequências de um clima em transformação. A magnitude dos eventos extremos no país – e no mundo – assusta até cientistas que há décadas têm alertado sobre as possíveis consequências das mudanças climáticas. Os desastres se aceleram e se agravam [1]. Porém, apesar de ocorrerem de maneira global, impactam regiões e populações de maneira distinta. Seus efeitos atingem em maior intensidade populações já vulneráveis por conjunturas socioeconômicas e históricas. E as mulheres estão entre os grupos mais expostos aos impactos das mudanças climáticas [2].
Além dos impactos diretos, a emergência climática coloca em risco os direitos femininos conquistados a duras penas, como lembra Tatiana Castelo Branco, coordenadora de Mudanças Climáticas da Prefeitura do Rio de Janeiro, com uma citação de Simone de Beauvoir: “Basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados” (BEAUVOIR, 1949). Essa expectativa de perda agrava um quadro de ansiedade climática de populações cujos direitos já são tolhidos sistematicamente: pobres, negros, quilombolas, indígenas. Portanto, a questão climática atravessa toda a complexa teia de desigualdades da sociedade brasileira, sob aspectos sociais, econômicos, históricos e regionais. Sob maior vulnerabilidade, encontram-se as mulheres pobres e pretas.
Dessa forma, a discussão sobre a agenda de gênero em políticas climáticas é sobretudo uma questão de justiça climática. Esse aspecto está colocado no Acordo de Paris, que já em seu preâmbulo apela aos países para que tomem medidas em suas ações climáticas de forma a promover “igualdade de gênero, empoderamento das mulheres e equidade intergeracional”. Em seu Artigo 7.5, os países são incentivados a adotar uma “abordagem sensível ao gênero, participativa e totalmente transparente” para ações de adaptação. Assim, é preciso que isso seja refletido nos processos de planejamento das políticas climáticas, incluindo a Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) que as Partes signatárias do Acordo devem apresentar a cada cinco anos à Convenção Quadro sobre Mudança do Clima das Nações Unidas (UNFCCC).
Diagnóstico
Atualmente, 70% das pessoas em extrema pobreza no mundo são mulheres (ONU, 2021). E, até 2050, cerca de 158 milhões de mulheres e meninas serão empurradas para esse grupo e 236 milhões para uma situação de insegurança alimentar por causa das mudanças climáticas. No caso de homens e meninos, esses números são de 142 milhões e 131 milhões, respectivamente, de acordo com o pior cenário em modelagem elaborada pela ONU Mulheres – Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres [3]. Segundo dado da ONU, 80% das pessoas deslocadas pelas mudanças climáticas são mulheres [4].
Ao mesmo tempo que estão sob maior risco de serem atingidas diretamente por eventos decorrentes da mudança do clima, as mulheres vão à linha de frente das respostas à crise. Um exemplo prático apresentado por Castelo Branco foi sobre as consequências de períodos de qualidade do ar deteriorada, quando aumentam os casos de problemas respiratórios, sobretudo em crianças e idosos. É a mulher quem normalmente acaba assumindo a tarefa de cuidar dessas pessoas afetadas. “Diversos autores defendem que vivemos hoje um tempo de ‘policrises’ – climática, econômica, social -, que gera um afastamento das mulheres dos espaços de tomada de decisão, reduz as oportunidades econômicas e gera uma sobrecarga na economia do cuidado”, afirma.
A sobrecarga é maior quanto mais a mulher estiver exposta a situações de vulnerabilidade, num quadro de interseccionalidade. Portanto, a mulher pobre e negra sentirá de forma mais enfática os efeitos de um planeta mais quente. Isso quer dizer que as políticas públicas climáticas são mais urgentes para essas parcelas da população. A mudança do clima exacerba desigualdades existentes e aumenta as barreiras de acesso às soluções.
Em um país com as dimensões e as características regionais do Brasil, há ainda o desafio de lidar com os contextos locais. Jocicleide Aguiar, assessora de Meio Ambiente e Justiça Climática do Ministério das Mulheres, destaca o quão desafiador é promover escutas de movimentos de mulheres de Norte a Sul do Brasil, incluindo comunidades tradicionais e moradoras das periferias urbanas. Até setembro de 2024, a atual gestão do ministério logrou realizar seminários no Norte e no Nordeste, contando com indígenas e quilombolas. Entretanto, falta ouvir as organizações que atuam nas periferias das cidades. O objetivo das escutas é a formulação de uma proposta representativa de todas as diversidades femininas e de gênero para a COP 30 em Belém.
Porém, uma proposta robusta, para ser crível, necessita ser colocada à mesa com uma ampla participação nas próprias negociações. De 2012 a 2023, a participação feminina nas delegações nas negociações das COPs cresceu de 30% a 36%, mas somente 27,5% foram chefiadas por mulheres [5, 6] nos fóruns de decisão. O Brasil fez história na COP 28, em Dubai, com a liderança da ministra do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, Marina Silva, e depois da ministra Sonia Guajajara (Ministério dos Povos Indígenas) – pela primeira vez uma indígena a comandar a delegação do país.
O Ministério das Mulheres tem recebido o pleito para colaborar na incidência para que a delegação brasileira na COP 30 alcance finalmente a taxa de 50% de mulheres. Para tanto, é necessário também centrar esforços em formação na agenda de gênero e clima. Apesar de já ter completado uma década, o Programa de Trabalho de Lima [7] e o Plano de Ação sobre Gênero (PAG) ainda são pouco conhecidos. “Nem todas as mulheres que vão à COP sabem que esse plano existe”, diz Jocicleide Aguiar.
Além de alcançar a equidade de gênero em termos quantitativos, o desafio é espraiar a participação feminina para além das discussões no âmbito do Programa de Trabalho de Lima e do PAG. E antes de Belém. Na COP 29, em Baku, que tem como prioridade o estabelecimento de uma Nova Meta Coletiva e Quantitativa (NCQG, na sigla em inglês), é necessário que a lente de gênero seja colocada sobre todas as negociações, incluindo o tema do financiamento climático.
Juntamente com os preparativos para o evento, em novembro de 2024, os países estão elaborando suas NDCs, com prazo de entrega até o início de 2025. Esses planos de ação climática devem responder ao Consenso de Dubai, emergido do primeiro Balanço Global (GST, na sigla em inglês) estabelecido na COP 28. O Artigo 178 da decisão [8] “incentiva as Partes a implementar políticas e ações climáticas sensíveis a gênero, que respeitem os direitos humanos e empoderem jovens e crianças”. Isto é, para que a NDC do Brasil seja modelo para outros países precisa apontar como a agenda de gênero pode ser contemplada de forma transversal em toda a agenda climática.
Propostas
•Proposta 1. Protocolos de resposta a desastres devem considerar vulnerabilidades históricas e acúmulos interseccionais
As mulheres fazem parte dos grupos mais expostos às consequências das mudanças climáticas. Nas situações de desastres, as vulnerabilidades historicamente impostas se evidenciam com mais força. Por exemplo, na recente catástrofe no Rio Grande do Sul, houve registros de violências sexuais contra mulheres vítimas dos alagamentos em meio ao caos. Na ocasião, o Ministério das Mulheres elaborou e executou imediatamente um protocolo emergencial de atendimento. Os aprendizados dessa experiência devem ser incorporados aos protocolos de resposta a desastres em todo o país e em todos os níveis, do local ao nacional. A questão de gênero deve ser considerada na concepção e na instalação de abrigos, nos primeiros atendimentos de saúde, no fornecimento de kits de higiene etc.
Ao se debruçar sobre a discussão do risco da violência durante e pós-desastre, a pauta da segurança pública acabará sendo incorporada de forma mais antecipada nas mobilizações frente às tragédias. Essa antecipação e a clareza de papéis das forças de segurança nessas situações serão extremamente benéficas não apenas às mulheres, mas a toda à população atingida.
•Proposta 2. Protagonismo das mulheres na agenda climática deve ser intencional
Como já dito, as mulheres estão entre os grupos que são afetados em maior grau pelos efeitos da mudança do clima. Entretanto, esses segmentos não devem ser vistos somente como público-alvo de políticas de assistência. As próprias mulheres têm demonstrado capacidade para liderar a transformação ecológica. Por suas lutas históricas e resiliência por senso de sobrevivência, têm as habilidades para liderar missões urgentes.
O Poder Público deve contribuir abrindo os espaços para que essa liderança feminina seja exercida, do nível local ao internacional. Um exemplo de ação no território que pode ser replicado em outros lugares, respeitando-se as particularidades de cada um, é o programa Guardiãs das Matas, da Prefeitura do Rio de Janeiro. Lançado em março de 2023, a iniciativa coloca mulheres lideranças comunitárias como lideranças climáticas. Elas realizam ações como identificar descarte irregular de lixo ou mesmo desmatamento ilegal. E fazem a ponte entre as comunidades e os serviços da Prefeitura. Atualmente, o programa abrange 57 comunidades, contando com 650 guardiãs.
Em nível internacional, o Brasil deve contribuir para aumentar a participação das mulheres nas negociações climáticas. Mirando alcançar na COP 30 equidade de gênero em todos os níveis, o país precisa seguir as recomendações do Programa de Trabalho de Lima e do PAG, (1) nomeando mulheres para as posições de High-Level Climate Champion e Youth Climate Champion; (2) promovendo balanço de gênero em suas delegações; e (3) promovendo balanço de gênero nos eventos. Para atingir esses objetivos, é necessário o apoio a iniciativas com foco em mulheres para a formação de capacidades em diplomacia climática.
• Proposta 3. Priorizar o financiamento climático sensível a gênero
Para alinhar a agenda climática a uma agenda de desenvolvimento econômico com redução de desigualdades sociais, a lente de gênero deve ser aplicada na pauta de financiamento. No cenário internacional, o Brasil deve apresentar nas negociações da NCQG propostas que incluam no acordo o reconhecimento de que as mulheres estão entre os grupos mais expostos aos impactos presentes e futuros da mudança do clima. O documento precisa incorporar, portanto, que é necessário apoiar mecanismos de financiamento sensíveis a gênero. O governo brasileiro também deve recomendar que as Partes sejam incentivadas a monitorar, avaliar e reportar resultados com recorte por gênero e raça. Dessa forma, será possível compreender quais mecanismos são mais eficientes para incentivar soluções climáticas e promover igualdade de gênero.
Internamente, as soluções de financiamento climático devem incorporar a participação das mulheres desde a elaboração dessas políticas à priorização como público-alvo. Isto é, promover balanço de gênero na governança de comissões de finanças, comitês gestores e outras instância do sistema financeiro. E incluir critérios que direcionam os fluxos de capital a iniciativas que atendem mulheres e outros grupos vulnerabilizados.
•Proposta 4. Elevar politicamente a agenda de adaptação e incluir na NDC metas que promovam a equidade intra e intergeracional, por meio do combate às desigualdades de raça e gênero
O lugar de liderança na agenda climática global exige que o Brasil submeta uma NDC no mais alto grau de ambição, com transparência e credibilidade. Além do alinhamento ao objetivo global de limitar o aquecimento do planeta a 1,5ºC em relação à era pré-industrial, o documento deve apresentar metas críveis e ambiciosas de adaptação e um claro caminho de afastamento dos combustíveis fósseis. Ao sinalizar que elevou politicamente a agenda de adaptação, o Brasil deve trazer metas que incluem a redução das desigualdades de raça e gênero.
É fundamental ainda que a NDC seja apresentada ainda em 2024, uma vez que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou, na 79ª Assembleia Geral da ONU [9], que submeterá o documento neste ano.
Conclusões
Ao mesmo tempo que estão entre os grupos que mais sofrem ou sofrerão os impactos das mudanças climáticas no mundo, as mulheres lideram ações para lidar com a emergência em diferentes países e contextos. São, portanto, agentes fundamentais para ajudar o Brasil a transformar o desafio da crise em oportunidade de desenvolvimento sustentável. Já atingidas ou sob a iminência do risco climático crescente, mostram-se protagonistas tanto do ponto de vista da resiliência quanto da transformação para uma sociedade livre dos combustíveis fósseis, sustentável e abundante em soluções baseadas na natureza.
O compromisso do governo brasileiro com a agenda de gênero de forma transversal à agenda climática deve ser declarado na NDC do país, a ser apresentada ainda em 2024. Para que esse compromisso seja consistente, o Brasil deve igualmente se posicionar aplicando a lente de gênero nas negociações e soluções de financiamento climático. E, assim como outras metas que estarão na NDC, sua implementação deve ser monitorada.
Para que a trilha de Dubai–Baku–Belém seja parte de um caminho de desenvolvimento do Brasil, que precisa ser percorrido desafiadoramente com rapidez e consistência, incluir as questões de gênero ao longo de toda a rota mostra-se inevitável. n
Referências
[1]
JANSEN, Roberta. ‘Estou apavorado. Ninguém previa isso; é muito rápido’, diz Carlos Nobre sobre crise climática. Estadão, 11 set. 2024.
Disponível em: https://www.estadao.com.br/sustentabilidade/crise-clima-seca-queimadas-amazonia-carlos-nobre/ Acesso em 09 out. 2024.
[2]
HABTEZION, Senay. UNDP. 2016. Gender and climate finance.
Disponível em:
https://www.undp.org/sites/g/files/zskgke326/files/publications/UNDP%20Gender%20and%20Climate%20Finance%20Policy%20Brief%205-WEB.pdf
Acesso em 10 out. 2024.
[3]
UNHR, 2022. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/stories/2022/07/climate-change-exacerbates-violence-against-women-and-girls Acesso em 09 out. 2024
[4]
UN-Women and UNDESA (United Nations Department of Economic and Social Affairs). 2023. “Progress on the Sustainable Development Goals: The Gender Snapshot 2023.” Disponível em : https://www.unwomen.org/sites/default/files/2023-09/
progress-on-the-sustainable-development-goals-the-gendersnapshot-2023-en.pdf Acesso em 16 set. 2024.
[5]
Laura Turquet, Constanza Tabbush, Silke Staab, Loui Williams e Brianna Howell. 2023. “Feminist Climate Justice: A Framework for Action”. Estrutura conceitual elaborada para a série Progress of the World’s Women. New York: ONU-Mulheres.
Disponível em: https://www.unwomen.org/sites/default/files/2023-12/Feminist-climate-justice-A-framework-for-action-en.pdf Acesso em 16 set. 2024.
[6]
UNFCCC. 2024. Gender Composition Report – Advance Version. Disponível em: https://unfccc.int/sites/default/files/resource/cp2024_04_adv.pdf
Acesso em 11 out. 2024.
[7]
UNFCCC. The Enhanced Lima Work Programme on Gender.
Disponível em:
https://unfccc.int/topics/gender/workstreams/the-enhanced-lima-work-programme-on-gender
Acesso em 16 set. 2024.
[8]
UNFCCC. Outcome of the first global stocktake. 2023
Disponível em:
https://unfccc.int/sites/default/files/resource/cma5_auv_4_gst.pdf
Acesso em 12/10/2024.
[9]
AGÊNCIA GOV. 2024. Lula abre a 79ª Assembleia Geral da ONU. Veja íntegra e principais pontos do discurso.
Disponível em:
https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202409/lula-abre-79-assembleia-geral-da-onu-veja-integra-e-principais-pontos-do-discurso
Acesso em 24 set. 2024.
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